Guardiões do Pantanal: a realidade desafiadora das comunidades tradicionais

Há quase 30 anos, as artesãs da Barra do São Lourenço sofrem restrições ao seu trabalho e à sobrevivência no Pantanal. Foto Ecoa

Conflitos enfrentados por comunidades pantaneiras refletem a necessidade de garantir o direito à permanência nos territórios que protegem

Por Júlia Moa | ODS 12 • Publicada em 18 de setembro de 2024 - 09:13 • Atualizada em 19 de setembro de 2024 - 11:01

Há quase 30 anos, as artesãs da Barra do São Lourenço sofrem restrições ao seu trabalho e à sobrevivência no Pantanal. Foto Ecoa

“O Pantanal nunca foi silêncio”, costumava dizer Chico Lacerda, músico sul-mato-grossense e fundador do Grupo Acaba. Na canção “Ciranda Pantaneira”, Chico escreveu: “Ser pantaneiro é sentir o cheiro da fruta / Nadar em águas barrentas, remar em águas correntes / Ser pantaneiro é a fuga da morte! / É a busca da vida”. E é exatamente assim que os moradores das comunidades tradicionais se encontram na remota região da Serra do Amolar, um santuário ecológico situado na divisa entre Mato Grosso do Sul (MS) e Mato Grosso (MT), próximo à fronteira com a Bolívia.

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Há 30 anos, três comunidades vizinhas – Barra do São Lourenço, Serra do Amolar e Binega – reivindicam o direito ao uso sustentável do território onde vivem. Lá, aproximadamente 36 famílias habitam o maior território de conservação do Pantanal, rico em diversidade de fauna e flora, com vegetação do Chaco, da Amazônia e do Cerrado.

Seguindo a cronologia dos fatos, em 1995, na Barra do Rio São Lourenço, que fazia parte da Fazenda Acurizal, funcionários do que viria a ser a Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN), no limite com o Parque Nacional do Pantanal, expulsaram violentamente 22 famílias que viviam nas margens do Rio Paraguai. Ainda atearam fogo nas residências para assegurar que ninguém voltaria para aquelas bandas. Os nativos estabeleceram moradia na outra margem do rio Paraguai, numa pequena faixa de terra. Chegaram lá em condições precárias e até hoje os moradores não gostam de lembrar desse doloroso período.

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Com a intenção controversa de priorizar a conservação ambiental em detrimento da presença humana — uma polêmica já contestada academicamente e em análise técnica —, trabalhadores da RPPN mantiveram um tratamento hostil em relação aos ribeirinhos, indígenas guató e quilombolas da localidade. Como resultado, essas comunidades passaram a enfrentar restrições nas atividades que sempre realizaram, incluindo pesca, coleta de iscas, lenha e palha para a cobertura das moradias.

Toda a redondeza transformada em Unidade de Conservação (UC) visa proteger a área natural, validar o uso sustentável dos recursos naturais pelas populações tradicionais e promover o desenvolvimento de atividades econômicas sustentáveis nas comunidades ao redor. No entanto, o cenário não se apresentou pacífico ao longo dos anos. Surgiram conflitos socioambientais que desencadearam inseguranças, prejuízos materiais e danos morais aos moradores das comunidades tradicionais pantaneiras. A ONG Ecoa registrou várias agressões e ameaças enfrentadas pelos residentes da Barra e em outras localidades.

Vista panorâmica da Serra do Amolar, umas das regiões mais afetadas por incêndios e perseguições às comunidades tradicionais. Foto Beto Arruda
Vista panorâmica da Serra do Amolar, umas das regiões mais afetadas por incêndios e perseguições às comunidades tradicionais. Foto Beto Arruda

