Existe um descompasso entre as políticas de clima e saúde no Brasil. A falta de planejamento estratégico, de monitoramento de riscos e limitações financeiras são alguns dos elementos apontados em relatório do Grupo de Estudos Saúde Planetária da Universidade de São Paulo (USP) sobre a (des)integração das políticas de saúde e enfrentamento da crise climática. O documento foi apresentado nesta terça-feira (04/02) em evento com representantes do poder público, entidades do terceiro setor e especialistas no tema.
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O estudo, intitulado “Avanço e integração das políticas de clima e saúde no Brasil: percepções de stakeholders brasileiros’, aponta que eventos extremos, como ondas de calor, secas, enchentes, e doenças como dengue, malária, zika e chikungunya – potencializadas pelas condições do clima – estão sobrecarregando ainda mais o Sistema Único de Saúde (SUS).
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Veja o que já enviamos“Os impactos que a humanidade tem causado voltam-se contra ela, sua saúde e bem-estar, e as mudanças do clima são um exemplo claro, mas não são um fato isolado, e sim consequências de múltiplos fatores”, aponta trecho do relatório. O levantamento foi coordenado pelo professor da USP, António Mauro Saraiva, em co-autoria com Daniela Vianna e Patricia Zimermann, pós-doutorandas no Instituto de Estudos Avançados (IEA).
As conclusões são baseadas em 33 entrevistas feitas com representantes de diferentes entes da federação, do Congresso Nacional, do meio acadêmico e de organizações que atuam em áreas correlacionadas (nenhum dos participantes teve o nome identificado). O período de realização das entrevistas foi de 8 de abril a 17 de junho do ano passado.
A iniciativa de pesquisa é liderada pelo Centro de Comunicação sobre Mudanças Climáticas (4C, na sigla em inglês), vinculado à Universidade George Mason, dos Estados Unidos. O trabalho também contou com financiamento da “Wellcome Trust”, instituição filantrópica com sede em Londres e dedicada à pesquisa sobre saúde humana e animal. Além do Brasil, o mesmo levantamento também está sendo desenvolvido no Caribe e em outros quatro países: Alemanha, Estados Unidos, Quênia e Reino Unido.
Avanços e barreiras
A revisão da Política Nacional sobre Mudança do Clima e do Plano Nacional de Adaptação à Mudança do Clima são pontos citados no relatório como indicativos de avanços na integração clima-saúde. A abrangência do SUS e sua efetividade no contexto de outras emergências, como a da pandemia de Covid-19, também é mencionada como uma possibilidade para expandir as políticas públicas nessa intersecção.
Por outro lado, os principais desafios identificados estão ligados ao perfil do Congresso Nacional – de maioria conservadora – ao negacionismo e aos projetos controversos do próprio governo federal, como o plano de exploração de petróleo na foz do Amazonas, apontado como parte de uma visão de desenvolvimento que desconsidera o combate à crise climática.
O relatório apresenta um histórico da relação entre saúde e extremos do clima, desde ondas de calor e queimadas, até as enchentes de 2024 no Rio Grande do Sul. “O viés econômico brasileiro prioriza a mitigação ao invés da prevenção”, pontua Patrícia Zimmermann, doutora em Ciências da Comunicação, sobre o desafio em implementar ações de médio e longo prazo..
A pesquisa também aborda os impactos nos grupos mais vulneráveis e na saúde mental. “A exposição a substâncias químicas e tóxicas decorrentes das queimadas e da poluição atmosférica nos grandes centros urbanos, assim como oriundas da contaminação por pesticidas e por metais pesados, causa alterações no sistema endócrino e está associada a uma série de transtornos mentais”, indica trecho do documento.
Debate e perspectivas
Presente ao evento, o climatologista Carlos Nobre enfatizou a dificuldade em fazer com que os alertas sobre as mudanças climáticas e degradação ambiental sejam tratados como uma emergência equivalente, por exemplo, à pandemia de covid-19. “Se continuarmos com a meta de zerar as emissões só em 2050, chegaremos a 2,5°C de aumento da temperatura e vamos disparar diversos pontos de não-retorno”, afirmou Nobre, titular da Cátedra Clima e Sustentabilidade do IEA.
