Sob cajueiro, com folhas de fax e lápis compartilhado: a luta por educação dos povos indígenas cearenses

Escola indígena Tapeba: fruto de décadas de luta da etnia por educação que valorize sua cultura (Foto: Governo do Ceará)

Estado tem 47 escolas indígenas para atender 14 etnias, mas professores nunca foram efetivados nas redes de ensino público

Por Natali Carvalho | ODS 10ODS 4 • Publicada em 4 de outubro de 2021 - 08:48 • Atualizada em 21 de fevereiro de 2022 - 17:07

Escola indígena Tapeba: fruto de décadas de luta da etnia por educação que valorize sua cultura (Foto: Governo do Ceará)

“Eu tive que fugir para ter acesso à educação”, conta Dourado Tapeba, liderança do povo Tapeba, localizado no município de Caucaia, no Ceará. Em 1972, aos 11 anos, ele fugiu para Itapipoca, a cerca de 150 quilômetros, para estudar. A única forma de comunicar o sumiço dele era por cartas, cuja demora em chegar corroborou para que o plano fosse realizado. Quase 50 anos depois, os indígenas do Ceará ainda precisam lutar para ter o direito à educação assegurado. Professores nunca foram efetivados na educação estadual e municipal.

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Atualmente o Ceará conta com 39 escolas estaduais indígenas e oito municipais, pertencentes a 14 etnias, distribuídas em 16 municípios. São mais de sete mil alunos matriculados da educação infantil ao ensino médio, além da Educação de Jovens e Adultos (EJA). Embora o cenário pareça promissor, os professores indígenas lutam há mais de dez anos por um concurso público que assegure direitos para a categoria.

Os profissionais são contratados mediante seleção pública exclusivamente para o exercício da docência. Ou seja, para o ensino. Essas orientações baseiam as ações da Secretaria de Educação do Estado do Ceará (Seduc). Devido à lei complementar 173, de enfrentamento à covid-19, os estados estão impossibilitados de ampliar seus quadros de servidores, admitindo apenas o número exato de concursados para suprir os cargos em vacância.

A discussão sobre concursos públicos para indígenas está paralisada há 21 anos. A pandemia tornou-se a desculpa da vez para não reabrir o debate. “Mas, neste ano, houve o concurso para a polícia. Estamos desde 2000 tentando esse concurso, por isso acredito que seja morosidade, uma falta de vontade política”, relata Thiago Anacé, professor e primeiro indígena a se tornar mestre no estado.

A Seduc recebeu representantes dos professores no dia 19 de agosto, que reivindicam não apenas um concurso público, mas melhorias para a categoria, que na pandemia assumiu mais turmas do que deveria devido à impossibilidade de contratação. Segundo a pasta, foi formada uma comissão para rever o processo e o edital para concurso público quando houver condição legal.

“Os professores contratados, por excepcional interesse público, conforme a legislação, recebem as remunerações estabelecidas em lei, o terço constitucional de férias, nos casos de contrato com um ano, e os respectivos recolhimentos previdenciários perante o Regime Geral de Previdência Social”, diz a secretaria, em nota.

Luta por concurso é histórica para professores indígenas

A educação indígena no Ceará começou na década de 1990. No entanto, somente em 2000, o Estado passou a reconhecer esse modelo de educação. “Se pensou uma estratégia: uma empresa para terceirizar a contratação dos professores indígenas, até porque a maioria não tinha a devida habilitação, não tinha licenciatura ou pedagogia. Depois disso, a Secretaria de Educação lançou os primeiros cursos de formação de professores para os indígenas”, explica Thiago.

“Esse concurso assegura 100% de professores indígenas, que conhecem a realidade dos nossos alunos, a cultura, tradição e história das populações indígenas”, afirma Leidiane Tapeba, historiadora e diretora de uma escola indígena. Ela se tornou professora aos 14 anos, ensinando embaixo de um cajueiro para as crianças da comunidade.

“Eu era uma das poucas pessoas na comunidade que estava cursando o ensino médio e, como muitos dos nossos jovens e adultos não tiveram a oportunidade de ir à escola quando criança, me convidaram para trabalhar na Escola Índios Tapeba, que contava com educação infantil e até a segunda série do fundamental”, conta.

