ODS 1
Brasil registrou mais de 12 mil crimes de ódio em 2019
Racismo, LGBTfobia e ataques a mulheres encabeçam a lista de levantamento realizado por ONG, que aponta aumento de 1,95% em relação de 2018
Era madrugada de domingo, 1º de setembro de 2019, quando um grupo de quatro homens e uma mulher lançou spray de pimenta e bomba de gás lacrimogênio no Al Janiah, premiado restaurante palestino na cidade de São Paulo que emprega refugiados da Palestina e da Síria, e imigrantes de países como Cuba e Argélia, além de militantes antifascistas. Ninguém se feriu. Mais de um ano antes, em 19 de março de 2018, moradores de Macajuí, no estado de Roraima, expulsaram venezuelanos de um prédio abandonado usado como abrigo e atearam fogo em seus pertences. Também não houve feridos. Os ataques ao Al Janiah e ao abrigo em Roraima são exemplos de crimes de ódio – quando a motivação por trás da violência praticada contra uma pessoa ou um grupo de pessoas é o preconceito.
Em 2019, o Brasil registrou 12.334 crimes desta natureza, número levantado pelo Mapa do Ódio, lançado em 25 de janeiro pela ONG Words Heal the World. Em média, foram 33 registros por dia. O levantamento, realizado pelo segundo ano consecutivo, mostra um crescimento pequeno, de 1,95%, em relação a 2018, quando o número foi de 12.098.
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Veja o que já enviamosPara chegar aos dados, os pesquisadores utilizaram registros das polícias dos estados e do Distrito Federal de crimes motivados por preconceito de raça, orientação sexual – tendo a população LGBTI+ como alvo -, religião, origem e gênero (especificamente, crime de feminicídio), baseando-se no Código Penal, na Lei do Racismo (Lei 7.716) e na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que em 2019 determinou que a Lei do Racismo se aplica a casos de trans e homofobia.
Além disso, de forma complementar, recorreram aos registros de denúncias de ofensas motivadas por preconceito e de tentativas de feminicídio feitas ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Neste caso, entre 2018 e 2019, houve um aumento expressivo, de cerca de 80%, no número de denúncias, passando de 5.096 para 9.195. “O crime de ódio não necessariamente vai deixar cicatrizes físicas, mas ele deixa marcas psicológicas na vítima”, diz Beatriz Buarque, coordenadora executiva da Words Heal the World.
[g1_quote author_name=”Jurema Werneck” author_description=”Diretora-executiva da Anistia Internacional Brasil” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]
O racismo sempre foi isso que muita gente não via e está vendo agora. Ele mata de forma perversa, descarada e cruel, como matou George Floyd e Beto Freitas. Ataca grupos inteiros nas redes sociais, produz violência a cada esquina e dentro de casa
[/g1_quote]Pelo segundo ano consecutivo, São Paulo é o estado que concentra o maior número de registros policiais de atos criminosos motivados por preconceito, com 2.545 casos, seguido por Rio Grande do Sul (1.830), Paraná (1.558), Rio de Janeiro (932) e Pernambuco (733). No final do ranking, estão Acre (11), Rio Grande do Norte (28) e Amazonas (42). Se, em 2018, a Região Sul tinha todos os estados entre os cinco maiores índices de registro de crime de ódio, em 2019, Santa Catarina caiu para a nona posição (304).
Os registros policiais cresceram em 18 estados, com destaque para a região Norte, e mais unidades federativas registraram crimes por diferentes tipos de preconceito. No que diz respeito às denúncias feitas ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, foram os três estados mais populosos e urbanizados do Brasil que registraram os maiores índices: São Paulo (1.784), Rio de Janeiro (1.737) e Minas Gerais (919).
Racismo lidera motivação de crimes de ódio
Como no ano anterior, o tipo de crime de ódio mais comum nos registros policiais no Brasil em 2019 foi o motivado por preconceito racial – 8.979 casos frente a 8.525 registros em 2018. Embora o estado governado por João Dória lidere nos registros de crimes de ódio no geral, o Rio Grande do Sul lidera no número de delitos cometidos por racismo, seguido por Paraná, São Paulo, Rio de Janeiro e Goiás. O crime de ódio racial aumentou em 19 estados.
