ODS 1
Apenas 161 territórios quilombolas têm titulação definitiva
Caminho para demarcação e regularização dos quilombos é longo e burocrático e há 1.787 processos na fila
(Por Giulia Navarro, Caio Fagundes, Henrique Lima e José Roberto Caldas) – Embora a Constituição de 1988 tenha garantido aos quilombolas o direito aos seus territórios, a realidade está bem distante do que diz a lei. Existem 1.787 processos para titulação de territórios quilombolas no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), segundo dados do Observatório Terras Quilombolas. Se o ritmo de titulação persistir, serão necessários mais de dois mil anos para que todos sejam titulados. Isto se não entrar nenhum pedido novo. É o que sustenta a jornalista Maryellen Crisóstomo, uma das coordenadoras do Conaq (Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas – CONAQ) e consultora do IBGE para a realização do primeiro censo das comunidades quilombolas, realizado em 2022.
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Desde a titulação pioneira da Terra Quilombola Boa Vista, no Pará, em 20 de novembro de 1995, apenas 161 terras foram tituladas. Somente 4,3 % da população quilombola vive em terras tituladas, segundo dados do IBGE. Portanto, nada menos que 95,7% das famílias quilombolas no Brasil ainda esperam que o governo garanta a efetividade do direito assegurado na Constituição Federal. Conforme demonstrado pelo Censo Quilombola de 2022, o número de pessoas vivendo em territórios com algum reconhecimento legal, seja por parte do Incra ou dos órgãos estaduais competentes, representa 12,59% da população quilombola (o número é maior porque o processo de titulação é mais longo e consiste de várias etapas, conforme passo a passo ao fim desta reportagem). São mais de 1 milhão de pessoas vivendo em situação de insegurança territorial.
A titulação é a última etapa do reconhecimento de um território tradicional. Durante o governo Bolsonaro, a média de titulação pelo Incra foi de 5,75 por ano e, mesmo assim, algumas só aconteceram por pressões da Justiça – o ex-presidente tinha prometido não demarcar nenhum centímetro de terra indígena ou quilombola durante a campanha à Presidência, em palestra no clube Hebraica, no Rio de Janeiro. No primeiro ano de seu terceiro mandato, Lula titulou 11 comunidades quilombolas. O número é maior que a média anual de titulações ocorridas nos governos anteriores, à exceção da gestão de Michel Temer, que registrou uma média de 19,5 titulações por ano, de acordo com dados do Incra. Mesmo assim, a previsão sobre as titulações não melhorou. “A situação pode ser ainda pior porque o número de certidões de territórios quilombolas foi maior do que o de titulações”. A certificação é a segunda etapa rumo à titulação (veja os passos abaixo) e, portanto, mais ágil.
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Veja o que já enviamosO orçamento para a execução de ações necessárias à titulação segue sendo um problema não solucionado, embora tenha recebido um aumento expressivo em 2024. De R$ 749 mil do último ano do governo Bolsonaro aumentou para R$ 137 milhões, segundo a proposta de Lei Orçamentária enviada ao Congresso pelo governo. A verba é destinada para ações de Reconhecimento e Indenização de Territórios Quilombolas. ”Primeiramente, o Estado tem que titular os territórios quilombolas. O Estado sabe quem nos ameaça. Já são mais de 30 lideranças mortas no Brasil, principalmente na Bahia”, pontua Rejane Maria de Oliveira, líder do Quilombo Maria Joaquina, em Cabo Frio, na Região dos Lagos do estado do Rio. Ela está entre os 87,4% da população quilombola que vive em territórios não delimitados oficialmente. “Estamos em uma área em que a especulação imobiliária é muito forte”, completou Rejane.
O professor de história André Carvalho, secretário adjunto de Turismo, Esporte e Lazer de Tamoios (2° distrito do município de Cabo Frio), afirma que a grande dificuldade para titulação de terras na região é os quilombos provarem perante o governo e os órgãos governamentais que eles, de fato, são remanescentes dos povos ancestrais. “Os quilombos Maria Romana, Preto Forro e Espírito Santo são titulados. Eles fazem parte de um aldeamento jesuítico do século XVI que se estendia de Barra de Macaé a Maricá. Essa área foi, por muito tempo, propriedade da Igreja Católica e eles tinham registro de todos os negros escravos que eles compravam. Então é possível provar isso com documentos”, aponta. Porém, no Quilombo Maria Joaquina, a situação é diferente. Apesar de estar nas redondezas da Fazenda Campos Novos, área que fazia parte do aldeamento jesuítico e escravocrata, eles têm dificuldade em demonstrar que não foram para lá depois da libertação dos escravos, e sim ainda no período escravocrata.
Uma das consequências da falta de titulação é a insegurança gerada e possibilidade de migração da população quilombola para outras áreas, implicando em perdas na continuidade da ancestralidade. ”O Estado tem que dar subsídios. O Estado, o município, os órgãos governamentais têm que dar subsídio para que essas pessoas tenham qualidade de vida. Se essas pessoas não tiverem qualidade de vida para ficarem lá, elas vão migrar. E aí, de fato, a gente pode perder todo um aspecto cultural, ancestral, secular”, observa Carvalho.
Rejane também aponta para outro problema: a violência policial em terras quilombolas não oficializadas. As danças típicas, como o jongo, os feriados nacionais e outras tradições que traziam alegria ao quilombo estão sendo extintas quase por completo devido às ameaças. “Quando a polícia vem, a polícia vai bater nos pretinhos, né? Então um cuida do outro, mas não tem segurança pública”, aponta a líder quilombola. “Morar aqui hoje é uma luta tremenda. Garantir as terras para essas crianças, para os jovens, é uma luta diária. É uma luta que muitos estão pagando com sangue”.