Crianças na escola do Povo Pitaguary, em Maracanaú, na Região Metropolitana de Fortaleza: Ceará tem 57 escolas indígenas, entre estaduais e municipais, mas professores indígenas ainda lutam por concurso público (Foto: Davi Pinheiro/Governo do Ceará)
Crianças na escola do povo Pitaguary, em Maracanaú, na Região Metropolitana de Fortaleza: Ceará tem 57 escolas indígenas, entre estaduais e municipais, mas professores indígenas ainda lutam por concurso público (Foto: Davi Pinheiro/Governo do Ceará)

Povos foram praticamente obrigados a construir escolas indígenas

Como tudo na trajetória indígena, a educação dessa população no Ceará também foi uma conquista por iniciativa própria. Indígenas que já sabiam ler e escrever, e possuíam formação básica, tornaram-se professores voluntários. Desde essa época, vem a falta de direitos, já que eles não recebiam nada para ensinar a seus parentes.

A iniciativa teve como base o racismo sofrido pelos indígenas no ensino regular. A série de ataques preconceituosos se tornou a principal motivação para a construção de uma escola pelos e para os indígenas. “Uma vez, a professora agarrou um indígena tapeba pelos cabelos e cortou na frente dos outros alunos. Até o nome do nosso povo era usado de forma pejorativa”, conta Dourado. “Os alunos desistiam e não concluíam a vida escolar por conta do preconceito muito forte, por conta do racismo”, relata Thiago Anacé.

Nos primeiros anos das escolas indígenas, outros pontos de ensino eram quartos em casas de taipa cedidos por parentes, uma forma de a comunidade construir um futuro na educação. Os indígenas recebiam pequenas doações de folhas de fax que se tornavam cadernos, e os lápis eram quebrados em dois ou três pedaços, para que todos pudessem escrever.

Dourado Tapeba, líder indígena pela educação: "Nós conseguimos, com muita luta, construir uma escola indígena diferenciada: todos os funcionários são indígenas (Foto: Natali Carvalho)
Dourado Tapeba, líder indígena pela educação: “Nós conseguimos, com muita luta, construir uma escola indígena diferenciada: todos os funcionários são indígenas” (Foto: Natali Carvalho)

Sem local adequado para o ensino

O Ceará possui 15 povos: Tapeba, Tremembé, Pitaguary e Junipapo-Kanindé, os primeiros a iniciar os seus processos de reafirmação étnica, ao longo das últimas décadas, seguidos pelos povos Potiguara, Kalabaça, Tabajara, Kariri, Tapuya-Kariri, Gavião, Tubiba-Tapuya, Anacé e Tupinambá, e mais recente pelo povo Karão. Cada uma dessas comunidades possui trajetórias e lutas que se entrelaçam, mas que não são iguais, pois cada povo possui sua própria identidade. Em comunidades de duas etnias, Tapeba e Anacé, as dificuldades do ensino permanecem.

Descalço e junto de sua bolsinha de palha, o ainda menino Dourado Tapeba chegou na estação de trem. Na época, o maquinista perguntou para onde ele ia, e ali nasceu uma grande mentira: “Eu disse que minha mãe tinha me mandado ir para a casa da minha irmã para estudar, e ele me levou. Cheguei 2h da madrugada na casa dela, que me recebeu no susto perguntando o que eu tava fazendo ali. Tive que contar a mesma mentira.”

Enquanto o menino estudava, sua mãe pensava que ele havia sido raptado. Meses depois, quando o companheiro da irmã foi visitar a família, a senhora descobriu que o filho estava vivo e bem. Hoje com 60 anos, Dourado Tapeba conta orgulhoso essa história, mas com pesar: “Nós conseguimos, com muita luta, construir uma escola indígena diferenciada, todos os funcionários são indígenas. E uma das minhas principais lutas foi formar meus filhos, que foram de professores voluntários a diretora e coordenadora.”

Por 15 anos, a Escola dos indígenas Tapeba funcionou em locais improvisados, com aulas ao ar livre, embaixo de árvores como o cajueiro, não por escolha pedagógica, mas por falta de amparo do governo. Em 2006, a primeira escola foi construída, prédio que em 2011 passou por um desabamento. O teto caiu, deixando 15 estudantes feridos. Após o episódio, foi reformado.

