Meu amigo boto

No Sul do Brasil, pescadores e animais se auxiliam na captura de peixes. Pesquisadores da UFSC estudam o fenômeno, único no mundo

Por Bernardo Camara | ODS 14Vida Sustentável • Publicada em 2 de julho de 2016 - 08:00 • Atualizada em 23 de junho de 2019 - 16:14

Pescadores esperam o sinal do boto amigo para lançar as suas redes
Pescadores esperam o sinal do boto amigo para lançar as suas redes

As casas de veraneio trancadas à beira da praia indicam que o outono chegou. Os termômetros não passam dos dez graus. Mas nas areias desertas de Imbé e Tramandaí, municípios vizinhos no litoral norte do Rio Grande do Sul, dezenas de homens parecem ter bons motivos para ignorar o frio. Com as canelas mergulhadas na água gelada, as tarrafas de pesca sobre os ombros e os olhos grudados no horizonte, eles esperam o sinal que vem do mar.

 

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Os botos ajudam a gente na pescaria. Quando mostram de bico ou de lado, é peixe na certa. Não tem como o cara errar.

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Logo, logo, o primeiro boto coloca seu dorso para fora da superfície. A aparição quebra o marasmo e dá lugar a um alvoroço: os pescadores correm na direção do mamífero, que já se embala em outros movimentos. É hora de lançar as redes. “Os botos ajudam a gente na pescaria. Quando mostram de bico ou de lado, é peixe na certa. Não tem como o cara errar”, garante o pescador Valdomiro Lents Pereira.

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Parece uma dança ensaiada. E é. Há mais de 25 anos, pesquisadores da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e do Grupo de Estudos de Mamíferos Aquáticos do Rio Grande do Sul (GEMARS) estudam a interação entre pescadores artesanais e o Tursiops truncatus nos estuários de Laguna (SC) e Imbé/Tramandaí (RS). Apesar de a espécie ser encontrada na maior parte dos mares ao redor do globo, o fenômeno que ficou conhecido como pesca cooperativa é único: só acontece numa extensão de 300 km no litoral sul brasileiro.

Ninguém sabe ao certo quando essa parceria entre botos e humanos começou. Nos jornais antigos de Laguna, notícias indicam que no fim do século XIX ou início do XX a prática já ocorria por ali. No entanto, ela só foi parar nos anais da ciência na década de 1990, pelas mãos do biólogo Paulo César Simões-Lopes, professor da UFSC e coordenador do Laboratório de Mamíferos Aquáticos (Lamaq) da universidade.

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Nós chamamos de pesca cooperativa. Enquanto os pescadores nunca teriam as tainhas agrupadas, os botos nunca as teriam confusas em fuga. É uma ideia de partilha de recursos e economia de energia durante a pesca.

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Filho de Porto Alegre, Simões-Lopes passou infância e adolescência indo à casa de praia que a família tinha em Imbé, a apenas 100 km da capital gaúcha. Nas tardes de sol, observava e achava interessante a intimidade entre os pescadores e os mamíferos marinhos. Mas naquele momento, não passou de curiosidade. Quando terminou a graduação na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em 1984, arrumou as malas e se mudou para Santa Catarina. Parecia que o destino lhe empurrava de volta para aquela história: ali, acontecia exatamente o mesmo fenômeno que ele cansou de assistir no estado natal.

“Eu cresci vendo esse evento. E mais tarde descobri que era considerado raro e desconhecido pela ciência”, diz. Foi quando resolveu transformar curiosidade em estudo. Queria entender se aquilo era bom – e para quem. Em geral, a interação entre mamíferos marinhos e pescadores é conflituosa. E o caso parecia ser uma exceção. “Na época eu já sabia que aquela interação era incomum. Só havia registros de algo parecido na Austrália e na costa africana. Mas nos dois lugares isso não existia mais, então no Brasil era algo que não podia ser perdido”.

O tamanho dos peixeis mostra o sucesso da parceria entre os botos e os pescadores
O tamanho dos peixeis mostra o sucesso da parceria entre os botos e os pescadores

Quando decidiu mergulhar na história, Simões-Lopes dava aula em uma escola e administrava uma Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN) na serra catarinense. Todo tempo livre que tinha, se jogava para o litoral. Vivia entre a montanha e o mar. “Eu estava o tempo todo me movendo, tentando conciliar as coisas: trabalhar, ganhar a vida e fazer pesquisa”.

Começou a reunir interessados para lhe ajudar em campo, e tirava dinheiro do próprio bolso para tocar a empreitada. Até que o negócio foi ganhando corpo e virou sua pesquisa de doutorado na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS). O que começou como um esforço pessoal se tornou o primeiro registro científico do comportamento daquela espécie na relação com os pescadores da região. Um trabalho que nasceu com mais de mil horas de observação em campo.

