ODS 1
A filosofia das próteses
Avanço da performance humana reacende debate sobre ética, iniciado após a I Guerra
(Marcelo de Araujo*) – Nas Paralimpíadas do Rio, corredores disparam nas pistas usando lâminas conhecidas como Flex-Foot. Enquanto isso, estudantes tomam “drogas inteligentes” e usam dispositivos de melhoria cognitiva para obter melhor desempenho acadêmico.
Estes recentes avanços na ciência e na tecnologia levaram a muita discussão sobre a ética da melhoria da performance humana, dando a impressão de que estamos num momento de definição de uma nova era, na qual o próprio conceito de “humano” é desafiado. Não são preocupações novas. Considere, por exemplo, o desenvolvimento e a produção em massa de próteses cem anos atrás.
[g1_quote author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”solid” template=”01″]O artista austríaco Raoul Hausmann, por exemplo, expressou sua preocupação sobre a condição dos amputados que recebiam próteses. Argumentava que os trabalhadores seriam explorados, e não beneficiados. Num pequeno artigo intitulado “The Prosthetic Economy”, publicado em 1920, ele sarcasticamente previu que, como a “prótese nunca se cansa”, a “jornada de trabalho de 25h” acabaria por se tornar a norma.
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Veja o que já enviamosA volta de milhares de soldados da I Guerra Mundial, com graves deficiências físicas, levou engenheiros, médicos e políticos a pensar sobre formas de devolvê-los à força de trabalho. Alemanha e França o fizeram com a produção em massa e distribuição em larga escala de próteses. A discussão pública sobre os benefícios disso era tão intensa na Europa, e tão comum a visão de homens com membros artificiais, que alguns historiadores falam da emergência de uma figura simbólica durante o entre guerras: o “homo prostheticus”. Muitos confiavam que uma nova geração de próteses permitiria aos amputados retomar seu trabalho, talvez mais produtivos que antes.
Um livreto publicado pela Cruz Vermelha em 1918, “Reconstructing the Crippled Soldier” (Reconstruindo o soldado aleijado) mostrava várias fotos de deficientes com suas próteses semelhantes a ferramentas. O autor chegava a proclamar: “Não há mais aleijados!” Outro artigo sobre as novas próteses, publicado num jornal brasileiro em 1918, chegava ao extremo de sugerir que, graças aos avanços científicos da era moderna, um homem em boa saúde poderia se tornar um super-homem.
As próteses desenvolvidas e produzidas em massa no entre guerras não pretendiam imitar a anatomia do corpo humano. Eram concebidas para funcionar como ferramentas. O engenheiro francês Jules Amar era um dos líderes desse conceito. Em 1917, ele argumentou que o propósito de uma prótese não era substituir um membro, mas desempenhar uma função específica. A prótese poderia “copiar” a anatomia do corpo humano, mas não deveria ser uma “escrava da natureza”.
Mas Amar reconheceu que, às vezes, a estética era importante. Um vendedor, por exemplo, deveria ter boa aparência. Deveria ter ambas as mãos, mesmo que não pudesse segurar algo com elas. Por isto, as “próteses científicas” que Amar desenvolveu apresentavam diferentes acessórios, dependendo da tarefa a ser executada por seu dono. Havia mãos de madeira que podiam ser colocadas na prótese, dependendo do ambiente social. Nas fábricas, a mão de madeira era desnecessária, pois a função estética do corpo humano era irrelevante e outras ferramentas, mais práticas.
O enfoque funcional de Amar foi depois adotado na Alemanha, onde o engenheiro Georg Schlesinger foi responsável por supervisionar a produção e distribuição em massa de próteses a um enorme contingente de deficientes. Schlesinger achava que, desde que a prótese pudesse funcionar como um braço humano, por exemplo, não importava sua aparência.
Mas nem todos eram tão otimistas. O artista austríaco Raoul Hausmann, por exemplo, expressou sua preocupação sobre a condição dos amputados que recebiam próteses. Argumentava que os trabalhadores seriam explorados, e não beneficiados. Num pequeno artigo intitulado “The Prosthetic Economy”, publicado em 1920, ele sarcasticamente previu que, como a “prótese nunca se cansa”, a “jornada de trabalho de 25h” acabaria por se tornar a norma.
Outros artistas de língua alemã também reagiram à ascensão do “homo prostheticus”. Não viam os novos membros como símbolos do progresso científico, mas como um claro sinal da desumanização das pessoas. Para pintores como Otto Dix, George Grosz, Heinrich Hoerle e Rudolf Schlichter, o foco funcional em relação às próteses estava transformando ex-combatentes em máquinas, não em seres humanos.
Várias pinturas dos anos 1920 e 1930 descrevem de forma grotesca homens tentando se entender com seus membros artificiais. A ideia era criticar a “reconstrução” dos veteranos de guerra e pôr em dúvida o conceito de que a ciência e a tecnologia tinham todas as respostas para os deficientes.
De volta ao debate atual, alguns filósofos consideram o aprimoramento humano, no sentido que aqui falamos, moralmente objetável. Acreditam que não é natural a tentativa de estender nossas capacidades físicas e cognitivas além dos limites considerados “normais”. Para filósofos como Michel Sandel, Francis Fukuyama e Jürgen Habermas, o aperfeiçoamento da pessoa, no sentido que aqui tratamos, é uma ameaça à própria natureza humana. Será que nós realmente nos desumanizamos quando damos a nossos corpos funções novas, não naturais?
O enfoque funcional, de um século atrás, criticado por artistas e intelectuais da época, está em alta novamente. Muitas das mais modernas próteses não pretendem emular a anatomia do corpo humano. Mas, hoje, a recepção é mais positiva.
As “pernas” Flex-Foot, ou lâminas, desenvolvidas por Van Phillips, não se parecem com as humanas, mas fazem amputados correrem até mais que muitos atletas olímpicos. E ninguém diria que elas desumanizam os atletas paralímpicos que as usam. Os braços desenhados por Carlos Torres foram criados para funcionar como brinquedos Lego, mas ninguém diria que desumanizam as crianças.
Em outubro, a Suíça vai hospedar a Cybathlon – a primeira olimpíada para cyborgs. Os participantes terão de conduzir seus corpos tipo máquina numa série de tarefas desafiadoras. Eles se consideram mais pilotos que atletas, mas não parecem menos humanos por isso.
É muito pouco provável que artistas contemporâneos se sintam tentados a descrever de forma grotesca os “pilotos”, ou atletas paraolímpicos, ou crianças com uma prótese tipo Lego no braço. Muito ao contrário. Alguns já elevaram as próteses ao status de obras de arte.
Veja, por exemplo, as próteses criadas pela filha de portugueses Sophie de Oliveira Barata para sua companhia, a Altlimpro. Por que deveríamos nos contentar com uma mão artificial de boa aparência e se podemos ter uma obra de arte em seu lugar. Por que não uma perna de porcelana com motivos florais, ou uma perna com alto-falantes estéreos encrustados com diamantes?
Uma das grandes vantagens do enfoque funcional é que essas próteses não parecem falsas partes do corpo. Quando as pessoas olham uma prótese convencional, é provável que sintam pena do deficiente. Mas com as próteses alternativas de hoje, as pessoas pensarão duas vezes antes de chamar alguém de inválido. À medida que a tecnologia avança, membros artificiais já não são vistos como ameaça à nossa condição humana.
(*) Marcelo de Araujo é professor de Ética, Filosofia Política e Filosofia do Direito da UFRJ.
(Tradução: Trajano de Moraes)
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