Negra, africana e reitora de uma das mais renomadas universidades da Europa

Leyla Hussein, nova reitora da universidade Saint Andrews, na Escócia, durante o Fórum da Liberdade que aconteceu em Oslo, em 2017. Foto Julia Reinhart/NurPhoto

Fundadora do Projeto Dahlia, contra a mutilação genital feminina, Leyla Hussein é a primeira mulher negra a assumir o posto em instituição na Escócia

Por Alexandre dos Santos | ODS 10ODS 4ODS 5 • Publicada em 12 de novembro de 2020 - 09:00 • Atualizada em 9 de março de 2021 - 09:14

Leyla Hussein, nova reitora da universidade Saint Andrews, na Escócia, durante o Fórum da Liberdade que aconteceu em Oslo, em 2017. Foto Julia Reinhart/NurPhoto

Em pouco mais de seis séculos de atividades, essa é a primeira vez na história em que a universidade Saint Andrews, na Escócia, tem como reitora uma mulher negra. Uma mulher negra, africana, nascida na Somália. A psicoterapeuta, doutora Leyla Hussein – nascida em Mogadíscio, capital somali, com passagem pela Arábia Saudita antes de a família emigrar para a Europa – foi eleita pelo voto direto de alunos e funcionários da instituição para um mandato de três anos à frente da mais importante universidade escocesa e a terceira mais importante do Reino Unido, atrás apenas de Oxford e Cambridge. A universidade também ficou em evidência por ter sido a instituição onde o príncipe William e a princesa Catherine, duque e duquesa de Cambridge se formaram em Geografia e História da Arte, respectivamente.

Assim que foi comunicada a respeito do resultado da eleição, a doutora Hussein comemorou imediatamente nas redes sociais. “Estou animada por ter sido eleita a nova reitora de St. Andrews. Fizemos história hoje. Sou a primeira mulher negra a ocupar esse cargo. Obrigado à minha equipe de campanha. A mudança está chegando.”

A mudança já estava em curso. A chegada de Leyla Hussein ao mais alto posto de comando acontece três meses depois que uma das diretoras da universidade, a acadêmica e, então, vice-reitora Sally Mapstone, ter feito um mea culpa público e histórico por ter falhado em acolher e compreender as minorias. “Sabemos que, por décadas, a St. Andrews não entendeu a questão da representatividade como prioridade, que decepcionamos nossos alunos e funcionários em muitas dessas questões. Em nome desta instituição, peço desculpas.”, admitiu a acadêmica. O reconhecimento aconteceu na mesma ocasião em que a Rede de Estudantes Negros, Asiáticos e de Outras Minorias Étnicas (Black, Asian, and Minority Ethnic Students’ Network) foi oficializada como uma das representações oficiais e permanentes dos alunos da instituição. A promessa da instituição é de ter todas as reivindicações respeitadas e levadas em consideração, inclusive da comunidade LGBTQIA+. “Queremos valorizar a diversidade para poder fazer a diferença real na vida das pessoas”, concluiu a professora Mapstone.

A encarnação dessa mudança de postura ganhou um rosto: o da doutora Leyla Hussein, que em 2019 foi nomeada integrante da Ordem do Império Britânico (OBE, no acrônimo em inglês), pela própria rainha Elizabeth II, pelo trabalho que dedica à luta contra a Mutilação Genital Feminina (MGF). A doutora Hussein é fundadora do Projeto Dahlia, pioneiro em todo o Reino Unido no acolhimento e assistência médica e psicológica a mulheres e crianças vítimas de algum tipo de MGF e da Filhas de Eva (Daughters of Eve), que recebe informações a respeito de jovens e mulheres que estejam vivendo algum tipo de opressão por causa da mutilação genital. Ela mesma passou por essa prática – com vínculos sociais, religiosos ou identitários – quando tinha sete anos de idade na Somália. “MGF, ou ‘gudnin’ como é chamado em somali, é um assunto global, de saúde pública. Porque não acontece somente no continente africano, mas da Colômbia à Rússia e da Malásia à Indonésia”, revelou a doutora Hussein em um vídeo gravado no Oslo Freedom Forum, em 2017. De acordo com os dados do Projeto Dhalia, mais de 210 milhões de mulheres vivem, hoje, mutiladas por essa prática, meio milhão delas só na Europa. A cada ano, cerca de três milhões de meninas passam por esses procedimentos invasivos e traumáticos, “que causam hemorragias, ataques cardíacos, disfunções sexuais e traumas psicológicos profundos. A cada 11 segundos uma menina é mutilada em algum lugar do planeta, amparada por alguma prática social ou religiosa, embora ela não seja sequer mencionada por nenhuma das escrituras sagradas”, alerta a doutora Hussein.

