Estudo: políticas de clima e saúde são limitadas e desconectadas no Brasil

Relatório produzido por pesquisadores da USP indica barreiras, desafios e recomendações para os sistemas de saúde diante da crise climática

Por Micael Olegário | ODS 13 • Publicada em 5 de fevereiro de 2025 - 09:35 • Atualizada em 5 de fevereiro de 2025 - 09:43

Falta de preparação das cidades para lidar com chuvas extremas expõe pessoas à vulnerabilidades; imagem de inundação na zona leste de São Paulo nesta semana (Foto: NurPhoto via AFP)

Existe um descompasso entre as políticas de clima e saúde no Brasil. A falta de planejamento estratégico, de monitoramento de riscos e limitações financeiras são alguns dos elementos apontados em relatório do Grupo de Estudos Saúde Planetária da Universidade de São Paulo (USP) sobre a (des)integração das políticas de saúde e enfrentamento da crise climática. O documento foi apresentado nesta terça-feira (04/02) em evento com representantes do poder público, entidades do terceiro setor e especialistas no tema.

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O estudo, intitulado “Avanço e integração das políticas de clima e saúde no Brasil: percepções de stakeholders brasileiros’, aponta que eventos extremos, como ondas de calor, secas, enchentes, e doenças como dengue, malária, zika e chikungunya – potencializadas pelas condições do clima – estão sobrecarregando ainda mais o Sistema Único de Saúde (SUS). 

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Os impactos que a humanidade tem causado  voltam-se  contra  ela,  sua  saúde  e  bem-estar,  e  as mudanças do clima são um exemplo claro, mas não são um fato isolado, e sim consequências de múltiplos fatores”, aponta trecho do relatório. O levantamento foi coordenado pelo professor da USP, António Mauro Saraiva, em co-autoria com Daniela Vianna e Patricia Zimermann, pós-doutorandas no Instituto de Estudos Avançados (IEA).

Uma questão grave e que precisamos mudar é a percepção de risco, porque não conseguimos fazer um lockdown climático, então como mostrar que isso é urgente?

António Mauro Saraiva
Coordenador da pesquisa

As conclusões são baseadas em 33 entrevistas feitas com representantes de diferentes entes da federação, do Congresso Nacional, do meio acadêmico e de organizações que atuam em áreas correlacionadas (nenhum dos participantes teve o nome identificado). O período de realização das entrevistas foi de 8 de abril a 17 de junho do ano passado. 

A iniciativa de pesquisa é liderada pelo Centro de Comunicação sobre Mudanças Climáticas (4C, na sigla em inglês), vinculado à Universidade George Mason, dos Estados Unidos. O trabalho também contou com financiamento da “Wellcome Trust”, instituição filantrópica com sede em Londres e dedicada à pesquisa sobre saúde humana e animal. Além do Brasil, o mesmo levantamento também está sendo desenvolvido no Caribe e em outros quatro países: Alemanha, Estados Unidos, Quênia e Reino Unido.

Avanços e barreiras

A revisão da Política Nacional sobre Mudança do Clima e do Plano Nacional de Adaptação à Mudança do Clima são pontos citados no relatório como indicativos de avanços na integração clima-saúde. A abrangência do SUS e sua efetividade no contexto de outras emergências, como a da pandemia de Covid-19, também é mencionada como uma possibilidade para expandir as políticas públicas nessa intersecção.

Por outro lado, os principais desafios identificados estão ligados ao perfil do Congresso Nacional – de maioria conservadora – ao negacionismo e aos projetos controversos do próprio governo federal, como o plano de exploração de petróleo na foz do Amazonas, apontado como parte de uma visão de desenvolvimento que desconsidera o combate à crise climática.

O relatório apresenta um histórico da relação entre saúde e extremos do clima, desde ondas de calor e queimadas, até as enchentes de 2024 no Rio Grande do Sul. “O viés econômico brasileiro prioriza a mitigação ao invés da prevenção”, pontua Patrícia Zimmermann, doutora em Ciências da Comunicação, sobre o desafio em implementar ações de médio e longo prazo..

A pesquisa também aborda os impactos nos grupos mais vulneráveis e na saúde mental. “A exposição a substâncias químicas e  tóxicas  decorrentes  das  queimadas  e  da  poluição  atmosférica  nos  grandes  centros  urbanos,  assim  como oriundas  da  contaminação  por  pesticidas  e  por  metais  pesados,  causa  alterações  no  sistema  endócrino  e  está associada a uma série de transtornos mentais”, indica trecho do documento.

Foto colorida de placa do hospital Mãe de Deus em Porto Alegre durante enchentes de maio de 2024
Eventos extremos também desafiam infraestrutura dos serviços de saúde; Hospital Mãe de Deus debaixo de água durante enchentes no RS (Foto: Rafa Neddermeyer/Agência Brasil – 23/05/2024)

Debate e perspectivas

Presente ao evento, o climatologista Carlos Nobre enfatizou a dificuldade em fazer com que os alertas sobre as mudanças climáticas e degradação ambiental sejam tratados como uma emergência equivalente, por exemplo, à pandemia de covid-19. “Se continuarmos com a meta de zerar as emissões só em 2050, chegaremos a 2,5°C de aumento da temperatura e vamos disparar diversos pontos de não-retorno”, afirmou Nobre, titular da Cátedra Clima e Sustentabilidade do IEA.