“Tenho 52 anos de Pantanal. Nasci e vivo na Serra do Amolar. Nunca enfrentamos uma crise tão grave como a atual: os incêndios e as ameaças contra nós, os verdadeiros pantaneiros. A cada dia, nosso espaço diminui e não podemos mais circular abertamente pelo bioma como antes. Estamos cada vez mais acuados em nossa própria casa”, desabafa Roberto Carlos Conceição Arruda, piloteiro. Beto, seu apelido, conhece cada detalhe da imensidão pantaneira e trabalha com turismo de base comunitária, hoje prejudicado pelas barreiras que impedem seu livre ir e vir pelos rios. O pantaneiro participa da brigada de incêndio da comunidade; a equipe intensifica os esforços em conjunto com os órgãos oficiais quando o fogo inicia. Ele diz que o cuidado com o Pantanal, por parte dos moradores, aumenta a cada dia.

De um lado, a necessária preservação ambiental é garantida pelas restrições impostas por uma UC; do outro, seres humanos isolados que dependem da extração sustentável de recursos naturais para sobreviver. Como alinhar ambas as agendas de maneira que o Pantanal continue sendo estritamente preservado, ao mesmo tempo em que se respeite e garanta a qualidade de vida daqueles que fazem do Pantanal sua morada?

A matéria publicada na Eco destaca que, de acordo com Painel de Unidades de Conservação Brasileiras, mantido pelo Ministério do Meio Ambiente (MMA), o Brasil conta com 2,6 mil UCs em suas diversas categorias. Depois do Pampa, o Pantanal é o bioma menos protegido por UCs, com apenas 28 áreas protegidas que totalizam pouco mais de 700 mil hectares, representando apenas 4,6% da cobertura total do ambiente. O índice alarmante confirma a necessidade de expandir as áreas protegidas, sem esquecer da importante relação de troca responsável que os moradores das comunidades tradicionais sustentam nesses espaços.

Tensões ecológicas

A situação revela a vulnerabilidade socioambiental, pois a falta de proteção e garantia de direitos à cidadania, em especial nos aspectos jurídicos e políticos, mantém os pantaneiros em um grupo fragilizado em relação ao acesso aos recursos naturais, evidenciando a urgente necessidade de consolidar seus direitos básicos, como saúde, alimentação, educação, moradia e direito ao território.

Para tensionar a complexa realidade dos nativos, acrescenta-se que eles já foram alvo de falsas acusações relacionadas à responsabilidade pelo fogo no Pantanal. Contudo, investigações recentes do Ministério Público de Mato Grosso do Sul (MPMS) apontam que os incêndios não tiveram origem nas comunidades tradicionais pantaneiras nem nas unidades de conservação.

Moradora há 34 anos do Binega, Joana Batista Gomes, que se apresenta como “mato-grossense com sangue indígena” e pescadora, afirma nunca ter enfrentado tanta fumaça e fogo como na última temporada. Ela refuta acusações de que destroem a natureza e critica a postura de alguns pesquisadores e empresas que visitam as comunidades, aprendem sobre seu modo de vida sustentável, mas só as procuram novamente quando surge interesse.

A pesca artesanal praticada por Dona Joana, resiste há muitas gerações entre os moradores, entretanto, não é permitida nas áreas protegidas. Somente em 2016, a Secretaria do Patrimônio da União (SPU) emitiu para cerca de 150 famílias de comunidades ribeirinhas em todo o Pantanal de Mato Grosso do Sul um documento denominado Termo de Autorização de Uso Sustentável (TAUS), criada com o objetivo de “possibilitar a ordenação do uso racional e sustentável dos recursos naturais disponíveis na orla marítima e fluvial voltados para a subsistência das populações que vivem nessas regiões”. Na Serra do Amolar, apenas os moradores da Barra do São Lourenço têm autorização para pescar nas zonas de amortecimento, que englobam áreas de influência do rio Paraguai e atravessam as RPPNs.

Além disso, com as mudanças climáticas em curso — a severa estiagem e o aumento das temperaturas — os peixes estão escassos nos rios pantaneiros, e as embarcações turísticas enfrentam dificuldades para chegar às comunidades, prejudicando as finanças dos moradores.

