ODS 1
Brumadinho: 300 km de medo, insegurança e incerteza
Liderado por pesquisadores da UFJF, grupo reúne dados e relatos coletados ao longo do Rio Paraopeba no relatório Minas de Lama
Após um ano do rompimento da Barragem I, do Córrego do Feijão em Brumadinho (MG), os impactos permanentes estão marcados além da paisagem física e geográfica. A tragédia carrega a identidade dos afetados, construída territorialmente às margens do rio. A expedição Minas de Lama, realizada por pesquisadores da UFJF e de outras instituições, dez dias depois do rompimento, transformou os dados e os relatos coletados ao longo do rio Paraopeba em um relatório inédito, divulgado esta semana.
O documento percorre o sentido oposto do desastre, partindo de Felixlândia até a chegada na barragem em Brumadinho. São destacadas as expectativas, percepções e incertezas dos afetados, reconstruindo a imagem geográfica antes, durante e após o caminho da lama. Nos 300 quilômetros percorridos pela expedição, 25 pessoas foram entrevistadas – entre elas, moradores, comerciantes, terceirizados ligados a Vale e voluntários. A metodologia, ancorada na memória dos atingidos, permitiu a compreensão das mudanças diretas e indiretas advindas da contaminação do rio.
A publicação foi elaborada em parceria entre os professores e alunos do Departamento de Geociências da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF); do Instituto Federal do Norte de Minas Gerais – Campus Almenara, e Universidade Estadual de Goiás (UEG), que estiveram envolvidos na expedição entre os dias 4 e 6 de janeiro de 2019. Também contou com o apoio do Comitê Nacional em Defesa dos Territórios Frente à Mineração. Hoje, os desdobramentos do rompimento ainda estão sendo analisados pelo grupo, por meio de pesquisas científicas e testes laboratoriais.
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Veja o que já enviamosDetalhes e resultados do relatório Minas de Lama foram apresentados no podcast Encontros A3, da Revista A3 da UFJF, pelo coordenador da expedição Miguel Fernandes Felippe. Professor da UFJF e líder do grupo de pesquisas Terra – Temáticas Especiais Relacionadas ao Relevo e à Água, ele tem grande experiência em recursos hídricos e morfologia fluvial e já atuava no mapeamento dos danos do rompimento da Barragem de Fundão, em Mariana. “Buscamos ver e, principalmente, ouvir a população que estava sendo afetada e não estava tendo a mesma visibilidade de quem mais perto do desastre”, afirmou o pesquisador Miguel Felippe, lembrando que a expedição reuniu mais de mil horas de entrevistas.
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Para além de Brumadinho
Os três dias em campo permitiram o reconhecimento de distintas territorialidades do desastre no curso do Rio Paraopeba. A expedição constatou que as ações da empresa e de órgãos do Estado funcionavam em diferentes escalas junto aos territórios. Além disso, o acesso à informação e o nível de conhecimento sobre os efeitos da lama de rejeitos na qualidade da água, os prejuízos socioeconômicos e o medo quanto ao futuro comum estavam presentes nas comunidades, nas propriedades rurais e nos assentamentos de reforma agrária. Os sujeitos que compõem essa paisagem têm no rio um bem comum, onde a vida e o trabalho esteve diretamente ligada à construção identitária coletiva das águas que margeiam seus territórios.
A narrativa comum dos relatos durante a expedição evidenciou a falta de comunicação do poder público com a emergência do desastre. Segundo Miguel Felippe, a forma de diálogo e o plano de ação feito nas áreas urbanas é diferente das regiões rurais atingidas pela lama. “Quando se fala em população urbana, aí muda-se a história. Parece que quem mora na roça, o campesino, o agricultor, não tem a mesma importância de quem mora na cidade. Infelizmente, é o que vemos, tanto no Rio Doce, quanto no Rio Paraopeba”, diz.
