Como o Reino Unido quer se tornar um exemplo em moda circular

Indústria, academia e governo se unem para combater o desperdício da indústria têxtil, que gera anualmente um volume de resíduos capaz de encher o estádio de Wembley 17 vezes

Por Ticiana Azevedo | ODS 9 • Publicada em 4 de julho de 2024 - 09:42 • Atualizada em 9 de julho de 2024 - 09:13

New Craft House: estúdio de costura artesanal, um moviment que cresce em Londres em reação à fast fashion / foto Daniel Leal – AFP

Responsável pela geração anual de mais de 1 milhão de toneladas de têxteis, dos quais mais de um terço é descartado em aterros, incinerado ou exportado para países em desenvolvimento, o Reino Unido quer seguir outra tendência: a sustentabilidade. O país investe £15 milhões (R$ 100 milhões) no Programa de Moda Circular, voltado a criar um ecossistema para promover a circularidade na indústria do vestuário

O Programa de Moda Circular busca reduzir o desperdício têxtil, minimizar o impacto ambiental e gerar novas oportunidades para a indústria de moda e têxteis do país, aproveitando tecnologias emergentes e práticas existentes. Transformar todo esse resíduo descartado em nova matéria-prima têxtil, que possa ser reutilizada, representa uma oportunidade significativa para o futuro da manufatura no país.

“O Reino Unido tem níveis de desperdício inacreditavelmente altos, e precisamos começar a lidar com isso. Por isso, há tanta urgência em criar essa infraestrutura de reciclagem”, diz Lauren Junestrand​​​​, gerente da Rede de Inovação e Sustentabilidade da Associação de Moda e Têxteis do Reino Unido (UKFT, sigla do inglês)

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A associação lidera dois projetos do Programa de Moda Circular: o ACT e a Rede de Inovação em Moda Circular, ambos iniciados em 2023 com financiamento do Instituto de Pesquisa e Inovação do Reino Unido, e com previsão de serem completados no primeiro semestre de 2025, assim a maioria das iniciativas do programa. 

“O ACT é um projeto focado na reciclagem, especificamente na criação de um plano para uma planta que automatize a triagem de têxteis para reciclagem. Já a Rede de Inovação da Moda tem um escopo mais amplo que se preocupa com o futuro da circularidade no Reino Unido nos próximos cinco a dez anos. Ela abrange várias áreas, incluindo modelos de negócios circulares, infraestrutura de reciclagem, tecnologia de manufatura sustentável, desenvolvimento de uma força de trabalho diversa e preparada para o futuro, e promoção do crescimento verde. A rede examina a inovação nesses domínios e identifica áreas para maior exploração e foco, com o objetivo de tornar a indústria da moda no Reino Unido mais circular e sustentável”, explica Junestrand. 

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Rede de Inovação em Moda Circular

A Rede de Inovação em Moda Circular, co-presidida pela Associação de Moda e Têxteis do Reino Unido e pelo Conselho de Moda Britânico (BFC), é o projeto-base para a instalação de um ecossistema de moda circular no Reino Unido. O programa procura maneiras de reduzir o desperdício, diminuir o impacto ambiental da produção e consumo no Reino Unido, e criar novas oportunidades para a indústria de moda e têxtil. 

“A indústria da moda britânica lidera em criatividade e seus fundadores e empreendedores são inovadores líderes em seu campo. No entanto, para crescer responsavelmente em um momento de grande mudança, são necessárias plataformas, apoio e coordenação”, ressalta Caroline Rush, CEO do Conselho de Moda Britânico.

ACT UK

O ACT UK (Classificação Automática para Circularidade em Têxteis) é a estrutura física para viabilizar a circularidade na moda. Sua missão é estabelecer um modelo para triagem e pré-processamento avançado de têxteis. Esta instalação processará têxteis não reutilizáveis, transformando-os em matéria-prima para recicladores de fibra-a-fibra. A iniciativa visa não só à redução do desperdício, mas também a preparar o mercado britânico para uma transição mais abrangente para a circularidade dos tecidos.

