Mais de cem anos após sua morte, Lima Barreto inspira jovens leitores em favela carioca

Universitário Matheus Eusébio é o exemplo de impacto de biblioteca entre adolescentes e crianças do Complexo da Maré: "pessoas foram transformadas por este lugar"

Por Beatriz Carneiro e Camilla Hoshino | ODS 4
Publicada em 31 de outubro de 2025 - 08:50  -  Atualizada em 31 de outubro de 2025 - 08:55
Tempo de leitura: 11 min

Matheus Euzébio com livro de Lima Barreto na biblioteca batizada com o nome do escritor na Maré: “Já ouvi muitos depoimentos de pessoas que, de alguma forma, foram transformadas por esse lugar” (Foto: João Werneck)

Em 1 de novembro de 1922, morreu, aos 41 anos, o jornalista e escritor carioca Afonso Henriques de Lima Barreto. Conhecido por denunciar questões como racismo, hipocrisia das elites e a corrupção no Brasil pós-escravidão em suas obras, ele “foi o primeiro autor a trazer o subúrbio para a literatura nacional”, conta Beatriz Resende, professora emérita de letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e autora de ‘Lima Barreto e o Rio de Janeiro em fragmentos’.

Se Lima Barreto estivesse vivo, tenho certeza que ele denunciaria o fato de que, ainda hoje, perdemos vidas em operações policiais

Matheus Euzébio
Universitário de Pedagogia e morador da Maré

Simpático aos trabalhadores, com quem convivia durante suas caminhadas pelos arredores do centro da capital no início da República, Lima Barreto passou a retratá-los em suas obras, por meio de uma linguagem própria, marcada pelo coloquialismo e carregada de críticas – muitas vezes irônicas. É justamente por isso que Resende explica que ‘Clara dos Anjos’, romance produzido pouco antes de sua morte, foi considerado “mal escrito” na época – não por falta de talento, mas por ser “ moderno demais “para o seu tempo. “Ele revela ali uma escalada de desigualdades e injustiças que ecoam até hoje, especialmente entre os jovens das periferias”, afirma.

Um desses jovens é Matheus Euzébio, estudante de Pedagogia na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e morador da comunidade Nova Holanda, uma das 16 favelas do Complexo da Maré, no Rio de Janeiro. “Se Lima Barreto estivesse vivo, tenho certeza que ele denunciaria o fato de que, ainda hoje, perdemos vidas em operações policiais”, diz. Em 2024, apenas nos 42 primeiros dias de operações na Maré, 20 pessoas morreram, segundo com o Boletim Direito à Segurança Pública na Maré, monitorado pelo projeto “De Olho na Maré”, que tem o objetivo de monitorar e sistematizar dados sobre as dinâmicas de segurança pública.

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Aos 25 anos, prestes a concluir o curso de Pedagogia, Matheus compartilha os desafios dos últimos cinco, tentando conciliar estudo, trabalho e os longos deslocamentos de ônibus pela capital, enfrentando ainda o que ele chama de “coisas que as pessoas de fora não entendem”. “Já perdi aula por conta de tiroteios”, relata – mas suas faltas foram consideradas injustificáveis pelos professores. “Um homem negro, tentando chegar à universidade em meio a uma operação policial? Esse seria o pior cenário possível”, acrescenta o jovem.

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Mesmo diante da violência, Matheus prefere olhar para a Maré com os mesmos olhos de empatia com que Lima Barreto via os subúrbios em sua época, como um território de grandes personagens, que buscam respeito, dignidade e reconhecimento como parte essencial da cidade. “Quero que as pessoas vejam esse lugar como um espaço de possibilidades, de arte e cultura. Um lugar que tem uma biblioteca linda, potente, que forma leitores e escritores”, defende.

