Rebeca Andrade, Daiane e a falta de cultura esportiva no Brasil

No nosso país, mesmo campeões de tudo em seus esportes precisam de uma medalha olímpica para ter o reconhecimento geral

Por Oscar Valporto | ODS 10ODS 5 • Publicada em 29 de julho de 2021 - 13:43 • Atualizada em 10 de agosto de 2021 - 08:55

Rebeca Andrade e sua apresentação no solo a caminho da medalha de prata em Tóquio: sem cultura esportiva, Brasil supervaloriza as conquistas olímpicas (Foto: Lionel Bonaventure / AFP)

Bastou conquistar a primeira medalha de prata nas competições femininas de ginástica para Rebeca Andrade começar a ser chamada pelos apressados das redes sociais como a maior ginasta da história do país. O feito de Rebeca nos Jogos Olímpicos de Tóquio 2020 é enorme – ainda mais por ser na competição individual geral, onde atletas têm que mostrar talento em todos os aparelhos (e ela ainda pode conquistar mais duas medalhas). Mas o Brasil é o país de Daiane dos Santos, campeã mundial no solo, a mais brilhante medalha da sua coleção conquistada em competições internacionais, uma atleta que batiza dois movimentos da ginástica.

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Mas Daiane dos Santos nunca ganhou uma medalha olímpica, podem argumentar aqueles que acompanham a maior parte dos esportes olímpicos só de quatro em quatro anos. Mas foi a primeira brasileira – e a primeira negra de qualquer nacionalidade – a ganhar, em 2003, uma medalha de ouro no Campeonato Mundial Ginástica, competição que reúne os principais atletas da modalidade. É uma competição tão difícil como a disputa olímpica. Mas os brasileiros nem acompanham, sequer souberam do drama da própria Rebeca Andrade, que, depois de ter chegado à final olímpica da Rio 2016, ficou de fora dos campeonatos mundiais de 2017, em Montreal, e 2019, em Stuttgart, por conta de graves lesões no joelho.

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“A primeira medalha (feminina de ginástica) do Brasil em um Mundial foi negra e a primeira medalha olímpica é negra. Isso é muito forte. Durante muito tempo as pessoas diziam que não poderia ter uma ginasta negra. Que as pessoas negras não poderiam praticar certos esportes. E a gente vê hoje a primeira medalha para uma menina negra. Tem uma representatividade muito grande atrás de tudo isso

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Por isso, a campeã mundial Daiane ouviu tantas críticas quando sofreu duas quedas na final olímpica do solo em Atenas 2004, um ano depois de seu título. A gaúcha havia acabado de se tornar a primeira brasileira numa final olímpica de ginástica – que reúne apenas as oito melhores por aparelho – e teve que ouvir comentários de que havia “amarelado” ou “tremido”. por não ter alcançado uma medalha; ficou em quinto lugar. Quatro anos depois, com outros ouros conquistados, em etapas da Copa do Mundo, ela voltou à final olímpica em Pequim. Novamente não conquistou medalha, novamente ouviu críticas desmerecendo toda a sua carreira pela ausência no pódio olímpico.

Esse desmerecimento – que hoje seria multiplicado pelas redes sociais – faz parte da falta de cultura esportiva do Brasil, país onde esporte é periférico na formação escolar das crianças, o investimento público é pífio (como em tantas áreas) e a população só tem sua atenção atraída para a maioria dos esportes durante os Jogos Olímpicos. Não é um problema naturalmente só do Brasil – e os Jogos Olímpicos são efetivamente o maior evento esportivo, por reunir todas as modalidades ao mesmo tempo. Os atletas também sabem disso: da exposição e da consequente maior responsabilidade. Mas, nas grandes potências esportivas, campeões mundiais não são colocados em dúvida quando não ganham medalhas olímpicas.

Daiane dos Santos em apresentação nos Jogos Olímpicos de Londres 2012: título mundial pouco valorizado por falta de medalha olímpica (Foto: Ben Stansall / AFP)
Daiane dos Santos em apresentação nos Jogos Olímpicos de Londres 2012: título mundial pouco valorizado por falta de medalha olímpica (Foto: Ben Stansall / AFP)

Daiane não é o único exemplo. A seleção brasileira feminina de handebol foi campeã mundial em 2013, conquistou 10 medalhas de ouro nos Jogos Pan-Americanos, tem o respeito das adversárias e jogadores espalhadas pelos principais times do mundo, mas não recebe qualquer atenção do público brasileiro fora de seu esporte porque ainda não conquistou uma medalha olímpica. As brasileiras Adriana Behar e Shelda foram seis vezes campeãs do Circuito Mundial de Vôlei de Praia e ganharam duas Copas do Mundo da modalidade, e foram obrigadas a ouvir críticas depois de suas participações olímpicas quando chegaram à final (em Sidney 2000 e Atenas 2004) e perderam: ou seja, nem duas medalhas de prata olímpicas as pouparam dessa nossa cultura esportiva. O nadador Thiago Pereira já tinha 12 medalhas de ouro nos Jogos Pan-Americanos mas era desconsiderado por não ter chegado ao pódio olímpico em 2004 e 2008; o reconhecimento fora do esporte só veio com a medalha de prata em Londres 2012. Felizmente para eles, como para Daiane dos Santos, as redes sociais não eram o que são hoje.

A conquista de Rebeca Andrade é enorme – principalmente olhando para trás. Negra, filha de uma empregada doméstica, mãe solo, com seis irmãos, Rebeca tinha nove anos quando seu talento a levou para longe da família; foi morar com a coordenadora do seu clube em Guarulhos, na grande São Paulo. Passou pelos sacrifícios que passam os atletas de ponta, inclusive as lesões no joelho que quase a fizeram desistir da carreira. Sua conquista emocionou Daiane dos Santos. “A primeira medalha (feminina de ginástica) do Brasil em um Mundial foi negra e a primeira medalha olímpica é negra. Isso é muito forte. Durante muito tempo as pessoas diziam que não poderia ter uma ginasta negra. Que as pessoas negras não poderiam praticar certos esportes. E a gente vê hoje a primeira medalha para uma menina negra. Tem uma representatividade muito grande atrás de tudo isso”, disse a agora ex-atleta, que comentou a competição para a TV Globo.

Vida de atleta – principalmente nos esportes individuais – é sempre muito difícil. Vida de mulher atleta fica ainda mais sacrificada. Atleta, mulher e negra é uma soma que multiplica as dificuldades – no Brasil, o aumento é exponencial. Os Jogos Olímpicos, pela sua visibilidade, são sempre uma oportunidade para combater o racismo e o machismo – e atletas aproveitam cada vez mais essa oportunidade para defender um mundo menos desigual. Seria muito bom para o Brasil que esse megaevento fosse inspiração para a criação de uma real cultura esportiva no país de Rebeca Andrade.

Oscar Valporto

Oscar Valporto é carioca e jornalista – carioca de mar e bar, de samba e futebol; jornalista, desde 1981, no Jornal do Brasil, O Globo, O Dia, no Governo do Rio, no Viva Rio, no Comitê Olímpico Brasileiro. Voltou ao Rio, em 2016, após oito anos no Correio* (Salvador, Bahia), onde foi editor executivo e editor-chefe. Contribui com o #Colabora desde sua fundação e, desde 2019, é um dos editores do site onde também pública as crônicas #RioéRua, sobre suas andanças pela cidade

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