Financiado pela Innovate UK, o ACT UK reúne um consórcio diversificado que inclui tecnologias de reciclagem, coletores e classificadores de têxteis, académicos, fabricantes, associações industriais e tecnólogos. Até 2025, o consórcio entregará um modelo, integrando as mais recentes tecnologias e promovendo a transição de têxteis lineares para circulares. O objetivo é consolidar a liderança global do Reino Unido em inovação e circularidade de têxteis, criando novos mercados, empregos e oportunidades de investimento estrangeiro direto.

Não se trata de parar o crescimento ou o valor econômico. é sobre mudar a forma como o sistema de moda é organizado. Esse sistema totalmente linear simplesmente não faz mais sentido. Estamos consumindo moda que nem é mesmo rápida, é ultra rápida

Lauren Junestrand
Associação de Moda e Têxteis do Reino Unido

Incentivos à moda circular

Para Junestrand​​​​, da Associação de Moda e Têxteis do Reino Unido, há três pontos principais para o Reino Unido investir na circularidade e na sustentabilidade nessa indústria. 

“Em primeiro lugar, o atual cenário legislativo na Europa, que provavelmente será implementado no Reino Unido, envolve requisitos para empresas em relação ao design ecológico, como o ecodesign e o Regulamento de Ecodesign para Produtos Sustentáveis. A partir de 2025, todos os países da União Europeia terão essas exigências. Apesar de o Reino Unido não fazer mais parte da UE, deve aderir às legislações, pois a maioria das empresas que operam aqui também tem clientes na Europa. Haverá responsabilidade estendida do produtor e uma obrigação para cada país coletar separadamente o lixo a partir de 2025, o que demandará uma infraestrutura adequada para lidar com o aumento de resíduos”, explica a gerente, acrescentando que o consumidor também está cada vez mais consciente e exige mudanças nessa direção. 

Junestrand vê uma disposição crescente da indústria em participar dessa mudança. Apesar de não abrirem mão do lucro, empresas têm estabelecido metas ambientais e desenvolvido novas fontes de receita, como sites de segunda mão ou o uso de material reciclado, o que muitas vezes resulta em receitas mais altas. “Trata-se de usar os recursos de forma diferente e criar valor a partir dos recursos existentes, em vez de usar novos materiais”, diz.

Fast fashion e microplásticos

Globalmente, menos de 1% dos têxteis coletados são transformados em novos tecidos. Os outros 99% são têxteis não reutilizáveis (NRT), uma quantidade absurda de lixo que, quando incinerada, contribui com 10% da pegada de carbono, elevando a moda ao segundo setor que mais polui o ar, depois dos combustíveis fósseis. Com o crescimento da fast fashion, forma de comercialização e consumo em que a produção de peças é constante, rápida, assim como o descarte, as perspectivas são ainda mais assustadoras.

“Não se trata de parar o crescimento ou o valor econômico. é sobre mudar a forma como o sistema de moda é organizado. Esse sistema totalmente linear simplesmente não faz mais sentido. Estamos consumindo moda que nem é mesmo rápida, é ultra rápida. Players como Shein e Temu estão no mercado do Reino Unido promovendo consumo em níveis e taxas inacreditáveis e descartando isso. Esse sistema de linearidade não funciona mais, e não é nada sustentável para os próximos cinco a dez anos; isso terá consequências extremamente negativas”, comenta Junestrand

As emissões de gases de efeito estufa não são o único dano causado pelo setor, que consome água suficiente para saciar a sede de cinco milhões de pessoas a cada ano. Além disso, cria milhões de toneladas de plástico e outros resíduos que poluem o ar e os oceanos. O uso de fibras sintéticas como o poliéster pela indústria da moda contribui significativamente para a poluição por microplásticos nos oceanos, com estimativas indicando que isso representa aproximadamente 35% da poluição por microplásticos proveniente de têxteis. 