Tanto tempo na cola dos mamíferos permitiu a Simões-Lopes entender algumas coisas. Ele percebeu, por exemplo, que a população de botos que participa da interação é pequena e residente. Ou seja, são sempre os mesmos indivíduos que aparecem na desembocadura entre mar e rio. E reconheceu que, quando pescam juntos, há vantagens tanto para os humanos como para o Tursiops truncatus. Daí a denominação de “pesca cooperativa”: os botos encurralam os cardumes de tainha, os pescadores lançam as tarrafas e os peixes que conseguem escapar da rede ficam desnorteados, virando presa fácil também para os botos. “Enquanto os pescadores nunca teriam as tainhas agrupadas, os botos nunca as teriam confusas em fuga. É uma ideia de partilha de recursos e economia de energia durante a pesca”, explica Simões-Lopes.

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Não é chegar, abrir e jogar a tarrafa. Tem que observar bem o jogo, a pose, o movimento deles. Isso não se aprende em escola, mas observando os mais velhos.

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Os estudos do gaúcho abriram a porteira para que outros pesquisadores olhassem para o assunto. No início, umas das pessoas que topou entrar na dança foi o biólogo Paulo Ott. Quando Simões-Lopes começou a ir para a praia de binóculos, câmera fotográfica e prancheta, Ott ainda cursava a faculdade na UFRGS, em Porto Alegre. Na época, havia pouquíssima gente estudando mamíferos marinhos no Brasil, e quase ninguém no litoral norte do Rio Grande do Sul. Com o objetivo de fazer um levantamento das espécies e identificar os principais problemas de conservação dos mamíferos marinhos na região, o estudante começou a percorrer a costa com amigos para tapar esse buraco. “Éramos uma gurizada quando começamos”, diz o gaúcho.

O grupo coletava animais mortos encalhados nas praias, colocava-os no porta-malas do carro e estendia os corpos no quintal de casa, para estudá-los. No início, eles nem conheciam todas as espécies que encontravam pelo caminho. Mas logo começaram a gerar dados e serem chamados para participar de congressos. Foi num desses eventos científicos, no início da década de 1990, que Ott conheceu Simões-Lopes. Ficou sabendo da pesquisa de doutorado com os botos e se voluntariou para ajudar. “Era uma chance de acompanhá-lo nas saídas de campo em Imbé e ver como ele fazia. Foi um aprendizado mesmo”, diz o pesquisador, que hoje é professor da Universidade Estadual do Rio Grande do Sul (UERGS) e presidente do GEMARS – ONG que nasceu daquele grupo de estudantes.

Com câmeras precárias, começaram a fotografar e catalogar os botos para saber quantos eram e com que frequência apareciam no estuário que dividia os municípios de Tramandaí e Imbé. Mesmo com equipamentos meia-boca, conseguiram conhecer os animais e perceber a importância socioeconômica e cultural que tinham por ali. Não à toa, os mamíferos são tratados como velhos amigos: Coquinho, Catatau e Geraldona são alguns dos nomes que os pescadores deram aos companheiros de pesca. “A gente sabe os nomes dos botos todos”, diz o pescador Valdomiro Pereira. “Para nós, eles são como um irmão”.

Pereira é sobrinho de Pavão, um dos pescadores mais antigos da região. Os dois praticamente nasceram com a tarrafa na mão. “Nasci e criei aqui na areia. Comecei a pescar com quatro anos, ajudando o pai”, conta Pavão. Ele diz que aprender o traquejo dos botos não é coisa de um dia: é para quem está há anos enfiando a canela na água gelada. “Não é chegar, abrir e jogar a tarrafa. Tem que observar bem o jogo, a pose, o movimento deles. Isso não se aprende em escola, mas observando os mais velhos”, afirma.

O conhecimento é passado de geração em geração. E não só entre os pescadores. “Para os botos é a mesma coisa. As mães com seus filhotes são o canal de passagem dessa tradição. Sabemos que não são todos os botos daqui da região que interagem com a pesca. É uma técnica que tem que ser aprendida e que tem um certo custo, tipo falar uma língua estrangeira: tem indivíduos que investem e outros não”, explica Simões-Lopes.

Não se sabe exatamente como a tradição começou entre os animais. Mas há algumas hipóteses. “Provavelmente, um grupo ou um indivíduo começou a interação com pescadores e percebeu ali um benefício ecológico na obtenção de recursos. E sua capacidade cognitiva e comportamental possibilitou que a prática fosse compartilhada com outros indivíduos”, ensina o biólogo Fábio Daura, que divide a coordenação do Lamaq com Simões-Lopes. Desde 2007, ele dá continuidade, em Santa Catarina, às pesquisas iniciadas na década de 1990 sobre o assunto.