O pesquisador explica que no baixo curso do rio – que compreende a área entre as cidades de Felixlândia até Pará de Minas – criou-se uma territorialidade vazia do poder público. “Os relatos recolhidos pela nossa expedição mostram que, 10 dias após a tragédia, esses moradores da área do baixo curso do rio não tinham qualquer assistência do poder público. A única ação era da polícia que chegava para avisar que eles não podiam usar a água. E assim continuou por semanas a fio”, explicou o pesquisador em entrevista ao podcast Encontros A3.
As regiões mais próximas ao rompimento da barragem contavam com maior foco e assistência da empresa e do governo, evidenciando uma lógica de aproximação, onde a sensação de incerteza e preocupação com a qualidade da água, com a atividade pesqueira e a desvalorização dos lotes de terra, nas áreas afetadas direta e indiretamente, causou a evasão de parte dos moradores locais, enquanto outros regressaram para salvar o que podiam. “As pessoas começaram a mudar de casa, abandonar lavouras, deixar suas atividades, simplesmente por medo, por geração de expectativa negativa. Tivemos relatos de moradores do preço da terra caindo, do preço das casas caindo”, contou Miguel Fernandes Felippe.
A imersão na vivência dos moradores atingidos demonstrou que, desde a notícia do rompimento da barragem de rejeitos, as atividades cotidianas, o trabalho e o consumo foram modificados. A ausência do poder público também colaborou para criação de expectativas negativas – mesmo sem informações precisas que definissem o futuro de localidades ainda não impactadas pelos sedimentos físicos do rompimento.
No caso do condomínio Ribeiro Manso, em Felixlândia (MG), imediatamente foi relatado aos pesquisadores uma desvalorização imobiliária decorrente da falta de notícias confiáveis e reverberação dos dados ambientais. Este fenômeno não se restringiu ao preço da terra, os afetados temiam a aquisição de doenças. “As pessoas estavam muito preocupadas com medo de adoecer. Essa geração de expectativas ainda existe, nós dizemos que o desastre não acabou. O desastre é cotidiano para aquelas pessoas que vivem nesse local”, complementou o pesquisador.
Contaminação sem dimensão
O professor Miguel Felippe destacou ainda que outro resultado vem das análises que estão sendo feitas das amostras do solo e da água. “Os estudos mostram que, ao contrário do que alegam as empresas, os metais pesados – ferro, manganês, alumínio – dos rejeitos da barragem não estão quimicamente inertes, mas tem ainda grande capacidade de contaminação vertical. Ou seja, vão contaminar o solo e fluxos de água subterrâneos”, explicou.
O pesquisador disse ainda no Encontros A3 que a contaminação não se encerrou e nem tem previsão para terminar. “Ainda não é possível saber a extensão dos danos tanto no tempo quanto na paisagem. Por isso, estamos trabalhando com uma equipe multidisciplinar envolvendo pesquisadores da ecologia, da engenharia, da saúde, da sociologia. Se o material contaminado vai atingir solo e água, as pessoas vão precisar de assistência. Não podemos criar um alarme desnecessário mas também não podemos ser negligentes”, acrescentou o professor Miguel Felippe.
Os trabalhos parciais, artigos, notas técnicas estão disponíveis no site Minas de Lama, onde é possível acessar o relatório de campo. O material também pode ser encontrado no site do grupo Terra. As análises da equipe de pesquisadores focam agora nas consequências deixadas pelo rompimento. As investigações buscam compreender qual o efeito do rejeito acumulado no solo sobre as águas subterrâneas. De acordo com ensaios laboratoriais, há uma expressiva contaminação vertical, a qual contradiz a premissa de inércia química dos rejeitos. Esses estudos ainda estão em fase de testes e seguem em análise.
A série #100DiasDeBalbúrdiaFederal terminou, mas o #Colabora vai continuar publicando reportagens para deixar sempre bem claro que pesquisa não é balbúrdia.
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