O Brasil teve uma grande mudança na estrutura das famílias e dos domicílios nos 200 anos da Independência. A família patriarcal brasileira tinha uma estrutura muito hierarquizada, com forte desigualdade de gênero e geração, sendo caracterizada na seguinte frase do escritor Paulo Prado: “Pai soturno, mulher submissa, filhos aterrados”. Evidentemente, não havia apenas um tipo de família, mas predominava a família com núcleo duplo (pai e mãe) e muitos filhos, além da presença de parentes e agregados. Sobressaia a família formada por um casal heterossexual e com laços de família extensa. Porém, ao longo dos últimos 2 séculos, houve diversificação dos arranjos familiares e mudança na formatação dos domicílios.
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O gráfico abaixo, com base nos dados dos últimos 4 censos demográficos, mostra as principais formas de família medidas pelos arranjos domiciliares. Nota-se que os casais com filhos eram quase 65% em 1980, caiu para 61,3% em 1991, depois para 58,8% em 2000 e chegou a 52,5% em 2010. Desta forma, o tipo de arranjo familiar que sempre foi hegemônico na sociedade brasileira está perdendo a maioria absoluta e a tendência é continuar diminuindo sua participação relativa no conjunto dos arranjos familiares.
Por outro lado, tem crescido o arranjo formado por um casal sem filhos. Esta formação reúne os casais que não tiveram filhos com aqueles em que os filhos já cresceram e saíram de casa (ninho vazio). Os casais sem filhos passaram de 12,1% em 1980 para 15,1% em 2010.
Outro arranjo que apresentou grande crescimento foi o monoparental feminino, ou seja, a configuração familiar de mães solteiras, separadas ou viúvas com filhos, que passou de 11,5% em 1980 para 15,3% em 2010. O arranjo monoparental masculino tem menor volume, mas também apresentou crescimento no período, passando de 0,8% em 1980 para 2,2% em 2010.
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Veja o que já enviamosOs domicílios unipessoais avançaram com rapidez, sendo que o percentual de mulheres morando sozinhas passou de 2,8% em 1980 para 6,2% em 2010 e o de homens morando sozinhos passou de 3% em 1980 para 6,5% em 2010. A maior percentagem de mulheres vivendo sozinhas é encontrada nas idades mais avançadas e decorrem da maior longevidade feminina. A categoria outra (chefes com outros parentes) apresentou redução de 4,8% em 1980 para 2,2% em 2010.
Além de todos estes arranjos, há também as famílias reconstituídas, que não aparecem nos dados censitários, pois requerem pesquisas longitudinais para serem identificadas. São cada vez mais frequentes no cenário nacional as famílias em que tanto o marido quanto a esposa trazem para a nova união conjugal os filhos de casamentos anteriores, somando-os aos novos filhos nascidos neste novo enlace. De forma agregada, passam a conviver os filhos, enteados, irmãos, madrasta, padrasto etc. Dá-se a este tipo de arranjo o nome de “família mosaico”.
Há, também, o crescimento das famílias formadas por casais do mesmo sexo, a transconjugalidade e o aumento das famílias poliafetivas, com núcleo familiar formado por mais de duas pessoas. A literatura identifica ainda as “famílias multiespécies”, aquelas em que animais de estimação são fundamentais na rotina familiar. De fato, o leque de diversidade é amplo, exigindo estudos adicionais, tanto quantitativos quanto qualitativos, para traçar a complexidade da família brasileira atual.
A constituição de famílias depende de três componentes: laços de sangue (parentesco), filiação ou adoção e união conjugal. A dinâmica das uniões e das separações se alterou ao longo das últimas décadas, lembrando que a Lei do Divórcio foi aprovada no Brasil apenas em 1977. A taxa bruta de nupcialidade (considerando os casamentos legais) tem diminuído no Brasil, passando de oito casamentos por mil habitantes, em 1980, para 5,1 em 1991 e 4,1 em 2010. Isso ocorre devido ao aumento das uniões consensuais no mesmo período.
