ODS 1
Solo mais fértil com cannabis
Pesquisadores apontam que o plantio do cânhamo realiza a biorremediação do solo, aumentando as possibilidades do seu uso na agricultura
Pesquisadores apontam que o plantio do cânhamo realiza a biorremediação do solo, aumentando as possibilidades do seu uso na agricultura
Enquanto o Congresso avalia a permissão para cultivo de cannabis sativa no Brasil para fins medicinais, científicos e industriais, pesquisadores apontam outros benefícios da planta: a cannabis melhora a saúde do solo como uma cultura de cobertura, diminuindo a necessidade de substâncias químicas nas plantações. Ela extrai e acumula metais pesados em seus tecidos, o que permite a biorremediação de solos contaminados. É o que indica a pesquisa do Rodale Institute, organização norte-americana sem fins lucrativos que apoia o movimento da agricultura orgânica. De acordo com as conclusões do estudo, o cultivo do cânhamo industrial como uma cultura de rotação melhora a estabilidade e resiliência das plantações, que se recuperam mais rapidamente, além de conter o crescimento de ervas daninhas.
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O instituto, com sede na Pensilvânia, no nordeste dos Estados Unidos, utilizou o cânhamo industrial – cannabis que possui substância psicoativa abaixo de 0,3% – como uma cultura de cobertura em uma rotação entre uma gramínea, como trigo, cevada, centeio e aveia, e leguminosas (soja, feijão ou ervilha). Em 2020, após três anos de pesquisa, foi constatado que a cannabis, em comparação com outras espécies de uso entre safras, tem crescimento mais rápido, removeu metais pesados do solo e controlou as ervas daninhas, diminuindo o tempo necessário para a preparação do solo em um plantio direto rotativo.Os rendimentos da soja e do trigo aumentaram após o cânhamo.
[g1_quote author_name=”Fabian Borghetti” author_description=”Biólogo e professor da UnB” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]É inviável e desnecessário importar óleos de CBD quando temos um enorme potencial de cultivo no Brasil. O nosso clima é incomparável para a cannabis: temperatura agradável, boa quantidade de chuvas e muitos dias de sol
[/g1_quote]Em uma entrevista por e-mail, Casey Lapham, técnica de pesquisa em testes de cânhamo industrial do Rodale Institute, aponta que o hemp pode ser uma fonte de renda extra para os agricultores, porque a fibra tem alto valor no mercado, já que pode ser utilizada na produção de tecido, bioplástico, biocombustível, remédios e, ainda, como alimento (as sementes são ricas em substâncias saudáveis como ômega 6 e 3). O cultivo de hemp é também uma alternativa à lavoura, operação agrícola que consiste em traçar sulcos na terra e que diminui a saúde do solo. Casey esclarece que é difícil estabelecer um sistema orgânico sem a preparação do solo a partir da lavoura, já que a prática é um mecanismo de contenção de ervas daninhas sem a necessidade de pulverização de produtos químicos. “O cânhamo industrial, especialmente quando é cultivado para obtenção de fibra, é bom para superar as ervas daninhas e, portanto, pode ajudar os agricultores a reduzir a quantidade de preparo do solo”, afirma a técnica do Rodale, formada em Estudos Ambientais.
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Veja o que já enviamosPara Casey, mesmo que ainda haja um estigma negativo em torno da cannabis, o que se reflete nos rígidos requisitos legais para seu cultivo, a comunidade agrícola têm se mostrado mais aberta para as possibilidades da planta. À medida que mais agricultores se interessam pelo cânhamo, as atitudes públicas começam a mudar e as barreiras legais, a diminuir. “Como é ilegal plantar cânhamo nos Estados Unidos há cerca de 80 anos, perdemos o conhecimento sobre como cultivá-lo aqui. A pesquisa nos permite correr riscos que os agricultores não seriam capazes, a fim de recuperar o conhecimento que podemos repassar a eles”, afirma a pesquisadora de cânhamo.