No quilombo Maria Joaquina, há um ateliê para produzir peças de vestuário, como bolsas e pochetes, e arrecadar mais recursos. Uma das artesãs é Dona Landina, mãe de Rejane. “Sobrevivemos por causa da nossa resistência. A gente tem que permanecer sendo quilombola e bater no peito. Nós somos quilombolas e não desistimos. Somos descendentes não de escravos, e sim de homens e mulheres que foram escravizados aqui. Pessoas que foram sequestradas, violentadas. Atravessaram esse mar e foram separadas da família”, desabafa. “O nosso direito é violado a todo tempo. O Estado a todo momento está dando licença para grandes empresas, para os grandes empreendimentos, e a gente acaba ficando muito enfraquecido”, critica.
Para tentar minimizar o problema, o secretário André Carvalho conta sobre o projeto de turismo de base comunitária que coordena para incentivar os quilombos a se organizarem em cooperativas produtivas de artesanatos e de produtos alimentícios para captarem recursos. O maior investimento no momento, de acordo com o secretário, é o investimento na melhoria das estradas que levam aos quilombos, que podem reduzir o trajeto à metade do tempo. Rejane, no entanto, enxerga outro entrave para o desenvolvimento da comunidade quilombola em que mora: a falta de interesse dos jovens na agricultura familiar. “Minha mãe cresceu na fazenda de farinha. O cultivo de farinha já rendeu casamentos e construiu famílias e hoje você pode ver que só temos uma casa dedicada à farinha”, lamenta.
O passo a passo rumo à titulação dos quilombos
Abertura do processo: Os processos são abertos pelas Superintendências do Incra a pedido dos quilombolas ou por iniciativa do próprio Incra.
Certidão da Fundação Cultural Palmares: Para dar início ao processo de titulação, a comunidade deve obter junto à Fundação Cultural Palmares a Certidão de Registro no Cadastro Geral de Remanescentes de Comunidades de Quilombos.
Relatório Técnico de Identificação e Delimitação: O Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID) tem por objetivo identificar o território quilombola e é elaborado pela Superintendência Regional do Incra. O RTID é formado por vários estudos: o relatório antropológico, o levantamento fundiário, o mapa e o cadastro das famílias. A comunidade tem o direito de participar de sua elaboração.
Análise preliminar do Incra: O RTID é avaliado pelo Comitê de Decisão Regional (CDR) do Incra. O Comitê pode aprovar o relatório ou rejeitá-lo e exigir revisões ou complementações. Após as alterações, o RTID será novamente analisado pelo Comitê.
Publicação no DO: Uma vez aprovado, o resumo do RTID será publicado no Diário Oficial da União e no Diário Oficial do estado. O Incra notificará os ocupantes e vizinhos do território quilombola, que terão 90 dias de prazo para contestação.
Consulta a outros órgãos e entidades: O RTID é encaminhado pelo Incra para a Fundação Palmares, IPHAN, Funai, Ibama, Serviço Florestal Brasileiro, Instituto Chico Mendes, Conselho de Defesa Nacional, Secretaria de Patrimônio da União (SPU) e órgãos ambientais estaduais para que se manifestem em até 30 dias. Se algum órgão expressar alguma restrição, o Incra terá 30 dias para tomar as medidas cabíveis.
Análise da situação fundiária: Se o território quilombola estiver localizado em unidade de conservação, o Incra e o Instituto Chico Mendes deverão trabalhar juntos para garantir os direitos quilombolas. Se houver sobreposição com áreas de segurança nacional e faixa de fronteira, a Secretaria Executiva do Conselho de Defesa Nacional será ouvida. No caso de sobreposição com terras indígenas, o Incra consultará a Funai. A Fundação Palmares e a SPU serão ouvidas em todos os casos.
Envio do Processo para a Casa Civil: Se o Incra e os demais órgãos discordarem sobre o mérito da titulação (ou seja, a sua conveniência e oportunidade), o processo será encaminhado para a Casa Civil, que coordenará a busca de uma solução para o caso.
Envio do processo para a AGU: Se o Incra e os demais órgãos discordarem sobre a legalidade e validade jurídica da titulação, o processo será encaminhado para a Advocacia Geral da União, que coordenará a busca de uma solução para o caso.
Publicação de portaria no DO: O processo de identificação do território encerra-se com a publicação de portaria do presidente do Incra reconhecendo os limites da terra quilombola no Diário Oficial da União e do estado.
Demarcação Física: O Incra deverá realizar a demarcação física dos limites do território quilombola. Por meio da colocação de marcos, os limites do território serão identificados em campo.
Reassentamento de posseiros: Caso se verifique a existência de posseiros no território quilombola, o Incra deverá providenciar a sua retirada pagando indenização pelas benfeitorias podendo também promover o seu reassentamento.
Outorga dos títulos: O título é emitido em nome da associação da comunidade e determina que a terra não pode ser dividida, vendida, loteada, arrendada ou penhorada.
Registro em cartório: O processo de regularização fundiária só se encerra com o registro do título no cartório da comarca onde se localiza o território.
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O perfil Jornalismo UFF é formado pelos alunos da turma de Oficina de Webjornalismo da Universidade Federal Fluminense (UFF). Produzimos reportagens sob a coordenação da professora e jornalista Adriana Barsotti.