O início da educação diferenciada para o povo Anacé também foi semelhante, fruto de luta e organização política da comunidade indígena, que, desde o ano de 2002, milita em busca da consolidação da Educação Escolar Indígena para o povo.

“Inicialmente, a escola funcionava em uma casa de taipa e contava com apenas duas salas. Posteriormente, no ano de 2005, a escola passou para um galpão de 9 x 12 metros, adaptado e dividido em quatro salas, uma cozinha, uma despensa, um banheiro e um pátio, que funcionava como biblioteca, almoxarifado, refeitório e sala da coordenação. Todas as cinco professoras eram indígenas Anacé e trabalhavam em regime de voluntariado, sendo a escola mantida através de doações dos pais dos alunos”, explica Thiago.

Leidiane Tapeba reconhece que já houve investimento nas escolas indígenas, mas a maioria ainda funciona em espaços improvisados porque não atende toda a demanda: “As salas de aula são em refeitórios, na sala dos professores, no almoxarifado. Algumas escolas continuam funcionando em casas alugadas.” Quando a reportagem questionou a secretaria sobre os investimentos feitos nas escolas, não obteve resposta.

Crianças brincam em escola indígena Tapuya: valorização da cultura indígena (Foto: Davi Pinheiro/Governo do Ceará)
Crianças brincam em escola indígena Tapuya: valorização da cultura indígena (Foto: Davi Pinheiro/Governo do Ceará)

Escola para valorização da cultura

Segundo Rita Potyguara, doutora em educação, os primeiros cursos de formação de professores indígenas surgiram em 2000, quando ainda havia o magistério em nível médio. Muitos dos professores voluntários ainda não haviam concluído o ensino básico e tiveram que cursar o EJA para agilizar suas formações.

Em 2005, o Ministério da Educação lançou o curso de Licenciatura Intercultural Indígena, que foi ofertado pela Universidade Federal do Ceará. É Rita quem discute qual a importância de ter uma escola para os indígenas principalmente para a preservação do “ser indígena”, com a valorização das culturas, sem excluir as formações bases: matemática, português, história etc.

Para ela, o passado recente das vivências indígenas em escolas comuns mostra que as unidades não estão prontas para receber esses alunos, pois não existe a valorização cultural necessária que provoque o orgulho entre os alunos de se assumirem indígenas. “Nós indígenas entendemos que o exercício da docência e o gerenciamento das escolas indígenas devem ser feitos por nós, pois somos os mais habilitados para colocar em prática o projeto de escola diferenciada”, diz Rita.

Não se pode pedir licença do movimento indígena, aponta Thiago. Afinal, o movimento interfere e tem relações diretas com a forma de vida na comunidade. As demandas são urgentes e exigem que aqueles que atuam como lideranças estejam constantemente presentes e dando a sua contribuição para a comunidade. Por isso os povos indígenas cearenses sentiram a necessidade da construção de um espaço educacional que fosse a cara deles, relata o professor.

Não tinha prédio, mas tinha taipa: nasceu a escola. Não tinha caderno, mas tinha folha de fax, surgiu o caderno. “A categoria em que eu trabalho é lidar com vidas. Eu poderia não dar aula na escola indígena, mas eu tenho um compromisso e responsabilidade social com a nossa comunidade. Porque isso faz parte da comunidade, tenho vínculo e relação com o território, é muito amplo a forma que nos relacionamos com o lugar. Eu não estou aqui, eu faço parte disso. Não é o local onde moro, e venho dormir, é onde eu tenho vínculo. Por isso uma escola indígena é tão importante, porque nela meu aluno pode sentir orgulho de se dizer indígena”, argumenta Thiago.

*Esta reportagem foi produzida por meio do projeto Sala de Redação, desenvolvida pelo Énois, laboratório de comunicação que trabalha para impulsionar diversidade, representatividade e inclusão no jornalismo brasileiro.

Natali Carvalho

Jornalista do mundo, repórter da vida. Formanda pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Passou pelas principais redações do estado, como o Diário do Nordeste, e pelo Énois Laboratório de Jornalismo, nos programas Sala de Redação e Diversidade nas Redações. Vencedora em 2020 dos prêmios Prefeitura de Fortaleza de Jornalismo, na categoria universitária, e do Gandhi de Comunicação. Possui experiência em jornalismo de diversidade.

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