Filés, música e poesia

Amorim morou cerca de 15 anos nos fundos do açougue e chegou a ler 15 livros por mês depois de alfabetizado, aos 16 anos. Foto Divulgação

A história do açougueiro que saiu do analfabetismo para se tornar promotor cultural em Brasília

Por André Giusti | ODS 9 • Publicada em 11 de maio de 2018 - 08:18 • Atualizada em 11 de maio de 2018 - 14:13

Amorim morou cerca de 15 anos nos fundos do açougue e chegou a ler 15 livros por mês depois de alfabetizado, aos 16 anos. Foto Divulgação
Amorim morou cerca de 15 anos nos fundos do açougue e chegou a ler 15 livros por mês depois de alfabetizado, aos 16 anos. Foto Divulgação
Amorim morou cerca de 15 anos nos fundos do açougue e chegou a ler 15 livros por mês depois de alfabetizado, aos 16 anos. Foto Divulgação

Onde se compra a carne, também se ouve música brasileira e se declama poesia. A paráfrase sobre um conhecido ditado é péssima, mas resume bem o que acontece em um açougue que fica na Superquadra Norte 312, uma das mais antigas e tradicionais no desenho em forma de avião da capital do país. É lá que funciona o Açougue Cultural T-Bone, lugar em que, após o horário comercial, ocorrem quatro vezes ao ano shows com grandes nomes da MPB, lançamentos de livros e uma bienal de poesia, reunindo em um grande sarau autores de todo o Distrito Federal.

‘É o seu Luiz Amorim, do T-Bone?’ Eu disse ‘sou’. Quem tá falando aqui é o Fagner e quero comemorar meus 40 anos de carreira aí no T-Bone. Aí eu disse: ué, é só vir aqui e cantar

Se você mora em Brasília, sabe que em dia de show a quadra fecha ao trânsito a partir das 19h e um mar de gente (em algumas ocasiões o público passou de 20 mil pessoas) se junta para assistir, no meio da rua, a artistas do naipe de Milton Nascimento, Zé Ramalho, Fagner e Jorge Benjor, entre outros, que ao longo de duas décadas já se apresentaram no pequeno palco armado na porta do açougue.

Mas a história do Açougue Cultural T-Bone se torna ainda mais interessante quando a gente volta a 1973 e fica sabendo que seu proprietário, Luiz Amorim, chegou criança naquele ano a Brasília trazido de Salvador, onde nasceu, pela mãe recém-separada, juntamente com mais cinco irmãos. Assim como milhares de nordestinos pobres que chegaram a Brasília em busca de uma vida melhor, Amorim fez de tudo para ajudar nas despesas de casa, desde engraxar sapatos até chegar de madrugada ao hospital público para vender o lugar na fila a quem procurava atendimento.

Esse enredo cresce na hora em que o homem que é um dos principais agentes culturais da cidade conta que foi analfabeto até os 16 anos. Aprendeu a ler e a escrever em supletivos, nos moldes do antigo Mobral, marca da ditadura militar, mas não se identificava com o que recebia em sala de aula.  “Aquilo que o professor me dizia servia apenas para arrumar emprego. A essência das pessoas que estavam ali era apenas para arrumarem uma colocação no mercado de trabalho, para passar em um concurso. Essa não era a minha essência, aquilo para mim não fazia sentido”, lembra Amorim. Essa essência, o adolescente, que já trabalhava como açougueiro, descobriu nos livros, quando, aos 18 anos, teve em mãos um gibi, que com linguagem simples tentava traduzir as teorias de Marx. Apaixonou-se pela leitura. Chegou a ler 15 livros por mês, morando de favor nos fundos do açougue. O estabelecimento, aliás, é o mesmo T-Bone do qual tornou-se proprietário em 1994, mesmo ano em que brotou a primeira semente das Noites Culturais, nome oficial do projeto que faz parte do calendário oficial de eventos de Brasília.