O especialista elencou os impactos que o aumento da temperatura global tem na degradação da saúde e das condições de vida no planeta. “A perturbação da biodiversidade vai gerar uma ou duas pandemias por década”, disse, ao abordar a importância da integração entre a Conferência sobre as Mudanças Climáticas e a Conferência das Partes sobre Biodiversidade.

De acordo com Márcio Astrini, secretário-executivo do Observatório do Clima, existem impactos indiretos causados pela mudança climática na saúde da população, como a redução da produção e disponibilidade de alimentos. “Se não controlarmos o aquecimento do planeta, vamos gastar dez vezes mais para remediar o problema e chega uma hora em que isso não é mais possível”.

Coordenador-executivo do Fórum Brasileiro de Mudança do Clima, Sérgio Astrini reforçou a importância de prestar atenção nos modos de vida dos povos tradicionais. “Precisamos repensar como viver totalmente conectados com as florestas, rios e oceanos”, frisou, sobre a crise de percepção e a necessidade de remodelar os modelo de sociedade e de negócios.

Diretora substituta do Departamento de Políticas para Adaptação e Resiliência à Mudança do Clima do Ministério do Meio Ambiente, Adriana Brito da Silva descreveu o trabalho do governo na revisão das políticas climáticas, com objetivo de torná-las transversais e conectadas com a saúde. “Estamos desenvolvendo uma estratégia nacional de adaptação que envolve 16 planos setoriais de adaptação”, complementou Adriana. 

Representante do Ministério da Saúde, Agnes Soares explicou detalhes sobre o “AdaptaSUS”, plano voltado para adaptação, atenção e identificação de vulnerabilidades associadas ao clima. “Uma coisa nova foi a criação da Sala de Emergências Climáticas para reuniões emergências e diárias para orientar a prática”, acrescentou a diretora do Departamento de Vigilância em Saúde Ambiental e Saúde do Trabalhador.

Recomendações e alternativas

O relatório apresenta recomendações voltadas para diferentes públicos e setores, incluindo agentes do governo federal, estados, municípios, parlamentares, profissionais de saúde e meio ambiente, além de representantes da sociedade civil. 

Segundo Daniela Vianna, jornalista e doutora em Ciências Ambientais, a comunicação sobre as mudanças climáticas e a saúde precisam mostrar os impactos econômicos da falta de planejamento e prevenção. “Têm um caráter dito como educativo, porque estamos vendo que a mudança climática está acontecendo aqui no nosso quintal”, aponta a pesquisadora. 

“Uma questão grave e que precisamos mudar é a percepção de risco, porque não conseguimos fazer um lockdown climático, então como mostrar que isso é urgente?”, aponta António Saraiva. A lista a seguir apresenta um resumo das recomendações e estratégias apontadas no relatório como alternativas para enfrentar esse cenário e avançar na integração das políticas de clima e saúde:

  1. Incorporar a restauração florestal – inclusive urbana – e dos biomas, a proteção da biodiversidade e a transição energética  no  plano  de  desenvolvimento  do  país;
  2. Acelerar a produção de dados, indicadores e pesquisas que estabeleçam os  nexos entre clima e saúde;
  3. Colocar a ciência em uma posição de protagonismo no combate à crise climática e da formulação de políticas públicas;
  4. Aumentar a aproximação com os povos originários, incluindo indígenas, quilombolas e ribeirinhos. O levantamento enfatiza a importância de considerar os conhecimentos ancestrais na busca por soluções;
  5. Criar uma liderança centralizada com responsabilidade pelo planejamento e gestão integrados das políticas públicas no país, principalmente tendo os  conceitos de Saúde Única e Saúde  Planetária como referências;
  6. Ampliar o  diálogo  intersetorial por meio do  fortalecimento  de  políticas  participativas, da  educação  de  públicos estratégicos – como os profissionais de saúde – e da inclusão de novos atores no debate;
  7. Fortalecer sanções aos poluidores e estimular a economia de baixo carbono. Para isso, os pesquisadores sugerem a revisão do arcabouço fiscal e a mobilização de fundos já criados para custear a adaptação climática e ao mesmo tempo combater as desigualdades estruturais;
  8. Comunicar de forma mais eficiente as relações entre clima e saúde, com foco  na sensibilização, na percepção de riscos e mostrando os impactos econômicos da falta de prevenção.

Micael Olegário

Jornalista formado pela Universidade Federal do Pampa (Unipampa). Gaúcho de Caibaté, no interior do Rio Grande do Sul. Mestrando em Comunicação na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Escreve sobre temas ligados a questões socioambientais, educação e acessibilidade.

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