O especialista elencou os impactos que o aumento da temperatura global tem na degradação da saúde e das condições de vida no planeta. “A perturbação da biodiversidade vai gerar uma ou duas pandemias por década”, disse, ao abordar a importância da integração entre a Conferência sobre as Mudanças Climáticas e a Conferência das Partes sobre Biodiversidade.
De acordo com Márcio Astrini, secretário-executivo do Observatório do Clima, existem impactos indiretos causados pela mudança climática na saúde da população, como a redução da produção e disponibilidade de alimentos. “Se não controlarmos o aquecimento do planeta, vamos gastar dez vezes mais para remediar o problema e chega uma hora em que isso não é mais possível”.
Coordenador-executivo do Fórum Brasileiro de Mudança do Clima, Sérgio Astrini reforçou a importância de prestar atenção nos modos de vida dos povos tradicionais. “Precisamos repensar como viver totalmente conectados com as florestas, rios e oceanos”, frisou, sobre a crise de percepção e a necessidade de remodelar os modelo de sociedade e de negócios.
Diretora substituta do Departamento de Políticas para Adaptação e Resiliência à Mudança do Clima do Ministério do Meio Ambiente, Adriana Brito da Silva descreveu o trabalho do governo na revisão das políticas climáticas, com objetivo de torná-las transversais e conectadas com a saúde. “Estamos desenvolvendo uma estratégia nacional de adaptação que envolve 16 planos setoriais de adaptação”, complementou Adriana.
Representante do Ministério da Saúde, Agnes Soares explicou detalhes sobre o “AdaptaSUS”, plano voltado para adaptação, atenção e identificação de vulnerabilidades associadas ao clima. “Uma coisa nova foi a criação da Sala de Emergências Climáticas para reuniões emergências e diárias para orientar a prática”, acrescentou a diretora do Departamento de Vigilância em Saúde Ambiental e Saúde do Trabalhador.
Recomendações e alternativas
O relatório apresenta recomendações voltadas para diferentes públicos e setores, incluindo agentes do governo federal, estados, municípios, parlamentares, profissionais de saúde e meio ambiente, além de representantes da sociedade civil.
Segundo Daniela Vianna, jornalista e doutora em Ciências Ambientais, a comunicação sobre as mudanças climáticas e a saúde precisam mostrar os impactos econômicos da falta de planejamento e prevenção. “Têm um caráter dito como educativo, porque estamos vendo que a mudança climática está acontecendo aqui no nosso quintal”, aponta a pesquisadora.
“Uma questão grave e que precisamos mudar é a percepção de risco, porque não conseguimos fazer um lockdown climático, então como mostrar que isso é urgente?”, aponta António Saraiva. A lista a seguir apresenta um resumo das recomendações e estratégias apontadas no relatório como alternativas para enfrentar esse cenário e avançar na integração das políticas de clima e saúde:
- Incorporar a restauração florestal – inclusive urbana – e dos biomas, a proteção da biodiversidade e a transição energética no plano de desenvolvimento do país;
- Acelerar a produção de dados, indicadores e pesquisas que estabeleçam os nexos entre clima e saúde;
- Colocar a ciência em uma posição de protagonismo no combate à crise climática e da formulação de políticas públicas;
- Aumentar a aproximação com os povos originários, incluindo indígenas, quilombolas e ribeirinhos. O levantamento enfatiza a importância de considerar os conhecimentos ancestrais na busca por soluções;
- Criar uma liderança centralizada com responsabilidade pelo planejamento e gestão integrados das políticas públicas no país, principalmente tendo os conceitos de Saúde Única e Saúde Planetária como referências;
- Ampliar o diálogo intersetorial por meio do fortalecimento de políticas participativas, da educação de públicos estratégicos – como os profissionais de saúde – e da inclusão de novos atores no debate;
- Fortalecer sanções aos poluidores e estimular a economia de baixo carbono. Para isso, os pesquisadores sugerem a revisão do arcabouço fiscal e a mobilização de fundos já criados para custear a adaptação climática e ao mesmo tempo combater as desigualdades estruturais;
- Comunicar de forma mais eficiente as relações entre clima e saúde, com foco na sensibilização, na percepção de riscos e mostrando os impactos econômicos da falta de prevenção.