Marina Lima, que se apresenta em Brasília desde o início da carreira, há quase 40 anos, também marcou a volta do T-Bone, em 2017. Foto Divulgação
Marina Lima, que se apresenta em Brasília desde o início da carreira, há quase 40 anos, também marcou a volta do T-Bone, em 2017. Foto Divulgação

Chega a ser difícil entabular uma conversa com Luiz Amorim sobre as Noites Culturais, porque ele pega e só quer falar de sua grande paixão, a filosofia, que lhe foi revelada pelos pré-socráticos. “Tudo que eu faço tem a pegada dos gregos”, e cita a releitura desses filósofos feita por Nietzsche e Espinoza. Quando conseguimos, enfim, conversar sobre o projeto, ele dá um jeito de soltar uma teoria sobre Deus. “É ilógico você pensar que Deus vai atender um pedido individual, isso é negar a vida e não potencializar sua vida. Ele não vai gostar que você fique o resto da vida pagando uma penitência para ele”.

Desfiado o fio do novelo da história da iniciativa que democratiza a cultura em Brasília, Amorim conta que as conversas que tinha com os fregueses sobre filosofia, enquanto cortava carne, criaram uma identidade do T-Bone com a cultura. “Os caras achavam engraçado um açougueiro falar sobre Platão, Sócrates”, lembra rindo.

O meu encontro com a literatura, com a filosofia, é um encontro de fazer. Eu não achava interessante o sujeito entender tudo de Sartre e discutir o existencialismo em Sartre sem praticar aquilo. Se eu não tivesse tido esse encontro com a literatura, talvez eu fosse apenas um comerciante rico que estivesse contando minhas conquistas no campo material

A promoção da cultura começou com a colocação de uma estante na porta do açougue com livros para quem quisesse pegar e com noites de autógrafos. Os escritores convidados estranhavam. “O cara pensava: pô, vou lançar meu livro num açougue? Quero lançar numa livraria, num lugar mais glamoroso”, lembra Amorim, mas acabavam sendo convencidos a autografar em uma mesa posta na calçada. Um desses autores foi o cineasta Vladimir Carvalho, que fez uma noite de autógrafos, em 1999, juntamente com o lançamento do CD de três músicos consagrados em Brasília, os irmãos Clodo, Clésio e Climério.

Com fôlego, o Açougue Cultural T-Bone começou sua decolagem e trouxe o primeiro grande nome da MPB: Moraes Moreira. O próprio Amorim ia atrás dos artistas, mas esbarrava na desconfiança da produção deles. “As nossas condições aqui não são as que artistas de patamar nacional estão acostumados”, ele admite, referindo-se a palco e camarim, “e isso sempre requer muita negociação”.

Foi negociando que tentou cinco vezes trazer Fagner, mas a produção vetava. Até que a história do T-Bone chegou aos ouvidos do próprio cantor. “E um belo dia ele mesmo me ligou”, conta o açougueiro. “ ‘É o seu Luiz Amorim, do T-Bone?’ Eu disse ‘sou’. Quem tá falando aqui é o Fagner e quero comemorar meus 40 anos de carreira aí no T-Bone. Aí eu disse: ué, é só vir aqui e cantar”. Desse papo rápido saiu um show com mais de 20 mil pessoas na rua e uma grande amizade entre ele e o artista.

Por quase uma década Amorim bancou os custos com o faturamento do próprio açougue e conta que chegou a investir no projeto quase 100% do que rendiam os bifes que vendia. No fim dos anos 2 mil conseguiu patrocínio da Petrobrás e as Noites Culturais entraram em sua fase áurea, com Milton Nascimento e Zé Ramalho, entre outros, de graça, na rua, para quem quisesse chegar e assistir. “O show do Zé Ramalho deu um nó na Asa Norte, parou tudo, veio gente de tudo quanto é canto”, lembra Amorim, porque o público do cantor é também o morador das cidades satélites e da periferia do DF.