Os microplásticos são liberados no meio ambiente, especialmente através da lavagem de têxteis sintéticos. Quando tecidos sintéticos como o poliéster são lavados, eles liberam pequenas fibras conhecidas como microfibras. Essas microfibras são uma forma de microplástico, geralmente com menos de 5 mm de comprimento, que saem das máquinas de lavar para os sistemas de esgoto e, finalmente, desaguam nos oceanos. Poluentes persistentes que podem levar centenas de anos para se degradar são ingeridos por organismos marinhos, causando danos físicos e introduzindo substâncias tóxicas na cadeia alimentar, inclusive afetando a saúde humana. Um estudo da União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN) estima que a indústria têxtil é responsável por cerca de 0,5 milhão de toneladas de microfibras que são despejadas nos oceanos a cada ano.

O que é economia circular

A economia circular é um conceito econômico que se baseia na redução, reutilização, recuperação e reciclagem de materiais e produtos, visando a minimizar o desperdício e maximizar o uso eficiente dos recursos. Diferentemente do modelo linear tradicional de extrair, fabricar, usar e descartar, a economia circular promove a ideia de um ciclo contínuo, onde os materiais são mantidos em uso pelo maior tempo possível, seja através da reparação, reutilização ou reciclagem. Esse modelo busca não apenas reduzir o impacto ambiental, mas também criar oportunidades econômicas, gerando empregos e estimulando a inovação em processos e produtos mais sustentáveis. A economia circular é fundamental para enfrentar desafios globais como a escassez de recursos naturais e a poluição, enquanto promove um desenvolvimento mais sustentável e resiliente.

Outros projetos do Reino Unido

Future Fibres Network+

No final de maio, a Associação de Moda e Têxteis do Reino Unido anunciou o lançamento do Future Fibres Network+, projeto liderado pela Universidade de Exeter que une indústria e academia. O objetivo é incorporar as ciências ambientais ao coração da moda, do vestuário em geral e dos setores têxteis, estabelecendo princípios sistemáticos, circulares e sustentáveis como a norma da indústria. Outras universidades, como a University of the Arts London, também tomam parte. 

Repurpose

Outra iniciativa lançada no final de abril também vai somar para impulsionar o mercado da moda circular no Reino Unido. As plataformas de circularidade Recomme e ACS, apoiadas pela Associação de Moda e Têxteis do Reino Unido, lançaram o Repurpose, um hub de processamento e inovação que se autodenomina um “balcão único” para circularidade.

O Repurpose combina o software de classificação da Recomme com os serviços de aluguel, revenda e reparo já existentes da ACS. Além disso, eles planejam desenvolver soluções para reciclagem e reuso de materiais na indústria da moda. 

Série Sustentabilidade 101

A Associação de Moda e Têxteis do Reino Unido criou a Série Sustentabilidade 101 para disseminar conceitos e práticas fundamentais necessários para moldar uma indústria mais sustentável por meio de guias simples e webinars. 

Ticiana Azevedo

A jornalista conta histórias profissionalmente há 40 anos. Repórter dos diários cariocas Jornal do Brasil e O Dia, foi correspondente em Paris por três anos. Como fundadora e diretora da Prima Press Assessoria em Comunicação, contou histórias de mais de 250 clientes ao longo de 21 anos. Em 2010, lançou o livro "Seu príncipe pode ser uma Cinderela", despertando seu desejo pelo audio-visual. Em 2019, foi selecionada para uma bolsa de mestrado em Filmmaking-Screenwriting com a bolsa "Voices that Matter - Women in the Screen Industries", uma parceria da Met Film School London com a MTV Staying Alive Foundation. Desde 2020 mora na Inglaterra, onde cria roteiros focados em causas sociais e ambientais.

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