Bastou conquistar a primeira medalha de prata nas competições femininas de ginástica para Rebeca Andrade começar a ser chamada pelos apressados das redes sociais como a maior ginasta da história do país. O feito de Rebeca nos Jogos Olímpicos de Tóquio 2020 é enorme – ainda mais por ser na competição individual geral, onde atletas têm que mostrar talento em todos os aparelhos (e ela ainda pode conquistar mais duas medalhas). Mas o Brasil é o país de Daiane dos Santos, campeã mundial no solo, a mais brilhante medalha da sua coleção conquistada em competições internacionais, uma atleta que batiza dois movimentos da ginástica.
Mais: A campeã Simone Biles e o direito de ser ‘apenas’ humana
Mas Daiane dos Santos nunca ganhou uma medalha olímpica, podem argumentar aqueles que acompanham a maior parte dos esportes olímpicos só de quatro em quatro anos. Mas foi a primeira brasileira – e a primeira negra de qualquer nacionalidade – a ganhar, em 2003, uma medalha de ouro no Campeonato Mundial Ginástica, competição que reúne os principais atletas da modalidade. É uma competição tão difícil como a disputa olímpica. Mas os brasileiros nem acompanham, sequer souberam do drama da própria Rebeca Andrade, que, depois de ter chegado à final olímpica da Rio 2016, ficou de fora dos campeonatos mundiais de 2017, em Montreal, e 2019, em Stuttgart, por conta de graves lesões no joelho.
Gostando do conteúdo? Nossas notícias também podem chegar no seu e-mail.
Veja o que já enviamos“A primeira medalha (feminina de ginástica) do Brasil em um Mundial foi negra e a primeira medalha olímpica é negra. Isso é muito forte. Durante muito tempo as pessoas diziam que não poderia ter uma ginasta negra. Que as pessoas negras não poderiam praticar certos esportes. E a gente vê hoje a primeira medalha para uma menina negra. Tem uma representatividade muito grande atrás de tudo isso
[/g1_quote]Por isso, a campeã mundial Daiane ouviu tantas críticas quando sofreu duas quedas na final olímpica do solo em Atenas 2004, um ano depois de seu título. A gaúcha havia acabado de se tornar a primeira brasileira numa final olímpica de ginástica – que reúne apenas as oito melhores por aparelho – e teve que ouvir comentários de que havia “amarelado” ou “tremido”. por não ter alcançado uma medalha; ficou em quinto lugar. Quatro anos depois, com outros ouros conquistados, em etapas da Copa do Mundo, ela voltou à final olímpica em Pequim. Novamente não conquistou medalha, novamente ouviu críticas desmerecendo toda a sua carreira pela ausência no pódio olímpico.
Esse desmerecimento – que hoje seria multiplicado pelas redes sociais – faz parte da falta de cultura esportiva do Brasil, país onde esporte é periférico na formação escolar das crianças, o investimento público é pífio (como em tantas áreas) e a população só tem sua atenção atraída para a maioria dos esportes durante os Jogos Olímpicos. Não é um problema naturalmente só do Brasil – e os Jogos Olímpicos são efetivamente o maior evento esportivo, por reunir todas as modalidades ao mesmo tempo. Os atletas também sabem disso: da exposição e da consequente maior responsabilidade. Mas, nas grandes potências esportivas, campeões mundiais não são colocados em dúvida quando não ganham medalhas olímpicas.
Daiane não é o único exemplo. A seleção brasileira feminina de handebol foi campeã mundial em 2013, conquistou 10 medalhas de ouro nos Jogos Pan-Americanos, tem o respeito das adversárias e jogadores espalhadas pelos principais times do mundo, mas não recebe qualquer atenção do público brasileiro fora de seu esporte porque ainda não conquistou uma medalha olímpica. As brasileiras Adriana Behar e Shelda foram seis vezes campeãs do Circuito Mundial de Vôlei de Praia e ganharam duas Copas do Mundo da modalidade, e foram obrigadas a ouvir críticas depois de suas participações olímpicas quando chegaram à final (em Sidney 2000 e Atenas 2004) e perderam: ou seja, nem duas medalhas de prata olímpicas as pouparam dessa nossa cultura esportiva. O nadador Thiago Pereira já tinha 12 medalhas de ouro nos Jogos Pan-Americanos mas era desconsiderado por não ter chegado ao pódio olímpico em 2004 e 2008; o reconhecimento fora do esporte só veio com a medalha de prata em Londres 2012. Felizmente para eles, como para Daiane dos Santos, as redes sociais não eram o que são hoje.
A conquista de Rebeca Andrade é enorme – principalmente olhando para trás. Negra, filha de uma empregada doméstica, mãe solo, com seis irmãos, Rebeca tinha nove anos quando seu talento a levou para longe da família; foi morar com a coordenadora do seu clube em Guarulhos, na grande São Paulo. Passou pelos sacrifícios que passam os atletas de ponta, inclusive as lesões no joelho que quase a fizeram desistir da carreira. Sua conquista emocionou Daiane dos Santos. “A primeira medalha (feminina de ginástica) do Brasil em um Mundial foi negra e a primeira medalha olímpica é negra. Isso é muito forte. Durante muito tempo as pessoas diziam que não poderia ter uma ginasta negra. Que as pessoas negras não poderiam praticar certos esportes. E a gente vê hoje a primeira medalha para uma menina negra. Tem uma representatividade muito grande atrás de tudo isso”, disse a agora ex-atleta, que comentou a competição para a TV Globo.
Emocionante! Daiane dos Santos emocionada com a vitória de Rebeca Andrade e todo o poder e representatividade de termos uma menina negra no pódio, representando um país que ainda pena com o racismo diário.
Compartilhe. #OlimpiadasTokio2020 pic.twitter.com/T5GA41cdFX— Projeto #Colabora (@colaboraprojeto) July 29, 2021
Vida de atleta – principalmente nos esportes individuais – é sempre muito difícil. Vida de mulher atleta fica ainda mais sacrificada. Atleta, mulher e negra é uma soma que multiplica as dificuldades – no Brasil, o aumento é exponencial. Os Jogos Olímpicos, pela sua visibilidade, são sempre uma oportunidade para combater o racismo e o machismo – e atletas aproveitam cada vez mais essa oportunidade para defender um mundo menos desigual. Seria muito bom para o Brasil que esse megaevento fosse inspiração para a criação de uma real cultura esportiva no país de Rebeca Andrade.