“Nosso passado é penoso; muita gente foi perseguida. Já falamos bastante dele. Hoje, estamos um pouco melhor do que naquela época. Temos escola, luz e as casas possuem tratamento de água. Nos reerguemos pelas nossas próprias forças e, claro, o apoio de ONGs, como a ECOA e a professora Nely Tocantins, da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), que explicaram quais eram os nossos direitos”, argumenta Dona Joana. Ela se mostra confiante, uma vez que atualmente estão informados e recebem, de vez em quando, visitas do Ministério Público Federal e do Ministério do Trabalho. “Nossa vida não está 100%, mas pelo menos somos reconhecidos.”

Moradores de comunidades tradicionais pantaneiras durante a coleta de iscas na Serra do Amolar. Foto Ecoa
Moradores de comunidades tradicionais pantaneiras durante a coleta de iscas na Serra do Amolar. Foto Ecoa

O valor das RDS para a conservação ambiental

Com o passar dos anos, mitos foram desconstruídos. Por exemplo, ao contrário do que se pregava de forma equivocada, de que a permanência de pessoas em áreas de proteção era prejudicial ao meio ambiente, hoje é sabido que a maneira como os moradores das comunidades tradicionais pantaneiras utilizam os recursos celebra a sustentabilidade na região.

A ideia defendida pela Ecoa, pesquisadores e os moradores é que seja criada uma UC na categoria de Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS) na comunidade Barra do São Lourenço, que abraçará quem vive na Serra do Amolar e no Binega. Esse tipo de área protegida permite o uso de recursos naturais, a valorização do turismo, a proteção da biodiversidade e, ao mesmo tempo, dá direito de uso do território às comunidades locais sem a necessidade de desapropriação de áreas privadas. Em outras palavras, é um mecanismo legal de promoção da sustentabilidade.

O diretor da Ecoa, André Luiz Siqueira, explica que a organização, fundada em 1989, atua em áreas protegidas, alinhada às discussões internacionais sobre o papel dessas no desenvolvimento local e regional, na mediação de conflitos e na garantia dos modos de vida das comunidades tradicionais, uma pauta introduzida em diversos países na década de 1970. Antigamente, entre conservacionistas radicais, prevalecia a teoria de que para preservar a natureza, a presença humana deveria ser completamente excluída.

“No Mato Grosso do Sul, a forma como foi incentivada a última ocupação — durante a gestão de Getúlio Vargas, entre 1930 e 1945 — com a doação de terras para colonos gaúchos e pessoas de outros estados brasileiros, visando a ocupação de áreas de fronteira e do Pantanal, acentuou a invisibilidade e a expulsão daqueles que já viviam na região, como moradores das comunidades tradicionais, povos originários e quilombolas. A grande quantidade de áreas privadas em um bioma relativamente pequeno, onde poucos se dedicam à conservação do Pantanal, fez com que as raras áreas protegidas criadas até agora fossem voltadas à proteção integral. Acompanhando os debates internacionais, a Ecoa se propôs a incluir a dimensão humana no processo de criação de áreas protegidas. Por isso, defendemos o aumento das áreas destinadas ao uso sustentável, em um santuário ecológico com significativa presença humana”, pontua Siqueira.

Profissionais com mestrado e doutorado têm realizado estudos científicos que respaldam a permanência dos moradores na região, promovendo mudanças significativas no pensamento retrógrado de conservacionistas que, no passado, expulsaram as famílias da Barra do São Lourenço. André enfatiza que Mato Grosso e Mato Grosso do Sul são estados ruralistas, com posicionamentos ideológicos ultraconservadores. Para se protegerem, utilizam o poder que detêm com o objetivo de amplificar narrativas tendenciosas e perigosas, que culpam justamente aqueles que não possuem proteção política e são mais vulneráveis no tecido social do Pantanal.

