ODS 1
Arteiros da Cidade de Deus
Grupo Artístico e Cultural Arteiros
Aos 25 anos, Débora Oliveira sentiu que tinha chegado o momento de dar um rumo à sua vida. E o primeiro passo dessa jornada, que ela chama de “crescimento pessoal”, foi retomar o caminho da sala de aula. “Não tinha noção do curso que ia fazer, só sabia que precisava voltar a estudar”.
Débora mora na Cidade de Deus, uma das maiores e mais violentas favelas do Rio de Janeiro, onde os indicadores sociais estão entre os mais dramáticos da cidade. Desde que completou o ensino médio, seis anos antes, estava sem estudar. E ela sabia que para encarar um vestibular ou a prova do Enem em condições de igualdade com milhares de candidatos seria necessário um reforço escolar. Porém, como pagar um curso com o salário de recepcionista administrativa de um laboratório?
Mas, na Cidade de Deus, tem uma Rua da Luz. E, na Rua da Luz, tem um galpão, onde a parede branca é ilustrada com uma utópica obra de grafite mostrando a favela banhada pelos raios do Sol, sob um pacato céu azul. As letras estilizadas dão o nome ao lugar: “Arteiros”. Uma ONG que surgiu para entreter a garotada durante as férias escolares e que foi adotada pela comunidade. Tanto que lá, todos são voluntários. E, entre as atividades que os Arteiros oferecem, uma se encaixava perfeitamente nos planos de Débora: o curso comunitário pré-vestibular.
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Veja o que já enviamos“Descobri o projeto através do Facebook. E ainda tive um exemplo na rua onde moro: a Ana Cláudia, que fez o pré-vestibular e passou para Serviço Social, na Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro). Procurei os Arteiros pra me inscrever”, lembra Débora. Muito mais do que preparar a Débora para as provas, o projeto mostrou-lhe o caminho a seguir na vida. “O pré-vestibular nos Arteiros enfrenta muitas dificuldades, como todo e qualquer projeto que se mantém sem patrocínio e funciona dentro de uma favela, né? Não é fácil ser aluno nos Arteiros, tem que persistir. Mas é muito gratificante ao mesmo tempo. Fazer parte daquele espaço é uma experiência muito enriquecedora, é um aprendizado pra vida. E foi exatamente estar ali que me fez escolher Ciências Sociais”, contou Débora, uma das aprovadas no vestibular 2018 da Uerj. Hoje, ela cursa o primeiro período.
“Antes dos Arteiros, eu nunca tinha participado de um projeto social, mesmo morando aqui na Cidade de Deus a vida toda. Lá, eu entendi que precisava ocupar espaços como aquele, senti a necessidade de entender a fundo o funcionamento da sociedade pra fazer algo por quem tá vindo atrás de mim, sabe? Escolher Ciências Sociais foi pela certeza de que, em algum momento, eu vou voltar pra fazer algo pelo lugar que me abriu os olhos pro mundo, que tem uma enorme parcela na minha construção social e pessoal”.
[g1_quote author_name=”Débora Oliveira” author_description=”ex-aluna da ONG Arteiros” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]Antes dos Arteiros, eu nunca tinha participado de um projeto social, mesmo morando aqui na Cidade de Deus a vida toda. Lá, eu entendi que precisava ocupar espaços como aquele, senti a necessidade de entender a fundo o funcionamento da sociedade pra fazer algo por quem tá vindo atrás de mim, sabe? Escolher Ciências Sociais foi pela certeza de que em algum momento eu vou voltar pra fazer algo pelo lugar que me abriu os olhos pro mundo, que tem uma enorme parcela na minha construção social e pessoal
[/g1_quote]O Grupo Artístico e Cultural Arteiros surgiu em 2010 na Cidade de Deus como uma colônia de férias teatral para crianças e adolescentes. A ideia do cineasta Rodrigo Felha (“5xFavela – Agora Por Nós Mesmos”, “Favela Gay”, “5xPacificação”, entre outros) e dos atores Fernando Barcellos e Ricardo Fernandes, todos “crias” da comunidade, era usar a “arte como válvula de escape para aquilo que vivenciavam no território”. A iniciativa fez tanto sucesso que a colônia de férias transformou-se em curso regular de teatro, com aulas semanais na quadra da Escola de Samba Coroado de Jacarepaguá. Foram dois anos adequando o horário das aulas de teatro à agenda carnavalesca até que os Arteiros conseguiram um imóvel da Fundação Leão XIII, instituição assistencialista do Governo do Estado, dentro da comunidade. No local, abandonado havia anos, funcionara uma creche. “Estava muito sujo, com muitos móveis e materiais de obra largados. Fizemos um grande mutirão, deixando minimamente receptivo para os alunos e trazendo o sentimento de pertencimento para todos os envolvidos, professores, pais, alunos e colaboradores”, explicou Rodrigo Felha.