Cannabis em debate no Congresso
No Brasil, a comissão especial da Câmara dos Deputados que analisou o Projeto de Lei 399/15 aprovou, em junho, um parecer favorável à legalização do cultivo da cannabis no Brasil. O texto do PL trata do cultivo por pessoas jurídicas e não contempla o uso da planta na indústria têxtil, nem na construção civil (hempcrete), que já é realidade em países como Canadá, Estados Unidos e China. O projeto será levado ao plenário para votação. “É inviável e desnecessário importar óleos de CBD quando temos um enorme potencial de cultivo no Brasil. O nosso clima é incomparável para a cannabis: temperatura agradável, boa quantidade de chuvas e muitos dias de sol”, afirma o biólogo Fabian Borghetti, professor da UnB e um dos cinco cientistas de áreas como farmácia, biologia molecular e agronomia, que deram subsídios técnicos aos integrantes da comissão.
Os pesquisadores apontaram que o país tem como vantagens a imensa área cultivável e boas condições de luminosidade, temperatura e umidade. Borghetti foi chamado para fazer uma apresentação na Câmara sobre o alto potencial brasileiro para o cultivo da cannabis sativa, especialmente outdoor, que é bem menos custoso que o indoor. Segundo o biólogo, que atualmente trabalha com conservação do Cerrado, as condições climáticas brasileiras de temperatura entre 25 e 30 graus celsius e fotoperíodo em torno de 12 a 14 horas é ideal para o cultivo da cannabis. A planta é favorecida por ambientes de clima seco, com amplitude térmica, chuvas eventuais e solo poroso, características presentes nas regiões Centro-Oeste e Nordeste do Brasil. Por causa da plasticidade da cannabis, é possível selecionar subespécies que estejam mais adaptadas ao clima onde pretende-se plantar.
O professor Borghetti também destaca que, para a produção de óleos para pacientes, é indispensável um cuidado com o local de plantio para evitar a contaminação. Assim, o cultivo para fins medicinais precisa necessariamente ser orgânico, sem pesticidas ou outros agentes contaminantes do solo que possam ser absorvidos e armazenados pela planta em seus tecidos. Um levantamento realizado pela unidade Meio Ambiente da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa Meio Ambiente) em 2004 atestou que a agricultura orgânica é de 10 a 15% mais sustentável do que a convencional.
O filho de Fabian Borghetti foi diagnosticado com câncer no cérebro no fim de 2018. A partir daí, o biólogo – que já havia morado na Califórnia, berço da vanguarda na pesquisa com a cannabis medicinal – começou a investigar o potencial terapêutico da cannabis em doenças oncológicas, seja no combate ao tumor, seja aos efeitos colaterais do uso de quimioterápicos. Hoje, seu filho faz uso do óleo de cannabis, importado com autorização da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Borghetti participa da equipe de pesquisas da Aliança Verde, associação de pacientes de Brasília que utilizam o óleo derivado da cannabis no tratamento de doenças como autismo, estresse pós-traumático e dores crônicas. A associação cultiva atualmente em território nacional mediante um habeas corpus preventivo.
Redes colaborativas apoiam pacientes
As associações de pacientes desempenham o papel de garantir a autonomia e a dignidade dos pacientes que buscam um tratamento justo e acessível com a cannabis. É o que acredita o presidente e fundador da Aliança Verde, Rafael Ladeira. Ele destaca a importante função social de redes colaborativas de pacientes e pesquisadores da cannabis medicinal. “Mesmo com grandes dificuldades de todas as partes: legais, jurídicas e de mão-de-obra, as associações vêm possibilitando o tratamento para milhares de pacientes”, afirma.
Pós-graduando em plantas medicinais pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Ladeira acrescenta que os óleos artesanais das associações são considerados mais seguros do que os extratos purificados ou sintéticos, que podem causar a necessidade de aumento de dose. O óleo integral de cannabis, também conhecido como full spectrum, tem sua atividade farmacológica a partir da relação sinérgica entre todos os componentes da planta e possui um efeito superior se comparado aos compostos purificados. Para o fundador da Aliança Verde, com pesquisa científica, é possível desenvolver genéticas que atendam a necessidade química desejada para cada paciente.
Rafael Ladeira também reitera que a limitação das pesquisas com cannabis no Brasil atrapalha quem necessita de um tratamento adequado. Atualmente, a Aliança Verde está desenvolvendo um projeto de extensão junto ao Laboratório de Termobiologia da UnB para avançar nas pesquisas com a cannabis e melhorar os processos de produção dos óleos. “Nós estamos fazendo um papel que o Estado não faz e que deveria garantir. Essa ausência de regulamentação viola o nosso direito ao cultivo de cannabis no Brasil”, destaca Ladeira.