O universitário Matheus Euzébio na Biblioteca Lima Barreto no Complexo da Maré: “Quero que as pessoas vejam esse lugar como um espaço de possibilidades, de arte e cultura" (Foto: João Werneck)
O universitário Matheus Euzébio na Biblioteca Lima Barreto no Complexo da Maré: “Quero que as pessoas vejam esse lugar como um espaço de possibilidades, de arte e cultura” (Foto: João Werneck)

Uma biblioteca para chamar de sua

Matheus tinha apenas seis anos quando entrou em uma biblioteca pela primeira vez. O prédio, construído a 50 metros de sua casa, surgiu como um projeto da Redes da Maré, organização que trabalha há mais de 20 anos pela garantia de direitos dos mais de 140 mil moradores do complexo. Não por acaso, o espaço recebeu o nome de “Lima Barreto”. “Já ouvi muitos depoimentos de pessoas que, de alguma forma, foram transformadas por esse lugar”, conta o jovem.

A biblioteca não reúne apenas narrativas inventadas, é um ponto de encontro para assuntos comunitários. Ali são realizados projetos de contraturno escolar e oficinas para todas as idades. Matheus, que viu o espaço nascer e que pegou o primeiro livro emprestado ainda criança, é hoje quem organiza essas mesmas prateleiras com as novas obras que chegam por meio de doações e editais a cada mês. Até o final de outubro deste ano, a biblioteca havia emprestado mais de 2405 livros. “Para uma biblioteca comunitária, este é um número incrível”, diz Matheus.

Conheci Lima Barreto por causa dessa coincidência bonita: a tentativa de entrar na universidade, a leitura obrigatória do vestibular mas, antes de tudo, o encontro com uma biblioteca que carrega seu nome

Matheus Euzébio
Universitário de Pedagogia e morador da Maré

Além de leitor assíduo, ele se tornou educador, mediando grupos de leitura com crianças e jovens na biblioteca, uma missão que desafia a queda brusca de 6,7 milhões de leitores brasileiros nos últimos quatro anos. Pela primeira vez na série história da pesquisa Retratos da Leitura, uma das mais completas e aprofundadas sobre hábitos de leitura no país, a proporção de não leitores é maior do que a de leitores no país. O estudo é conduzido pelo Instituto Pró-Livro (IPL).

Assim como Matheus, muitas crianças das comunidades vizinhas frequentam a biblioteca para não ficar apenas brincando o dia inteiro nas ruas. É o caso de Gabriel, 12 anos, que conheceu ali as biografias infantis de Milton Santos, Nelson Mandela, Barack Obama, Conceição Evaristo e Tereza de Benguela. Diagnosticado com Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH) e com dificuldades de se alfabetizar completamente na escola, ele conta que foram nesses grupos de leitura que ajudaram a se concentrar nos livros. “Gosto principalmente dos que falam sobre negros, africanos e sobre racismo”, diz o menino.

“A leitura é um ponto fundamental da vida de qualquer pessoa, porque é a partir dela que você consegue fazer a leitura do mundo”, defende Matheus. Para ele, frequentar espaços de leitura é um dos fatores essenciais que motivam o prazer pela leitura. Apesar disso, apenas 49,4% das unidades escolares possuem essa estrutura de acordo com a pesquisa. Por isso, “faz diferença ter uma biblioteca do lado da sua casa e não precisar atravessar a cidade para ter que procurar um livro”.

Crianças estudam na Biblioteca Lima Barreto: mais de dois livros emprestados para moradores do Complexo da Maré (Foto: João Werneck)
Crianças estudam na Biblioteca Lima Barreto: mais de dois livros emprestados para moradores do Complexo da Maré (Foto: João Werneck)

Reconhecimento e atualidade de Lima Barreto

Neto de escravizados e filho de uma professora com um tipógrafo, Lima Barreto só conseguiu estudar graças ao apoio de seu padrinho, Francisco de Ouro Preto, que, na época da monarquia, exercia uma função equivalente à de um primeiro-ministro. Barreto estudou em colégios de prestígio, mas acabou abandonando o curso de engenharia na Escola Politécnica, hoje a Escola de Engenharia da UFRJ, onde relatou ter sofrido intenso racismo. “Acho que há algo nessa sensação de incompreensão que nos aproxima”, relata Matheus, que vê no autor uma inspiração pela “ousadia de falar o que pensa, de se posicionar, mesmo com medo”, além da experiência de ambos transitarem por espaços universitários historicamente ocupados por pessoas brancas e de alta renda.

