ODS 1
Mulheres triplicam chances de ocupação com ensino superior
Do total de brasileiras com nível superior, 70,2% têm trabalho formal ou informal; disparidade com homens cai drasticamente com aumento da escolaridade
Pérola Chaves tem 28 anos e sabe a exata dimensão da vida antes e depois do diploma de nível superior. Formada em produção cultural pela Universidade Federal Fluminense (UFF) há quatro anos, ela é contratada de uma multinacional de cosméticos e ganha mais de quatro salários-mínimos entre a remuneração fixa e a variável. Antes de conseguir o diploma, sua rotina era bem distante da jornada de trabalho atual. Durante três dos quatro anos da graduação, Pérola começava a trabalhar às 4h30m como feirante em uma barraca de tapioca em Icaraí, Niterói, e vendia docinhos na faculdade. Pérola é a primeira de sua família a conseguir se graduar no ensino superior. Ela triplicou suas chances de estar ocupada no mercado de trabalho em relação às mulheres sem instrução ou com ensino fundamental incompleto. É o que revela a pesquisa Síntese de Indicadores Sociais do IBGE de 2022.
Do total de mulheres brasileiras que têm nível superior, 70,2% estão ocupadas formalmente ou informalmente. Perola está entre elas. A distância entre os sexos na taxa de ocupação no mercado de trabalho cai drasticamente conforme as mulheres vão avançando nos níveis de escolaridade, mostra a pesquisa. É verdade que os homens que completaram a universidade ainda levam vantagem. Do total de homens com nível superior, 81,9% estão inseridos no mercado de trabalho. Mas a disparidade é muito maior entre homens e mulheres sem instrução ou que não completaram o ensino fundamental. Nessa faixa de escolaridade, 48,6% dos homens estão ocupados formal ou informalmente contra apenas 21,1% das mulheres.
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“Essa ficha caiu para mim quando eu fui contratada na empresa onde trabalho, que é meu primeiro emprego formal”, conta Pérola. “Minha mãe nunca ganhou o salário que eu ganho”, completa. “Infelizmente ela não me viu construir essa história”, diz. A mãe da produtora cultural morreu de câncer em 2020 quando a jovem ainda não tinha conseguido se estabelecer no mercado de trabalho. Mesmo com o diploma, Pérola viu suas chances de empregabilidade na área em que se graduou reduzirem por conta da pandemia. As restrições impostas pela Covid-19 levaram à perda de 900 mil empregos no setor cultural em 2020, uma queda de 16% em relação ao total de trabalhadores empregados no final de 2019 na área, revelou o Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada).
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Veja o que já enviamosCom o diploma em mãos, Pérola planejava concorrer a um concurso para assistente de produção do Sesc (Serviço Social do Comércio), onde foi estagiária. Mas a seleção foi cancelada em razão da pandemia de Covid-19. A jovem foi então trabalhar como freelancer para o Empodera, uma organização criada em 2016 para promover a diversidade no mercado de trabalho, conectando candidatos a empresas. Foi quando surgiu a oportunidade de seleção para a vaga que ocupa, na área comercial. Na data de aniversário de um ano da morte da mãe, a família já estava preparada para enfrentar um dia de tristeza. “Mas exatamente nesse dia recebi a notícia que eu seria contratada e minha irmã defendeu o trabalho de conclusão de curso dela”, conta Pérola. A irmã da jovem foi a segunda dos cinco irmãos a completarem o nível superior e trabalha no setor de audiovisual.
Pérola não precisou que nenhuma pesquisa indicasse que as chances para as mulheres no mercado de trabalho aumentam conforme o avanço na escolaridade. “Minhas duas tias eram formadas e sempre tiveram um salário melhor do que o da minha mãe”, conta. Pérola tem outro exemplo que vem de casa e que confirma os números do IBGE. “Sou casada com um homem branco e a exigência de graduação nunca foi um requisito para ele crescer na empresa onde trabalha”, conta a jovem sobre o marido, que conheceu no Ensino Médio. Formado em Administração no ano seguinte ao de Pérola, ele ainda ganha mais do que ela, mas a diferença salarial agora é menor.
As múltiplas faces da desigualdade
A pesquisa do IBGE também mediu a disparidade salarial por raça e sexo. No topo da pirâmide, estão os vencimentos dos homens brancos, que ganham, em média, R$3.435. Em segundo lugar, estão as mulheres brancas, com R$ 2.653. Em terceiro, vêm os homens pretos ou pardos, com R$ 1.959 e, em último, as mulheres pretas ou pardas, com R$ 1.567. Não houve o recorte das faixas de rendimento por raça segundo os diferentes níveis de escolaridade. “As mulheres negras sofrem simultaneamente com o racismo estrutural e com o machismo”, aponta o engenheiro Leizer Pereira, fundador da Empodera. “Apenas 0,4% das executivas do país são mulheres negras”, afirma, referindo-se aos números da pesquisa do Instituto Ethos “Perfil Social, Racial e de Gênero”. Jovem negro e criado na periferia, Leizer foi de office boy a engenheiro na área de Telecomunicações. Além da inclusão de negros no mercado de trabalho, a Empodera luta pelos direitos dos PCDs e LGBTQIA+.