“O racismo sempre foi isso que muita gente não via e está vendo agora. Ele mata de forma perversa, descarada e cruel, como matou George Floyd e Beto Freitas. Ataca grupos inteiros nas redes sociais, produz violência a cada esquina e dentro de casa”, diz Jurema Werneck, uma das fundadoras da ONG Criola e diretora executiva da Anistia Internacional Brasil.
Em segundo lugar, estão os atos criminosos motivados por preconceito com base na orientação sexual e identidade de gênero da vítima, tendo como alvo a comunidade LGBTI+. Foram 1.732 casos, uma queda frente aos 2.165 de 2018, apesar da jurisprudência do STF que passou a enquadrar homofobia e transfobia na Lei do Racismo. Embora o número geral tenha caído, os registros desse tipo de crime se alastraram pelo país, passando de 9 para 15. O Sudeste é a região que concentra mais casos.
Em seguida, estão atos motivados pelo ódio contra as mulheres: 1.314 feminicídios em 2019, quando houve aumento de 15% na comparação com o ano anterior. Em 2018, foram 1.141 registros. Os estados com mais casos são, nesta ordem, São Paulo, Minas Gerais e Bahia. Já junto ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, as tentativas de feminicídio foram as denúncias mais registradas, com 7.727 casos – único tipo de crime identificado pela pasta em todos os estados. O número mais que triplicou na comparação com 2018, quando houve 2.211 denúncias. A Ouvidoria Nacional dos Direitos Humanos informou que encaminha os casos para a rede de proteção, que conta com equipamentos como delegacias, conselhos, Ministério Público e centros de referência para assistência social, considerando a violação, a vítima, o suspeito e o local.
[g1_quote author_name=”Beatriz Buarque” author_description=”Diretora-Executiva da Words Heal the World” author_description_format=”%link%” align=”right” size=”s” style=”simple” template=”01″]
Não há uniformidade. Alguns estados registram quando o homicídio é motivado por homofobia, outros não. Alguns têm números de intolerância religiosa, outros não têm por que colocam como crime racial. É claro que há relação entre preconceito racial e religioso, mas, na hora do registro, é preciso diferenciar
[/g1_quote]A motivação por ódio à religião vem em quarto lugar no número de registros nas delegacias, com 226 casos. Já junto ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, essas ofensas foram mais frequentes, com 407 denúncias. Diferentemente das secretarias estaduais de segurança pública, a pasta informa sobre as doutrinas seguidas pelas vítimas destes delitos. Pelo segundo ano consecutivo, fiéis de Umbanda, Candomblé e outras crenças de matriz africana são os mais afetados. Chama atenção também o aumento de denúncias ao Ministério de crime de ódio religioso em 19 estados, com destaque para Goiás, que passou de 7 para 32.
No que diz respeito aos delitos praticados por ódio à origem, em meio à crise dos refugiados, os registros policiais quase dobraram, passando 47 em 2018 para 83 em 2019. Minas Gerais, Piauí, Roraima e São Paulo apresentaram crimes desta natureza. Estes dois últimos foram os únicos estados que identificaram a nacionalidade das vítimas. Elas eram de Venezuela, Síria, Peru, Argentina, Colômbia, El Salvador, Coreia e do Brasil, vindas de outros estados. Junto ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, não há dados de denúncia de ofensas com base na origem.
De todos os crimes de ódio registrados no país em 2019, 1.343 foram homicídios, sendo 1.314 feminicídios e 28 mortes cujas vítimas pertenciam à comunidade LGBTI+. “Não há uniformidade. Alguns estados registram quando o homicídio é motivado por homofobia, outros não. Alguns têm números de intolerância religiosa, outros não têm por que colocam como crime racial. É claro que há relação entre preconceito racial e religioso, mas, na hora do registro, é preciso diferenciar. O Mapa também evidencia essas incoerências que dificultam a elaboração de políticas públicas”, diz Beatriz.