Apesar da influência póstuma, as duas tentativas do escritor em se tornar um imortal da Academia Brasileira de Letras (ABL) ainda em vida não tiveram sucesso. “Além disso, Lima foi internado duas vezes, não por loucura, mas porque era alcoólatra”, recorda Resende. Os delírios causados pela bebida e a rotina no Hospício Nacional de Alienados (atual Instituto Philippe Pinel), no Rio de Janeiro, foram relatados na obra Diários do Hospício & Cemitério dos vivos.

“As maiores dificuldades vieram na vida adulta: sua mãe morreu cedo de tuberculose e seu pai logo apresentou problemas neurológicos, deixando Lima como chefe da família”, relata Lilia Moritz Schwarcz, professora de Antropologia da Universidade de São Paulo e autora da biografia ‘Lima Barreto – Triste visionário’, publicada em 2017. No mesmo ano, o autor foi homenageado na Festa Literária de Paraty e sua obra entrou em domínio público, iniciativas que, de acordo com Resende, foram fundamentais para a popularização de sua obra e pela “redescoberta” do autor no país. “Eu sinto que, finalmente, ele está sendo verdadeiramente conhecido, principalmente pelos jovens das periferias, que se veem nele, se identificam com sua história, sua voz e sua luta”, afirma Lilia Schwarcz.

Em 2019, Matheus Euzébio se debruçou sobre O Triste fim de Policarpo Quaresma, obra que seria cobrado no vestibular da UERJ em 2020. “A partir daí, me encantei. Comecei a estudar mais sobre o autor, suas obras e compreender o motivo de uma biblioteca na Maré carregar o nome dele”, lembra. Hoje, íntimo dessa trajetória, o jovem seleciona livros para ler com as crianças que sirvam como uma porta de entrada para a história de Lima Barreto. Entre eles está o Amigo Pintor, de Lygia Bojunga, que apresenta a arte como conforto e ferramenta contra o adoecimento mental – assim como Lima Barreto escrevia para se sentir melhor. “É admirável a força de vontade desse homem, que escolheu dedicar sua vida à literatura”, diz Resende sobre o autor.

“Lima denunciou o racismo existente no Brasil, mas também transmitiu uma mensagem de esperança. Ele foi um escritor que sempre manteve seus projetos, suas iniciativas e sua crença na literatura”, aponta Schwarcz. É essa persistência em romper com o elitismo literário e valorizar a cultura periférica que conecta sua história com a de Matheus Euzébio, Gabriel e de outras crianças e jovens da Maré que frequentam clubes de leitura. “Conheci, enfim, Lima Barreto por causa dessa coincidência bonita: a tentativa de entrar na universidade, a leitura obrigatória do vestibular mas, antes de tudo, o encontro com uma biblioteca que carrega seu nome”, finaliza Matheus.

Beatriz Carneiro e Camilla Hoshino

Beatriz Carneiro é formada em Jornalismo pela USP e apaixonada por temas socioambientais. Atuou como repórter e diretora na Jornalismo Júnior, mídia universitária da USP, e foi estagiária na CNN Brasil, onde segue como freelancer. Camilla Hoshino é jornalista, internacionalista e mestre em Comunicação e Política pela UFPR. É membro da Jeduca e titulada Jornalista Amiga da Criança pela ANDI Comunicação e Direitos. Foi fellow do Dart Center for Journalism and Trauma/Universidade de Columbia, e vencedora da bolsa Heinz Kühn Stiftung para estágio na DW| Alemanha e do Prêmio Sangue Novo do Jornalismo Paranaense.

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