ODS 1
Os desafios do sistema de cotas na pós-graduação
Pesquisa mostra que mais da metade dos programas de mestrado e doutorado de instituições federais do Brasil adota algum tipo de ação afirmativa em seus processos seletivos
Pesquisa mostra que mais da metade dos programas de mestrado e doutorado de instituições federais do Brasil adota algum tipo de ação afirmativa em seus processos seletivos
No primeiro período da graduação, Dayhane foi selecionada em um processo seletivo para estagiar na videoteca da Uerj. O dinheiro da bolsa, uma quantia de R$190,00, ajudou a mantê-la na faculdade, junto com o valor que recebia por trabalhos informais. Dayhane permaneceu no estágio durante dois anos. Em 2005, foi contratada como servidora terceirizada, o que lhe possibilitou uma estabilidade para tentar ingressar no mestrado. Já no fim do doutorado, ao olhar para trás, ela percebeu que era a primeira cotista da turma de 2003 a concluir esse nível de pós-graduação: “Embora as cotas tenham possibilitado o acesso dos alunos ao ensino superior, a continuidade foi precária. As pós-graduações foram praticamente inexistentes. Não havia cotas”, lamentou Dayhane.
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Em 2016, o Ministério da Educação (MEC) publicou uma portaria orientando as universidades federais a “apresentar propostas sobre inclusão de negros (pretos e pardos), indígenas e pessoas com deficiência em seus programas de pós-graduação”. Abraham Weintraub, ex-ministro da Educação, determinou a revogação da portaria, em junho de 2020, pouco antes de deixar o Ministério. A decisão de Weintraub acabou sendo anulada mais tarde. Em números, a adoção de políticas afirmativas nos editais de pós-graduação tem avançado nos últimos anos. Um levantamento da pesquisadora Anna Venturini revelou que, em 2021, mais da metade dos programas de mestrado e doutorado de instituições federais do Brasil adotaram algum tipo de ação afirmativa em seus processos seletivos. Essa foi a primeira vez que o percentual ultrapassou os 50%.
Segundo o estudo, publicado no “Observatório de ações afirmativas na pós-graduação“, entre os 2.817 programas, 1.531 (54,3%) possuíam reserva de vagas nos processos de admissão do ano passado. O levantamento, que avaliou apenas os programas de universidades públicas, também demonstra que o percentual de 2021 representa praticamente o dobro do registrado em 2018 (26,4%). A representatividade entre os matriculados em programas de pós-graduação, no entanto, permanece desigual, o que demonstra a urgência no aumento da implementação de ações afirmativas nos processos de admissão. Em média, um em cada quatro mestrandos e doutorandos é negro no país. O cenário é ainda pior nos programas de medicina: um em cada dez pós-graduandos da área se declara como preto ou pardo.
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Veja o que já enviamosA tendência de uma menor participação de negros segue em outros campos considerados elitizados, como odontologia, arquitetura, direito e engenharia. Os dados foram revelados pelo jornal Folha de S. Paulo, que trabalhou para classificar informações raciais a partir de uma base de dados abertos de 2018 da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).
Responsabilidade coletiva
A inclusão de estudantes cotistas nos níveis de pós-graduação é uma das questões pertinentes sobre a pós-permanência, que, como explica a professora da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB) Rita Dias, “tem a ver com o projeto de vida, a inserção no mundo do trabalho e a continuidade nos estudos” desses alunos. A UFRB foi a primeira instituição a estabelecer uma Pró-Reitoria de Políticas Afirmativas e Assuntos Estudantis (PROPAAE) no Brasil, instância que busca garantir oportunidades de ingresso, permanência e pós-permanência para a população atendida pelas ações afirmativas.
Entre 2006 e 2011, Rita atuou como Pró-Reitora do projeto, tendo participado da criação da PROPAAE. A docente explica que, no início, houve a necessidade de trabalhar para desconstruir determinada mentalidade que preponderava entre os estudantes pré-existentes à fundação da instituição, inaugurada em 2005: “A UFRB recebia o legado do curso de Agronomia, que já tinha tido cotas, mas na lógica inversa, a partir da ‘Lei do Boi’. Era uma cota de privilégio para filhos de fazendeiros”, explicou Rita, em referência à Lei nº 5.465, de 3 de Julho de 1968, que estabelecia reserva de vagas em instituições de Ensino Médio agrícolas e universidades de Agricultura e Veterinária para candidatos agropecuaristas ou filhos de produtores rurais. A lei só foi revogada em 1985.
Além desse desafio, o início da gestão da PROPAAE foi marcado pelo esforço de incluir as políticas afirmativas nos interesses da gestão institucional da universidade de forma abrangente, baseando-se em três princípios que imperam na Pró-Reitoria até hoje: mutualidade, corresponsabilidade e co-participação. “Isso fazia com que professores, servidores, técnicos, a gestão da universidade e os estudantes olhassem para a implementação da política, assumindo a responsabilidade pelo êxito dela”, lembra Rita.
A UFRB possui ações afirmativas nos processos seletivos desde sua criação e foi a primeira universidade do Brasil a aplicar a Lei de Cotas (nº 12.711/2012) integralmente, em 2013. Anos de esforços para democratizar o ingresso e a permanência na educação superior resultaram em uma maioria negra e de baixa renda entre os alunos da instituição. O corpo discente da UFRB é formado por 83,4% de estudantes autodeclarados negros e 82% oriundos de núcleos familiares que possuem renda total de até 1,5 salário mínimo, de acordo com o relatório Perfil dos Estudantes de Graduação, realizado em 2017. Vale ressaltar que negros representam a maior parte da população da Bahia. Em 2018, 81,1% das pessoas se declararam pretas ou pardas no estado, como apresentado na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua).
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Jornalista pelo Instituto de Artes e Comunicação Social da UFF, mulher negra e natural do interior do estado do Rio de Janeiro. Atuou na equipe de conteúdo da organização Médicos Sem Fronteiras (MSF) e foi redatora do site Purebreak Brasil, além de possuir experiência em agências de marketing digital. Busca abordar temas sobre direitos humanos, racismo, diversidade, inclusão e meio ambiente.