Não foram apenas os pescadores que aprenderam a identificar o boto. Os bichos também perceberam que a presença do pescador os auxilia na captura dos peixes. “Muitas vezes, os botos encurralam as tainhas exatamente onde os pescadores estão, e realizam um comportamento característico, como um sinal para lançar as tarrafas”, afirma Paulo Ott. Com os olhos voltados para a água, Valdomiro Pereira confirma: “Os botos sabem quem são os pescadores mais velhos e os mais novos. Eu chego aqui e parece que eles já sentem o cara até no pisar. Já vêm para mostrar o peixe para nós”, conta. “A inteligência do boto é a inteligência de uma pessoa”.

O resultado dessa parceria é sentido quando se puxa a tarrafa para a areia. Os pescadores pegam peixes maiores e em maior quantidade se comparado com a pesca artesanal praticada sem o auxílio dos botos. A conservação da espécie, portanto, é algo que interessa não só à ciência, mas à própria comunidade que vive dessa atividade.

As ameaças às populações de botos que participam da pesca cooperativa, no entanto, são cada vez maiores. E vêm de vários lados: “Tem alteração de habitat, perturbação sonora que leva a estresse, péssima qualidade de água… Isso tudo está acontecendo, e ao mesmo tempo”, Fábio Daura sinaliza.

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Provavelmente, um grupo ou um indivíduo começou a interação com pescadores e percebeu ali um benefício ecológico na obtenção de recursos. E sua capacidade cognitiva e comportamental possibilitou que a prática fosse compartilhada com outros indivíduos.

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Por essas e outras, em 2014 a população costeira de botos, incluindo os animais que interagem no estuário de Tramandaí e Imbé, passou a constar como “vulnerável” na lista vermelha de fauna ameaçada do Rio Grande do Sul. “Embora o número exato de indivíduos não seja conhecido, a população parece ser relativamente pequena e ocupa uma faixa bastante estreita do litoral”, explica Ott. Como existe um forte componente de aprendizado envolvido nessa interação entre botos e pescadores, há um receio dos pesquisadores de que se estes animais desaparecerem, talvez a pesca cooperativa não se estabeleça novamente.

Com tantos dados nas mãos, a academia tenta munir o poder público com informações para incentivar políticas públicas e iniciativas de conservação para mudar esse cenário. “É fácil criar justificativas para manejar o ambiente de forma adequada. Mas é preciso uma mobilização que vá além das universidades”, defende Daura. Para ele, a exclusividade do fenômeno pode ser usada como uma estratégica bandeira que traz vantagens não só para a espécie, mas também para a região. “A pesca cooperativa gera uma renda complementar importante para os pescadores. Mas ela tem potencial de gerar muito mais, pois tem atrativos turísticos e de educação fantásticos, além de poder agregar valor ao produto da pesca. Muitas coisas podem ser pensadas para aumentar o benefício econômico local através de uma motivação social e cultural”, diz.

Enquanto as iniciativas não ganham corpo pelo lado do poder público, os pesquisadores seguem fazendo sua lição para a proteção dos botos. “Hoje, conservação tem que ser o objetivo de todo mundo que trabalha com ciência da biologia”, acredita Simões-Lopes. “Afinal, todo mundo tem advogado, menos os bichos e as plantas”. O Tursiops truncatus talvez seja uma exceção: pelas areias de Santa Catarina e Rio Grande do Sul, um batalhão de pescadores faz o papel de guardião. “Se tem turista perturbando o boto eu já prego uma mentira para ele e digo que tem polícia filmando”, diz Pavão. “A gente vai protegendo os bichos dessa maneira, porque eles são nossos parceirões”.

E é tanto na vida quanto na morte. Alguns anos atrás, Lobisomem, um dos mais antigos botos que deslizava pelo rio Tramandaí, acabou morrendo e foi encontrado encalhado na praia de Imbé. Era um dos preferidos entre os tarrafeiros. Os pesquisadores levaram o corpo para a universidade a fim de estudá-lo. Um pescador bateu à porta do laboratório, entrou com seu filho e parou ao lado do mamífero sem vida. “Olha aí, filho: esse era meu companheiro de pesca”, disse com os olhos cheios de lágrimas. E se despediu do amigo.

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30/100 A série #100diasdebalbúrdiafederal pretende mostrar, durante esse período, a importância  das instituições federais e de sua produção acadêmica para o desenvolvimento do Brasil.

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Bernardo Camara

Formado em Jornalismo pela PUC-Rio, cobre temas socioambientais há mais de uma década. Viveu 4 anos na Amazônia e já colaborou como repórter, produtor, editor e fotógrafo em projetos de O Eco, Greenpeace, Revista de História da Biblioteca Nacional, Instituto Socioambiental (ISA), Funbio, entre outros.

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Um comentário em “Meu amigo boto

  1. Hylton Sarcinelli Luz disse:

    Matéria muito boa, estimulante. Raro pensarmos nesta relação de cooperação tão explícita quanto a um objetivo comum. Mais comum conhecermos histórias de benefício mútuo, mas não desta forma. Formidável pela possibilidade de ampliar o olhar para este aspecto da relação com o ambiente. Parabéns!!!!

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