A militância feminista e de combate às práticas e abusos da MGF fez de Leyla Hussein uma líder social conhecida em toda Europa e África Oriental, promovendo o intercâmbio de organizações que trabalham com jovens em situação de opressão ou trauma nos dois continentes. Foi nomeada Embaixadora da Paz pela ONU e faz parte do Conselho Deliberativo da Fundação Flor do Deserto, de outro eminente rosto da campanha mundial contra a Mutilação Genital Feminina, a modelo somali Waris Dirie, cuja vida e a luta contra a MGF inspirou o filme de 2009 que tem o mesmo nome da instituição que criou.

O fato de a doutora Hussein também ser somali confere outro contexto ao mais alto posto da Universidade de St. Andrew, já que, além de ser a terceira mulher a assumir o cargo, ela está na mesma cadeira que um dia foi ocupada pelo jornalista, escritor, poeta britânico e Nobel de Literatura (em 1907) Rudyard Kipling, reitor entre 1922 e 1925. Foi Kipling, nascido em 1865 na Índia sob o domínio britânico, quem daria corpo e impulso à ideologia neoimperialista de fins do século XIX ao publicar o poema “O Fardo do Homem Branco” na popular revista estadunidense “McClure’s Magazine” em 1898. Foi o poema de Kipling que deu ares heroicos e epopeicos às ocupações coloniais no continente africano, legitimando as teorias racialistas, como o darwinismo social, que pregava a superioridade da raça branca sobre as demais e concedia à branquitude europeia o “fardo” de levar civilização aos povos “atrasados, pagãos e selvagens” da África.

Ironias históricas à parte, a africana somali que estará à frente da universidade de St. Andrews pelos próximos três anos, publicou um manifesto no qual se compromete com três objetivos principais: garantir acesso e acolhimento a qualquer estudante, com moradias estudantis seguras e com preços acessíveis; ter canais abertos para receber denúncias de intimidação, segregação, misoginia, maus tratos LGBTQIA+fobia e racismo; além de agir imediatamente para investigar e mitigar qualquer denúncia recebida.

A Doutora Leyla Hussein, que criou a plataforma “The Face of Defiance” (A Face do Desafio) para publicar fotos de mulheres que desafiaram suas culturas, religiões e identidades étnicas para defender suas filhas, sobrinhas, parentes e amigas da prática da MGF, é ela mesma exemplo positivo e inspiração para todos nós, em todos os lugares do mundo. Justamente neste momento ímpar na história em que a advogada e política estadunidense Kamala Harris, mulher negra e descendente de Jamaicanos e Indianos, é eleita vice-presidência dos EUA, e, por conta dessa mudança, tudo leva a crer que teremos também uma primeira mulher negra e africana, a economista nigeriana Ngozi Okonjo-Iweala, na cadeira de diretora-geral da Organização Mundial do Comércio.

Tempos mais do que interessantes.

Alexandre dos Santos

Jornalista formado pela Uerj em 1996 e mestre em Relações Internacionais pela PUC-Rio. Trabalhou como repórter em jornal impresso e em TV. É professor de História da África no curso de Relações Internacionais da PUC-Rio. Carioca de muitas ascendências: camaronesa, angolana, portuguesa e espanhola. E-mail: alexandredossantos@me.com. Instagram: @alsantos72

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