Um governo politicamente incorreto

Jair Bolsonaro acena para o público após receber a faixa presidencial. Foto Evaristo Sá/AFP

Discursos de Bolsonaro ignoram temas cruciais do país e repetem velhas contradições

Por Agostinho Vieira | ODS 8 • Publicada em 2 de janeiro de 2019 - 18:48 • Atualizada em 4 de janeiro de 2019 - 13:41

Jair Bolsonaro acena para o público após receber a faixa presidencial. Foto Evaristo Sá/AFP
Jair Bolsonaro acena para o público após receber a faixa presidencial. Foto Evaristo Sá/AFP
Jair Bolsonaro acena para o público após receber a faixa presidencial. Foto Evaristo Sá/AFP

Em um dos seus dois discursos após receber a faixa presidencial, o capitão Jair Messias Bolsonaro anunciou, com a ênfase de sempre, que neste dia o Brasil “começava a se libertar do socialismo, da inversão de valores, do gigantismo estatal e do politicamente correto”. Se a ideia é libertar o país do politicamente correto, talvez a gente esteja entrando na era do politicamente incorreto. Mas o que isso significa? Será que a partir de agora estarão liberadas todas as piadas de anão, negão e viado? Tirar a demarcação de terras indígenas da alçada dos especialistas da Funai e passar para os ruralistas já seria uma dessas anedotas? E a última dos jornalistas que não podem levar maçãs para comer, ficam sem beber água e são ameaçados por snipers (atiradores de elite), já ouviu? Não tem a menor graça.

O ponto alto da posse do presidente, no entanto, foi o discurso da primeira-dama Michelle Bolsonaro, feito em Libras (Língua Brasileira de Sinais). Certamente o momento mais politicamente correto da cerimônia. Só faltou lembrar que a lei que regulamentou, em 2010, a profissão de tradutor e intérprete de Libras, é de autoria da deputada “socialista” Maria do Rosário (PT-RS).

Um marciano que chegasse ao Brasil no primeiro dia de 2019 e lesse os dois discursos de Bolsonaro teria alguma dificuldade para entender as propostas. Talvez repetisse a pergunta de Renato Russo: “Que país é este?”. Em um dado momento ele “reafirma o compromisso de construir uma sociedade sem discriminação ou divisão”. Para em seguida afirmar que “não podemos deixar que ideologias nefastas venham a dividir os brasileiros”.  A parte de se libertar do socialismo também não ficou clara. Até onde se tem notícia, o Brasil jamais viveu uma experiência de coletivização dos meios de produção e nem supressão da propriedade privada. Definições clássicas de socialismo.

A primeira-dama Michelle Bolsonaro faz um discurso em Libras, a linguagem dos surdos. Foto Evaristo Sá/AFP
A primeira-dama Michelle Bolsonaro faz um discurso em Libras, a linguagem dos surdos. Foto Evaristo Sá/AFP

Quando o tema foi educação, o presidente falou em meritocracia e ideologia de gênero, mas esqueceu de mencionar a dramática evasão escolar e o lamentável salário dos professores. O saneamento básico, um dos problemas mais graves do país, foi citado uma vez, mas as palavras desigualdade, fome e miséria não apareceram. Talvez ele tenha esquecido que o Brasil está entre os quatro países mais desiguais do mundo e que a miséria cresceu nos últimos anos. Já a promessa de facilitar a distribuição de armas entre a população voltou a fazer parte do discurso, é claro. É possível que alguns brasileiros desesperados resolvam combater a fome à bala.

O ponto alto da posse do presidente, no entanto, foi o discurso da primeira-dama Michelle Bolsonaro, feito em Libras (Língua Brasileira de Sinais). Certamente o momento mais politicamente correto da cerimônia. Só faltou lembrar que a lei que regulamentou, em 2010, a profissão de tradutor e intérprete de Libras, é de autoria da deputada “socialista” Maria do Rosário (PT-RS). A mesma que ouviu do então deputado Jair Bolsonaro que não seria estuprada porque não merecia.

É provável que estes primeiros discursos de Bolsonaro sejam fruto apenas de um nervosismo inicial ou mesmo da falta de um bom redator que o apoie. Mas existe uma semelhança clara entre o que ele diz e faz com o que os professores Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, autores do best-seller “Como as democracias morrem”, classificam como grandes ameaças à democracia. Para eles, existem duas normas não escritas que são fundamentais para a manutenção de um regime democrático: a tolerância mútua e a reserva institucional.

A primeira tem a ver com respeitar a oposição. Entender que as críticas são saudáveis para qualquer governo e tornam as decisões mais equilibradas. Sejam elas feitas pelos partidos de oposição ou por jornalistas. Esse é o trabalho deles. Acabar com um “socialismo” que nunca existiu ou varrer os “vermelhos” do mapa não ajuda nada. A menos que o objetivo seja tirar o foco do que realmente importa.

A segunda regra não escrita significa entender que o poder executivo não é único e nem maior que os outros. É preciso considerar o papel de cada um e aprender a negociar, no melhor sentido da palavra. Governar por decretos, como o novo governo ameaça fazer, pode até ser um caminho permitido pela lei, mas não é o melhor caminho. Ele pode se tornar mais longo e espinhoso. Como dizem Levitsky e Ziblatt, “alguns colapsos democráticos mais trágicos da história do mundo foram precedidos pela degradação de normas básicas”. Esperamos que isso não aconteça no Brasil, seria uma decisão politicamente muito incorreta.

Agostinho Vieira

Formado em Jornalismo pela Escola de Comunicação da UFRJ. Foi repórter de Cidade e de Política, editor, editor-executivo e diretor executivo do jornal O Globo. Também foi diretor do Sistema Globo de Rádio e da Rádio CBN. Ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo, em 1994, e dois prêmios da Society of Newspaper Design, em 1998 e 1999. Tem pós-graduação em Gestão de Negócios pelo Insead (Instituto Europeu de Administração de Negócios) e em Gestão Ambiental pela Coppe/UFRJ. É um dos criadores do Projeto #Colabora.

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