A tabela abaixo, com dados dos últimos 6 censos demográficos, mostra um grande crescimento da união consensual, que passou de 6,5% em 1960 para 36,4% em 2010. O casamento apenas no civil também aumentou de 12,8% para 17,3%, no período. O grande declínio se deu nas formas de casamento religioso, tanto o civil e religioso, quanto o casamento exclusivamente religioso. No conjunto, os dois caíram de 80,7%, em 1960, para 46,3%, em 2010, o que reflete um certo processo de perda de influência das religiões e de secularização da sociedade.
Sem dúvida, o Brasil passou por grandes transformações econômicas, sociais e demográficas nas últimas décadas e isto influi na dinâmica das famílias. As transições urbana e demográfica possibilitaram avanços na conquista dos direitos de cidadania das mulheres e mudanças na configuração dos arranjos familiares. Esse processo abriu espaço para uma mudança das relações de gênero no seio das famílias e gerou um grande aumento do percentual de mulheres chefes de família.
Houve um aumento quantitativo e qualitativo no montante de mulheres chefes de família no Brasil nos primeiros 15 anos do século XXI. Enquanto o total de famílias brasileiras aumentou 39% em 15 anos, passando de 51,5 milhões em 2001 para 71,3 milhões em 2015, o número de famílias chefiadas por homens aumentou somente 13%, passando de 37,4 milhões para 42,4 milhões à medida que o percentual de famílias chefiadas por mulheres dobrou em termos absolutos (105%), subindo de 14,1 milhões em 2001 para 28,9 milhões em 2015, conforme gráfico abaixo (painel da esquerda)
Em termos percentuais, o número de famílias chefiadas por homens diminuiu de 72,6% em 2001 para 59,5% em 2015, enquanto o percentual de famílias chefiadas por mulheres subiu de 27,4% para 40,5% no mesmo período (gráfico abaixo, painel da direita).
Nas últimas três décadas do século XX, o aumento da chefia feminina ocorreu, fundamentalmente, em arranjos familiares de núcleo uniparental ou unipessoal: família monoparental feminina (mulher com filho e/ou outros parentes e agregados, mas sem cônjuge) e pessoas morando só. Nesses dois casos a chefia feminina ocorre, automaticamente, devido à ausência de um marido ou companheiro. No caso dos arranjos familiares de núcleo duplo (marido e esposa) a percentagem de mulheres chefes era quase residual.
Porém, esse quadro mudou no século XXI. Segundo os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), do IBGE, enquanto o crescimento das mulheres chefes de família no arranjo monoparental passou de 9 milhões em 2001 para 11,6 milhões em 2015 – um crescimento de 20% em 15 anos – e o crescimento no arranjo unipessoal passou de 2,3 milhões para 5,2 milhões – aumento de 124% entre 2001 e 2015 – o crescimento da chefia feminina no arranjo casal com filhos foi de 1 milhão em 2001 para 6,8 milhões em 2015 – um aumento de 551% em 15 anos. Entre os casais sem filho, o número de mulheres chefes passou de 339 mil, para 3,1 milhões entre 2001 e 2015, um aumento expressivo de 822% em 15 anos. Dessa forma, nas famílias de núcleo duplo (casais com e sem filho), o percentual de mulheres chefes de família passou de 4% em 2001 para 22,5% em 2015, refletindo o empoderamento feminino na sociedade brasileira.
Mudanças na composição dos domicílios
As famílias mudaram e, também, as moradias. A densidade de pessoas por domicílios tem diminuído no Brasil. O gráfico abaixo mostra que crescem os domicílios pequenos e diminuem os domicílios grandes. Em 1991 os arranjos domiciliares com 4 ou mais moradores eram de 58,9% e caíram para 40,7% em 2010. Já os domicílios com até 3 pessoas eram de 41% em 1991 e subiram para 59% em 2010. O predomínio é cada vez maior dos arranjos com até 4 pessoas (mais de 80% dos domicílios). Esta tendência deve prevalecer nas próximas décadas, sendo que o arranjo domiciliar que deve apresentar o maior crescimento é o das pessoas morando sozinhas, especialmente as pessoas idosas. Os dados da primeira década do século XXI já mostram um grande aumento dos domicílios unipessoais para todas as idades e ambos os sexos.
