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Veja o que já enviamosGata, pode amassar seu pão, mas tenha a chave da cozinha
Tendência de trad wives acende alerta sobre quando a servidão vira estética e o retrocesso se disfarça de “livre escolha”
Há algo de tragicômico na forma como o machismo adora se reinventar com um filtrozinho para ganhar ares de coisa boa. Desde que o mundo é mundo, mulheres vez ou outra caem no engodo conservadorista de que a felicidade só é alcançável ao lado de um homem (alô heterocentrismo), tendo filhos (oi, maternidade compulsória!) e mantendo uma casa impecável (olá, divisão sexual do trabalho).
Esse modelinho de opressão, que só valida um tipo específico de mulher e um caminho único para a felicidade, tenta condenar nós todas, distantes desse padrão limitante, à periferia da mulheridade, e fica pior conforme vamos acumulando características que nos afastam da “mulher ideal”. Não é branca, um passo para fora do círculo. LGBTQIA+, afaste-se mais um pouco por favor. Pobre? Um passinho para trás… e por aí vai.
Leu essa? Quanto mais feminista me torno, menos eu romantizo a amizade entre mulheres
Só que os mecanismos de controlar e oprimir mulheres sabem se disfarçar e atuar na surdina, muitas vezes fazendo a gente crer que está fazendo o que quer, até um bando de “feministas chatas” (para ser sutil) vir dizer que aquilo é dominação. Até o tiro sair pela culatra. Todo mundo assistiu a influenciadora Cíntia Chagas, que tanto xingou o feminismo, dizer que foi mais acolhida pelas feministas do que por mulheres como ela, autointitulada conservadora, quando denunciou a violência doméstica que sofreu. E disse, ainda, que os vídeos mais agressivos contra o feminismo foram subsequentes às vezes em que foi agredida, por reconhecer no discurso que sofria violências em seu então casamento.


Olha o perigo de se vender o antifeminismo como opinião. Um novo truque das estruturas patriarcais que vem colando é vender o trabalho doméstico como estética. Um “retorno ao feminino” (seja lá onde esse “lugar” for), que cabe na tela do TikTok e na promessa de uma feminilidade artesanal, sem eletrodomésticos e , óbvio, sem salário. É o mesmíssimo discurso que tenta nos ensinar que o amor redime a exaustão da sobrecarga feminina, agora vem embrulhado em fermentação natural e nostalgia.
Os feminismos, claro, nunca odiaram pães de crescimento lento feitos artesanalmente, a luta sempre foi, na verdade, contra a obrigação de ter um marido e servi-lo com esse pão ou o que seja. A questão nunca foi estar na cozinha por opção, mas o peso simbólico e literal de ser submetida à violência doméstica e sem chance de ajuda, pois “ninguém mete a colher”. Desde que haja possibilidade de escolha, tudo bem lugar de mulher ser na cozinha, ou em qualquer cômodo que ela quiser. Qualquer coisa que não seja liberdade absoluta, para bater um bolo ou para viver a sexualidade, é o velho machismo fantasiado de tendência.
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Veja o que já enviamosA tendência das trad wives (abreviação de traditional wives, ou “esposas tradicionais”) nas redes é sintomática desse pique-esconde do machismo com a gente. Mulheres, geralmente brancas, jovens e sorridentes, aparecem em vídeos polidos, vestidos rodados e aventais de linho, assando bolos e arrumando flores enquanto pregam o retorno à “feminilidade perdida”. O discurso das trad wives parece inofensivo, quase bucólico, até se olhar de perto: por trás do filtro vintage e da copnfeitaria, o que se vende é uma utopia doméstica onde a mulher é feliz porque serve: ao marido, aos filhos e à estética do lar.
A “escolha” de viver como dona de casa vira slogan de empoderamento, mas curiosamente esse empoderamento some quando a conversa é sobre autonomia financeira, direitos reprodutivos ou divisão real das tarefas. O machismo, esperto como é, aprendeu a usar linguagem de liberdade pra vender servidão com mais likes e engajamento. E vai aprender todos os idiomas que precisar para estar à nossa espreita.
As estruturas patriarcais aprenderam a se vestir de algodão cru e a falar mansinho sobre “valores familiares”. O discurso parece novo, mas é a mesma receita requentada que sempre nos foi servida: obediência, mas com chantilly batido a mão. As trad wives não estão apenas cozinhando, estão ajudando a reaquecer a ideologia que dizia que lugar de mulher é onde ela não incomoda. E o mais cruel é que, sob o pretexto de “livre escolha”, essa tendência transforma a desigualdade em estética e o retrocesso em estilo de vida.
Enquanto os algoritmos vendem a opressão como tendência resta a nós lembrar: o problema nunca foi a cozinha; é a porta trancada por dentro.
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