Fernanda Abreu quando recebeu o convite para se apresentar no T-Bone: “Fiquei emocionada, não só por ser Brasília, que eu gosto, mas por reconhecer o valor dessa galera que está fazendo o projeto há anos”. Foto Divulgação
Fernanda Abreu quando recebeu o convite para se apresentar no T-Bone: “Fiquei emocionada, não só por ser Brasília, que eu gosto, mas por reconhecer o valor dessa galera que está fazendo o projeto há anos”. Foto Divulgação

É claro que a agitação dos shows em uma área residencial nem sempre é bem recebida por todos os moradores. No começo, a irritação da vizinhança era pior, lembra Amorim, deixando escapar um “só faltei apanhar”. Ainda hoje há gente que se incomoda, mesmo que aquilo que classificam como incômodo ocorra no máximo quatro vezes ao ano. “A mim incomoda o barulho que se estende até meia-noite. É como se a música estivesse tocando no meu quarto. Meus filhos estudam de manhã e temos hábito de dormir cedo durante a semana”, reclama a jornalista Aline Aguiar, moradora da quadra há dez anos. Já outro morador, o também jornalista e radialista João Cláudio Silveira é bem mais condescendente. “Não é incomodo, pelo menos para mim. O horário é cumprido corretamente, os shows não viram a madrugada. Há problema com o estacionamento nas quadras próximas, mas é totalmente aceitável para um evento de graça, aberto ao público e com bons artistas. Brasília precisa respirar mais música, mais teatro, mais poesia!”, exorta João Cláudio.

Luiz Amorim é um Quixote armado de sonhos que tem feito um lindo trabalho nesta cidade e neste país tão repletos de contradições

A crise na Petrobrás fez com que a empresa cancelasse o patrocínio e durante dois anos a vizinhança incomodada teve sossego e o Açougue Cultural T-Bone ficou realmente vendendo apenas carne. Em 2017, com apoio da Ambev e outras pequenas empresas, Amorim arregaçou novamente as mangas e trouxe Fernanda Abreu e Marina Lima. “Quando voltamos, parecia que havia um vazio na cidade”.

O trabalho de Amorim é consenso entre artistas que moram na capital do país, que sempre conseguem oportunidade de se apresentar nas Noites Culturais. “Luiz Amorim é um Quixote armado de sonhos que tem feito um lindo trabalho nesta cidade e neste país tão repletos de contradições”, exalta o autor e poeta Adeilton Lima. “O acesso é gratuito e franqueado a todos os interessados. A interação entre artista e público também é outro fator que diminui ainda mais a distância entre os interessados em cultura” avalia o poeta Nicolas Behr, nome de maior expressão da poesia feita em Brasília e presença garantida em todas as bienais do gênero literário no T-Bone.

O sucesso do Açougue Cultural T-Bone Amorim credita à relação dele com os livros. “O meu encontro com a literatura, com a filosofia, é um encontro de fazer. Eu não achava interessante o sujeito entender tudo de Sartre e discutir o existencialismo em Sartre sem praticar aquilo. Se eu não tivesse tido esse encontro com a literatura, talvez eu fosse apenas um comerciante rico que estivesse contando minhas conquistas no campo material”, arrisca o açougueiro e produtor cultural, que ainda paga aluguel pela loja e que só quatro anos atrás conseguiu construir uma casa em um condomínio de classe média, nos arredores de Brasília.

A população da capital federal agradece o caminho que ele tomou. A ele e aos gregos que o inspiraram.

André Giusti

Jornalista com 30 anos de experiência. Já foi repórter, apresentador e chefe de redação no Sistema Globo de Rádio e no Grupo Bandeirantes de Comunicação. É pós-graduado em Gestão da Comunicação das Organizações pelo UniCeub. É carioca e mora em Brasília há 20 anos. Também é escritor e mantém site e blog em www.andregiusti.com.br

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