Para além dos estigmas sociais, Leizer aponta que a falta de confiança também contribui para a desigualdade no mercado de trabalho. “A mulher já sofre mais pressão do que os homens para mostrar que ela é competente. Quando não preenche 100% dos pré-requisitos, ela acaba não se candidatando à vaga”, diz ele. Na Empodera, tão importante quanto o desenvolvimento dos conhecimentos técnicos estão os comportamentais, sustenta Leizer. “Trabalhamos soft skills como o pertencimento, a confiança e o crescimento”.
A diferença na taxa de ocupação entre os sexos e a desigualdade salarial entre homens e mulheres estão relacionadas às múltiplas funções que a mulher assume, aponta a economista Denise Freire, que é analista de indicadores sociais do IBGE. “Tem o trabalho reprodutivo, o trabalho com os filhos e com os idosos”, sinaliza Denise, apontando para fatores que não causam nenhuma surpresa por serem estruturais e se repetirem a cada pesquisa. “Muitas mulheres optam pelo trabalho parcial para dar conta dessas outras funções”, observa. “O sistema de cotas permitiu uma maior escolaridade entre as mulheres mais vulneráveis, mas ainda é preciso haver mais estímulos”, sustenta Denise. Ela observa que, para se manterem no mercado de trabalho, as mulheres mais escolarizadas acabam contando com o auxílio de mulheres com menos anos de instrução. “Já essas não têm nenhuma rede de apoio”, afirma.
Foi justamente por exercer múltiplas funções que Inamar Ferreira, de 60 anos, afastou-se do mercado de trabalho, primeiro para cuidar da filha e, depois, do pai. Inamar, que hoje é diarista, largou os estudos no terceiro ano do Ensino Médio. A taxa de ocupação de mulheres que não concluíram o Ensino Médio no país é de 43,7%. Inamar está entre elas. Mesmo sem o diploma, conseguiu trabalhar no comércio. Começou na seção de embrulhos e subiu degraus até chegar ao caixa. Quando engravidou da única filha, Thayssa Rios, hoje com 25 anos, decidiu parar de trabalhar. No momento em que decidiu voltar, teve a notícia da doença do pai, um câncer que se prolongou por dez anos. Ficou durante todo esse período cuidando do pai. “Faria tudo de novo”, diz Inamar, sem arrependimento.
Os indicadores do IBGE se materializam também na casa de Inamar. Sua filha, graduada e mestre em Segurança Pública, está terminando a segunda graduação, em Jornalismo, e estagia numa grande empresa de Comunicação no Rio. “Sempre disse a Thayssa que ela tinha que estudar. Quando ela ainda estava na minha barriga, dizia: ‘você vai ser bem-sucedida e inteligente’”, conta, orgulhosa. “Tivemos muita dificuldade quando ela entrou na universidade. A madrinha fazia empada e ela vendia docinhos para pagar a passagem”, lembra. Valeu a pena. Thayssa foi a primeira da família a ingressar na universidade pública. Duas primas mais velhas acabaram se inspirando no exemplo dela e cursaram Psicologia e Enfermagem em instituições particulares, uma delas com o auxílio do Fies. Enquanto sonha com o primeiro emprego formal, Thayssa já pensa em fazer o doutorado. Talvez daqui a alguns anos a jovem possa entrar em estatísticas que o IBGE ainda não mede: a taxa de ocupação de mestras e doutoras no mercado de trabalho.
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É jornalista com experiência nas redações de O Estado de S.Paulo, IstoÉ e O Globo, onde ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo com a série de reportagens “A história secreta da Guerrilha do Araguaia”. Pelo #Colabora, foi vencedora do Prêmio Vladimir Herzog, em 2019, na categoria multimídia, com a série "Sem Direitos: o rosto da exclusão social no Brasil", em um pool jornalístico com a Amazônia Real e a Ponte Jornalismo. Professora Adjunta do Instituto de Arte e Comunicação Social (Iacs), na Universidade Federal Fluminense (UFF), é autora dos livros “Jornalista em mutação: do cão de guarda ao mobilizador de audiência” e "Uma história da primeira página: do grito no papel ao silêncio no jornalismo em rede". É colaboradora no #Colabora e acredita (muito!) no futuro da profissão.