A Aliança Verde é apenas uma das associações de pacientes sem fins lucrativos que cultivam cannabis sativa para fins medicinais no Brasil a partir de habeas corpus preventivo e coletivo. Na fazenda Sofia Langenbach, em Paty do Alferes, Região Serrana do Rio, a Associação de Apoio à Pesquisa e Pacientes de Cannabis Medicinal (Apepi) promove o cultivo orgânico da cannabis para fins medicinais a partir de práticas de sustentabilidade.
Na Justiça pelo direito de plantar
A associação foi fundada em 2013 por Margarete Brito, a primeira pessoa a conseguir um habeas corpus no Rio de Janeiro em 2016 para produzir o óleo derivado da cannabis e tratar a sua filha Sofia, diagnosticada com uma síndrome genética rara, chamada CDKL5, que causa epilepsia. Apenas em 2020, a Apepi conseguiu autorização da Justiça para plantar cannabis, realizar pesquisas e desenvolver e distribuir medicamentos à base de maconha, a partir da decisão do juiz Mario Victor Braga de Souza, da 4ª Vara Federal do Rio de Janeiro. Até então, o cultivo era enquadrado na Lei de Drogas como uma atividade criminosa. Atualmente, a Apepi tem parcerias de pesquisa para análise, dosagem e procedimentos farmacêuticos com a Fiocruz e com a Unicamp, e desenvolve o Projeto 10 mil Plantas, para extrair o óleo derivado da cannabis.
A associação também recorre a outras medidas de comprometimento socioambiental para transformar o antigo pasto em um cultivo sustentável, como o reflorestamento com mais de mil mudas de 30 espécies de árvores de vegetação nativa, coleta seletiva e compostagem. Margarete e a Apepi lutam para disponibilizar os óleos de cannabis para pessoas com doenças raras e aquelas que precisam tomar diversos remédios diariamente para controlar sintomas. Com o óleo, muitos medicamentos fortes podem ser substituídos por apenas um extrato vegetal.
A pioneira no plantio de cannabis em solo brasileiro foi a Associação Brasileira de Apoio à Cannabis Esperança (Abrace Esperança), na Paraíba, que recebeu o Habeas Corpus Preventivo da Justiça em 2017 para produzir e fornecer derivados da planta para seus associados para fins medicinais. Hoje, a Abrace cultiva mais de 10 mil pés de maconha por mês. O advogado criminal Italo Alencar, diretor da Rede Jurídica pela Reforma da Política de Drogas (Reforma) estima que há mais de 300 liminares concedidas pela justiça para o plantio individual de cannabis para o uso medicinal.
Ouve-se falar de cannabis indica, sativa e ruderalis, cânhamo e hemp, mas na verdade trata-se de uma planta única: cannabis e de suas subespécies. A cannabis é uma planta com plasticidade, o que permite respostas adaptativas funcionais em relação às condições ambientais apresentadas no seu cultivo.
O cânhamo industrial ou o hemp é a cannabis com baixo teor de substância psicoativa, ou THC. Ele tem fibras de alta qualidade e seus produtos têm menor impacto ambiental quando comparados aos do algodão. As plantas são mais altas e cumpridas, com mais galhos, e é geralmente cultivada de forma outdoor. O hemp tem potencial para usos na agricultura e na indústria, mas também pode ser usado de forma terapêutica pois é rico em CBD.
Quando se fala do uso medicinal, há de 90 a 100 tipos de canabinóides diferentes que podem servir ao uso terapêutico, inclusive a única substância psicoativa presente na planta: o THC. É possível trabalhar essa plasticidade para obter produtos diversos com pouco ou mais THC e CBD, dependendo da finalidade do produto obtido. O cultivo indoor, muito utilizado em países mais frios e com menos grau de insolação, é mais custoso porque demanda equipamentos específicos, mas possibilita um maior controle de cada subespécie.
Gabriela Cunha é estudante de jornalismo na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e de história da arte na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Jornalista, artista e designer: faz de tudo um pouco. Acredita no poder transformador da arte, da cultura e da acessibilidade da informação.