A Barra é um caso emblemático, trata-se de áreas privadas em unidades de preservação. Nos anos 1990, grupos de poder aproveitaram a ausência de leis ambientais e a omissão total do Estado para, ao longo do tempo, restringir o direito dos moradores das comunidades tradicionais. E esses incidentes não se limitam àquela região. No Brasil, grandes obras de infraestrutura, como mineração, estradas, portos e a construção de hidrelétricas, contribuíram para a expulsão agressiva de moradores. O município de Altamira, no Pará, sofreu profundas consequências negativas durante e após a construção da hidrelétrica de Belo Monte.

“Precisa acontecer depressa. Se não houver uma RDS, a comunidade pode acabar. Os mais jovens estão saindo para estudar, já que a única escola da comunidade vai apenas até o nono ano. Em muitos casos, os pais acompanham os adolescentes para as cidades e acabam não voltando mais”, alerta Dona Joana.

Os guardiões do Pantanal

 Segundo a ecóloga e pesquisadora Anita Valente da Costa, a Política Nacional para o Desenvolvimento Sustentável de Povos e Comunidades Tradicionais (PNPCT), que só foi criada em 2007, é um modelo de política pública necessária para reconhecimento dos direitos e as práticas de uso sustentável existentes de comunidades tradicionais.

Anita analisa que uma série de lutas acumuladas trouxe alguns avanços para os ribeirinhos da região, entre eles a compreensão por parte do Estado de que as pessoas que ali moram são uma comunidade tradicional.

“Algo relevante a se dizer é que, apesar da interferência das Áreas de Proteção no modo de vida dessas comunidades, especialmente com a diminuição dos locais de pesca, os moradores acreditam que essas áreas preservadas são importantes. Inclusive, reconhecem que esses espaços protegem o peixe, que é a base da vida deles”, pontua a pesquisadora. Ela adiciona que as comunidades tradicionais são um dos maiores patrimônios da sociedade brasileira, pois guardam conhecimentos e técnicas únicas e são agentes potentes de conservação. Valente acredita que a união de conhecimentos pode trazer soluções mais eficientes e que, juntos, comunidade, terceiro setor, academia e outros agentes da sociedade devem pressionar os representantes eleitos a tomar decisões coerentes.

Mesmo comunidades com uma conexão íntima com as dinâmicas das águas igualmente possuem o direito de acessar serviços básicos como água, luz, internet, escola e consultas médicas. O acesso a estruturas públicas de bem-estar permite que essas comunidades vivam com maior qualidade de vida e se articulem melhor para lutar pelos seus direitos e pela natureza. “Eu sempre digo que luto pelo que elas me pedem para lutar. Se a vontade é permanecer, temos toda a base para mostrar que o Pantanal será mais conservado com os moradores do que sem eles”, afirma.

As RDS Mamirauá, criada em 1990, e Amanã, em 1998, localizadas no Amazonas, são exemplos notáveis de eficácia na conservação ambiental e no fortalecimento das comunidades ribeirinhas. Com o objetivo de promover o desenvolvimento sustentável e a preservação da biodiversidade na região do baixo rio Solimões, elas se destacam como algumas das áreas de conservação mais proeminentes da Amazônia, desempenhando um papel crucial tanto na pesquisa quanto na integração e apoio às comunidades locais.

“Nós somos raízes desta terra, nascemos aqui, nos tornamos os guardiões da Barra do São Lourenço. É fundamental para a nossa sobrevivência e sustentabilidade do Pantanal. Estamos sofrendo com os incêndios e as mudanças climáticas; no entanto, permanecemos defendendo com unhas e dentes a nossa natureza”, garante Leonora Aires de Sousa, pescadora e criadora de artesanatos a partir da fibra de aguapé na Barra do São Lourenço.

Em relação à concessão do título de RDS à Barra do São Lourenço, Siqueira declara que o estudo técnico foi concluído e que estão previstas reuniões ministeriais para formalizar os processos. Também estão previstas uma consulta pública em Corumbá (MS) e conversas estratégicas até o final de 2024.

Júlia Moa

Júlia Moa é jornalista multimídia; vencedora do prêmio Respeito e Diversidade do MPF.

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