O problema é que, depois de verem o local modificado, diretores da Fundação Leão XIII pediram o imóvel de volta. “Foi uma comoção na comunidade. Decidimos mandar um e-mail para o governador do estado pedindo a interferência dele no assunto. No dia seguinte, a gente recebe a resposta do governador, com umas três autoridades copiadas na mensagem, que era bem sucinta: ‘Que porra é essa?’”.
A reação do então governador Sérgio Cabral Filho acabou com as pretensões dos burocratas do governo e os Arteiros se mantêm até hoje no local. Cabral, que hoje paga seus pecados em uma penitenciária de Bangu, também teve seus gestos de nobreza.
Desde então, os Arteiros tem diversificado as atividades, todas gratuitas, e voltadas para o desenvolvimento das pessoas da comunidade, como as que envolvem a educação e a lucidez social. Além da “Oficina de Teatro”, embrião da ONG, tem o projeto “Cine Arteiros”, exibindo filmes com temas sobre racismo, feminismo e gênero, entre outros, sempre seguidos de debates; “Desenrolo”, onde pensadores, intelectuais, ativistas, artistas e formadores de opinião realizam debates públicos sobre questões que afligem a sociedade e levantam pontos de vistas a partir de suas especificidades; e o “Experimenta”, que acontece na Lona Cultural de Jacarepaguá, onde qualquer pessoa tem oito minutos para apresentar o que quiser no palco. Uma divertida loucura!
Uma das coisas legais dos Arteiros é que os ex-alunos não se desvencilham do grupo. Alguns se transformam em professores, como Sther Muniz, responsável pelas aulas de yoga, e as atrizes Emilly Amaral, Jéssica Sá e Sandy Assunção, ex-alunas que hoje são instrutoras da oficina de teatro. Os Arteiros já fizeram intercâmbios internacionais e montaram espetáculos que ficaram em cartaz em teatros da cidade, participando de premiações e ganhando algumas como “Arlequim”, prêmio do Festival de Teatro do Rio de Janeiro, com a peça “O que será de nós daqui a 4 anos”.
Este ano, os Arteiros já montaram o novo pré-vestibular para as provas do final do ano de 2019. Apesar de todo o empenho e apoio da comunidade, o grupo enfrenta muitas dificuldades. “A gente está com este problema aí, um problema bom, que é a falta de carteiras”, conta Rodrigo Felha. Segundo ele, a ONG tem 30 carteiras escolares para a turma do pré-vestibular, cujas aulas começaram em 18 de março. O “problema bom” é que são cerca de 120 alunos matriculados. “A gente não vai conseguir ter os 120 diariamente, sempre tem um que falta por causa do trabalho. Mas a gente acredita que a média da turma pode chegar a 70 alunos, diariamente. Vamos ter que improvisar”, prevê um dos fundadores dos Arteiros.
Pode não ter carteira para todo mundo, mas mestre não vai faltar. É o que garante o professor Remo Jesus da Silva Santos, 29 anos, que mesmo morando em Japeri, na Baixada Fluminense, faz questão de ir duas vezes por semana à Cidade de Deus lecionar Gramática Normativa e Redação, sem cobrar nada por isso. “Eu vi uma publicação no Facebook deles, dizendo que precisavam de professor. Eu estava ainda terminando a faculdade, mas já tinha experiência em dar aula. E um pré-vestibular solidário sempre me chamou atenção pela beleza que é transformar a vida de alguém na vida que ele quisesse”, justificou o professor Remo, que é baiano e só conhecia a Cidade de Deus através do filme. “Eu não sabia chegar lá. Demorei umas 3 horas. Eu saí do trabalho e fui pra lá e não tinha Google Maps que ajudasse. Por final, peguei uma moto. Quando finalmente cheguei perto, a moto passou por uma barreira com homens armados perto dela. Fiquei com medo lógico. Eles pararam o mototáxi e me perguntaram quem eu era e pra onde eu estava indo. Expliquei tudo calmamente me identifiquei como professor e eles já sabiam desse projeto e não fizeram mais perguntas. Até que eu achei o local. Não conhecia ninguém na comunidade”, contou o professor. Apesar de chegar em casa mais de meia-noite para acordar cedo no dia seguinte, Remo não pensa em abandonar o pré-vestibular. “É tudo voluntário. Quem está ali é por amor mesmo. Eu vi que naquela sala havia interesse desses jovens em querer mudar suas vidas e eu, como professor e ser humano, tentava e tento passar que aquilo no quadro não servia só pra uma prova, mas para a vida”.
Wilson Aquino é repórter e autor do livro Verão da Lata (editora Leya)