Crimes de ódio são subnotificados
[g1_quote author_name=”Adriana Dias” author_description=”Antropóloga e estudiosa do extremismo no Brasil” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]
Crime de ódio não é sinalizado assim no Brasil, com exceção do feminicídio. Enquanto a gente não tiver uma tipificação, realmente vai haver uma subnotificação enorme
[/g1_quote]Os pesquisadores alertam que os números não necessariamente refletem a realidade da prática de crimes de ódio, sendo necessário levar em consideração a subnotificação e diferenças entre os estados, como o tamanho da população, preparo e a infraestrutura disponível para as equipes de segurança pública na hora de realizar os registros. São Paulo, por exemplo, é o estado mais populoso, além de entregar dados de registros policiais mais detalhados que outros locais.
“Os crimes registrados parecem estar mais dispersos. Isso pode indicar que eles estão ficando mais frequentes em outros estados e/ou as secretarias estão registrando de forma mais consistente este delito”, avalia Beatriz, que segue: “Crime de ódio não é um conceito muito difundido, então muitas vezes as pessoas podem ser vítimas, mas elas não sabem disso, ou não sabem como reportar, a qual delegacia ir, como denunciar. Outra possibilidade é que saibam, mas na delegacia não há preparo para receber este tipo de denúncia, com desencorajamento ao registro e questionamentos por parte dos policiais. Por natureza, os crimes de ódio têm problema de subnotificação”.
Ela defende o esclarecimento à população sobre os crimes de ódio, a divulgação de mecanismos de denúncia, e o treinamento de equipes de segurança pública como estratégias para superar a subnotificação. Já Adriana Dias, doutora em Antropologia Social pela Universidade Federal de Campinas (Unicamp), que estuda extremismo no Brasil, destaca que um dos obstáculos para que os dados registrados pelas polícias reflitam a realidade de forma mais fiel é a ausência da tipificação do crime de ódio, sob este termo.
“Crime de ódio não é sinalizado assim no Brasil, com exceção do feminicídio. Existe o crime de racismo, com a qualificadora relativa ao nazismo, a lei do feminicídio, este sim tipificado como crime de ódio, e ano passado o STF equiparou a homofobia ao crime de racismo. Enquanto a gente não tiver uma tipificação, realmente vai haver uma subnotificação enorme”, afirma ela.
Há projeto de lei (n; 7582 de 2014) de autoria da deputada federal Maria do Rosário (PT/RS), que propõe definir os crimes de ódio e intolerância, e criar mecanismos para coibi-los. Além disso, o projeto de lei (nº 672, de 2019) em trâmite no Senado, altera a Lei do Racismo para inclusão dos crimes de discriminação ou preconceito de orientação sexual e identidade de gênero. E também no Senado está a Convenção Interamericana contra o Racismo, que, se for aceita pelos senadores e sancionada pelo presidente, se tornará emenda constitucional, estabelecendo o compromisso do Brasil na prevenção e combate ao racismo e à intolerância.
Para Beatriz, o Mapa do Ódio é um instrumento para tornar visível a gravidade e as fragilidades envolvendo os crimes motivados por preconceito no Brasil. “Em países europeus e nos Estados Unidos, existe forte movimento para esclarecer o que é crime de ódio e difundir os canais de denúncia. No Brasil, temos isso pulverizado por tipos de preconceito. Mas, quando se trata do conceito amplo de crime de ódio, ainda somos muito incipientes e o intuito do Mapa do Ódio é chamar atenção para isso. Como vamos combater, se não temos uma noção, mesmo que periférica, por causa da subnotificação, da dimensão do problema? Para as pessoas que procuram as autoridades para denunciar, é preciso ter um treinamento para receber esta vítima de forma adequada, acolhê-la e registrar os crimes da forma correta”.
Aumento do extremismo e do discurso de ódio no país
Na opinião de especialistas, há uma relação entre os crimes de ódio e o aumento do extremismo e da circulação de discursos de ódio na sociedade, intensificada pelo uso cada vez mais intenso das redes sociais pela população. A pesquisa de doutorado de Adriana Dias encontrou, também em 2019, 334 células extremistas dispostas a cometer atos de violência contra diferentes grupos sociais no país. De acordo com o mapeamento, a maioria das células era apoiadora de Jair Bolsonaro. Aquelas que não se alinhavam ao presidente o faziam por não considerá-lo radical o suficiente.
