Sobre livros, armas, árvores e resistência

A jovem Lua Oliveira, de 12 anos, espia por trás de um livro na biblioteca pública Mundo da Lua, fundada por ela na favela dos Tabajaras, no Rio de Janeiro. Um bom exemplo de resistência. Foto Mauro Pimentel/AFP

No Brasil dos disparates, bibliotecas públicas são fechadas, clubes de tiro são abertos todos os dias e a Amazônia bate novo recorde de desmatamento

Por Agostinho Vieira | ArtigoODS 4 • Publicada em 19 de julho de 2022 - 09:46 • Atualizada em 30 de janeiro de 2024 - 14:54

A jovem Lua Oliveira, de 12 anos, espia por trás de um livro na biblioteca pública Mundo da Lua, fundada por ela na favela dos Tabajaras, no Rio de Janeiro. Um bom exemplo de resistência. Foto Mauro Pimentel/AFP

Bücherverbrennung é uma expressão alemã que significa queima de livros. O termo frequentemente é relacionado com as ações de propaganda dos nazistas que começaram em 1933, logo após a chegada de Adolf Hitler ao poder, e seguiram quase até o fim da Segunda Guerra Mundial. Em várias cidades da Alemanha as queimas de livros tinham lugar em praças públicas, eram organizadas previamente e contavam com a presença de autoridades locais, da polícia e dos bombeiros. A ideia era destruir, com pompa e solenidade, o trabalho de autores malquistos pelo regime. Nomes como Thomas Mann, Walter Benjamin, Bertolt Brecht, Sigmund Freud e muitos outros.

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No Brasil de hoje ainda não se tem notícia de livros sendo queimados em praças públicas, pelo menos não oficialmente. Em compensação, temos sido ágeis na destruição da cultura, esse antro de críticos do governo. Só entre 2015 e 2020, segundo reportagem da BBC Brasil, foram fechadas 764 bibliotecas públicas, segundo dados do Sistema Nacional de Bibliotecas Públicas (SNBP), da Secretaria Especial de Cultura do Ministério do Turismo. Em 2015, os dados oficiais indicavam a existência de 6.057 bibliotecas no país. O número caiu para 5.293, em 2020, de acordo com a informação mais recente disponível no site do SNBP. Essa notícia nos leva a duas conclusões mais ou menos óbvias. Como estamos falando de bibliotecas públicas, os brasileiros mais prejudicados são os mesmos de sempre: a população pobre, sem recursos para comprar um livro numa livraria. A segunda certeza é de que esses números estão subestimados, dado o pouco interesse do governo com qualquer coisa que se relacione com livros, cultura ou coisa parecida.

Enquanto isso, nos últimos três anos, coincidentemente o mesmo período em que o capitão Jair Bolsonaro está no poder, a quantidade de licenças para usar armas no Brasil cresceu 325%. O país já atingiu a incrível marca de 1,85 milhão de colecionadores, atiradores esportivos e caçadores, conhecidos no jargão do setor como CACs. Exatamente o grupo que tem mais facilidade para comprar armas. A lei em vigor permite que os atiradores esportivos comprem até 60 armas, sendo 30 de uso restrito, como fuzis. Além da bagatela de 180 mil balas. Segundo dados do Exército, o Brasil possui hoje 2.061 clubes de tiro, sendo que 1.006 foram abertos nos últimos três anos. Uma média de quase um novo clube de tiro por dia. Não é preciso ser um especialista para concluir que com mais revólveres, fuzis e afins circulando pelo país crescem a violência e as mortes por armas de fogo, como explicou Carolina Ricardo, diretora do Instituto Sou da Paz, no Jornal Nacional:

“As mulheres têm sido proporcionalmente mais mortas dentro de casa por arma de fogo. O que indica que essa arma em casa não garante a proteção da família. Além disso, existe um impacto no abastecimento do crime. É fato que uma parte importante das armas encontradas nas mãos dos criminosos veio do mercado legal”.

Armas automáticas, dinheiro e outros equipamentos apreendidos na casa de um amigo do policial militar Ronnie Lessa, preso pelo assassinato da vereadora Marielle Franco. Foto Carl de Souza/AFP
Armas automáticas, dinheiro e outros equipamentos apreendidos na casa de um amigo do policial militar Ronnie Lessa, preso pelo assassinato da vereadora Marielle Franco. Foto Carl de Souza/AFP

Para completar o cenário de barbárie em que nos encontramos, nesta segunda-feira (18 de julho) o MapBiomas divulgou o mais recente Relatório Anual de Desmatamento no Brasil (RAD). Ganha uma muda de Pau-Brasil quem adivinhar o resultado. Exato. Em 2021, o Brasil perdeu mais 16.557 km² (1.655.782 hectares) de cobertura vegetal nativa em todos os seus biomas. Um aumento de 20% em relação ao ano anterior. A Amazônia foi, mais uma vez, a região mais afetada pelos criminosos ambientais. Só no ano passado foram mais de 977 mil hectares de vegetação nativa destruídos. O Cerrado veio logo atrás, com 500 mil hectares suprimidos.

Que país é esse, perguntaria Renato Russo, que, em poucos anos, fecha 764 bibliotecas públicas e abre 1.006 clubes de tiro? O que estamos fazendo para evitar que isso aconteça? Durante a Segundo Guerra Mundial, na mesma época em que os nazistas queimavam livros em praça pública, um grupo de bibliotecários de Paris lutou com as armas que tinha para manter a Biblioteca Americana de Paris (BAP) aberta. Arriscaram a vida para enviar livros clandestinamente aos judeus que viviam enclausurados em suas casas e para os soldados franceses no front. Entraram para a história como exemplo de resistência. A saga dos bibliotecários e de Odile Souchet, uma jovem parisiense que ama os livros e trabalha no emprego dos seus sonhos, está contada no best-seller “A Biblioteca de Paris”, de Janet Skeslien Charles. Quem sabe esse livro não possa servir de inspiração? Mas nós não estamos em guerra, dirão alguns. Será?

Agostinho Vieira

Formado em Jornalismo pela Escola de Comunicação da UFRJ. Foi repórter de Cidade e de Política, editor, editor-executivo e diretor executivo do jornal O Globo. Também foi diretor do Sistema Globo de Rádio e da Rádio CBN. Ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo, em 1994, e dois prêmios da Society of Newspaper Design, em 1998 e 1999. Tem pós-graduação em Gestão de Negócios pelo Insead (Instituto Europeu de Administração de Negócios) e em Gestão Ambiental pela Coppe/UFRJ. É um dos criadores do Projeto #Colabora.

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