“O discurso de ódio é centrado numa crença equivocada de meritocracia, que presume que todos temos as mesmas condições de obtermos os mesmos sonhos, o que não é verdade porque partimos de lugares de privilégios diferentes. Ele também é alimentado pela ideia de que outros são responsáveis pela infelicidade e as dificuldades enfrentadas pelo mundo. O terceiro elemento que sustenta o discurso de ódio é a masculinidade tóxica, que promove cultura de estupro, gera discurso anti-LGBTI+ e teve um exemplo recente, com o grupo que invadiu o Capitólio, nos Estados Unidos. O discurso de ódio, por sua vez, é o que sustenta o extremismo”, explica a pesquisadora, que completa: “Quando o discurso afeta a dignidade humana das pessoas, deve ser criminalizado”.
[g1_quote author_name=”Priscilla Silva Laterça” author_description=”Advogada e pesquisadora de Direito e Tecnologia” author_description_format=”%link%” align=”right” size=”s” style=”simple” template=”01″]
É importante que o Estado atue aplicando a legislação existente para combater crimes de ódio na internet. Além disso, temos visto as plataformas mais engajadas a criar ferramentas para coibir, em resposta a uma cobrança da sociedade
[/g1_quote]Como arena fundamental de socialização hoje, a internet e, mais especificamente as redes sociais, guardam características que acabam por potencializar a circulação de discursos preconceituosos que, por vezes, incitam a violência. “A sensação do anonimato e o potencial de viralização da informação característicos da internet acabam fazendo deste espaço um ambiente propício”, explica Priscilla Silva Laterça, pesquisadora de Direito e Tecnologia do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio e doutoranda da PUC-Rio.
Para ela, a solução está num esforço coletivo envolvendo o Estado, as empresas responsáveis pelas plataformas digitais e a sociedade civil: “É importante que o Estado atue aplicando a legislação existente para combater crimes de ódio na internet. Além disso, temos visto as plataformas mais engajadas a criar ferramentas para coibir, em resposta a uma cobrança da sociedade. Por outro lado, é importante atuar educando a população sobre como denunciar discursos de ódio, vazamento de fotos íntimas e outras violações que se dão no ambiente online. As ONGs têm um papel fundamental nesta frente”.
As reflexões sobre o combate ao discurso de ódio esbarram inevitavelmente no debate sobre o direito à liberdade de expressão. Para ajudar a orientar e esclarecer os limites entre um e outro, a FGV Direito SP organizou o Guia para Análise do Discurso de Ódio. Além da intensificação da circulação de discursos preconceituosos, as redes sociais se tornaram nos últimos anos arena para a aplicação de estratégias de comunicação por políticos que propagam ideias impregnadas de ódio.
João Pedro Favaretto Salvador, pesquisador do Centro de Ensino e Pesquisa em Inovação da FGV Direito SP e um dos organizadores do guia, explica que estas figuras assumem um papel relevante no alcance e no engajamento dessas mensagens: “É difícil a gente ignorar a ascensão de líderes políticos que adotam discurso extremista nestas redes. A gravidade do discurso de ódio e como ele se propaga é diretamente proporcional à relação entre a posição do orador e a audiência dele. Não dá para fingir que o post de um cidadão comum vai ter o mesmo alcance de uma figura política de projeção, como Trump e Bolsonaro”, afirma João Pedro, destacando que as medidas adotadas pelas plataformas de mídias sociais para coibir a propagação de discursos de ódio estão evoluindo de forma positiva, na medida em que este debate avança também na sociedade, mas cobra mais transparência das empresas na aplicação destas regras.
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Jornalista, com mais de dez anos de experiência em redação e nas áreas de Comunicação de organizações internacionais da sociedade civil. Foi repórter do jornal O Globo, contribuiu como freelancer em veículos de mídia alternativa, e atuou na ActionAid Brasil e na Anistia Internacional Brasil, onde coordenou a área de Comunicação e Campanhas. Atualmente, é consultora de mídia do Fundo Jovens Feministas Frida. Possui mestrado em Comunicação e Saúde pela Fiocruz.
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