Cabe destacar que houve uma ampliação dos cômodos e uma diminuição na densidade média das moradias. O gráfico abaixo mostra que os domicílios com cinco cômodos ou mais representavam apenas 48% do total das moradias em 1960, passando para 70% em 2010. No mesmo período, o número médio de pessoas por domicílio caiu de 5,3 pessoas em 1970 para 3,3 pessoas em 2010. Tal constatação se deve à queda da fecundidade e ao fato de o número de domicílios ter crescido de modo mais rápido do que o ritmo de crescimento da população. Dessa forma, os domicílios particulares permanentes, ocupados por brasileiros, aumentaram em muito a disponibilidade de cômodos e diminuíram a quantidade de moradores. Isto sugere um aumento da disponibilidade de espaço por pessoa, embora não existam dados gerais sobre a metragem das áreas dos domicílios.
No Brasil do século XXI, a família patriarcal e extensa tem cedido espaço para a família nuclear, com maior pluralidade de arranjos, com alta mobilidade espacial e social e com as mulheres tendo um protagonismo cada vez maior na dinâmica familiar. Com o aumento do custo e a diminuição dos benefícios, os filhos deixam de ser um seguro para os pais na velhice. Os casais passam a contar menos com os descendentes e mais com o sistema (público e privado) de proteção social na aposentadoria e na cobertura de riscos.
Os brasileiros vivem por mais tempo e buscam meios diversos para conquistar múltiplos tipos de seguros contra os riscos inerentes à maior longevidade. A transição demográfica contribuiu para as transformações da estrutura familiar. As relações entre indivíduos, famílias e sociedade se complexificaram e assumiram um perfil multifacetado. A velha ordem está desaparecendo e uma nova configuração plural de família está surgindo. Somente com novas pesquisas e novos estudos esta mutante realidade pode ser conhecida.
O censo demográfico 2022, cuja coleta domiciliar teve início no dia 01 de agosto, vai atualizar os dados disponíveis e traçar um quadro da sociedade brasileira no bicentenário da Independência. Conhecer a realidade local e nacional é essencial, mas não se pode cair no erro comum de esperar que o Censo responda todas as perguntas demandadas pela sociedade. O mais importante do censo demográfico não é responder tudo, mas sim ter uma completa cobertura geográfica e populacional, com uma estruturada caracterização demográfica, social e econômica de todos os domicílios e de todos os habitantes do país. Perguntas adicionais devem ser respondidas por pesquisas específicas com metodologias adequadas. Outros inquéritos do IBGE, como a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNADC), Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF), Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) e Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde (PNDS), vão completar o conhecimento da realidade brasileira e, em especial, ajudarão na compreensão da multiplicidade dos arranjos familiares do país.
Referências:
CAVENAGHI, S., ALVES, JED. Mulheres Chefes de Família no Brasil: Avanços e Desafios, Rio de Janeiro, ENS-CPES, 2018. http://www.funenseg.org.br/arquivos/mulheres-chefes-de-familia-no-brasil-estudo-sobre-seguro-edicao-32_1.pdf
ALVES, JED. Bom-senso: a receita para um bom Censo em 2020, # Colabora, 10/07/2019
https://projetocolabora.com.br/ods17/bom-senso-a-receita-para-um-bom-censo-em-2020/
ALVES, JED. Demografia e Economia nos 200 anos da Independência do Brasil e cenários para o século XXI (com a colaboração de GALIZA, F), ENS, maio de 2022
https://ens.edu.br:81/arquivos/Livro%20Demografia%20e%20Economia_digital_2.pdf
Percebo que o Brasil tem essa “essencialidade”, de novos contextos familiares. Se formos focar uma grande caracteristica masculina, deixamos de ser homens menos longevos que em gerações anteriores, foram como que maridos e pais, com curta carreira profissional. Já a minha geração foi de grande prole, nem todos meus irmãos casaram. Eu, solteiro, que ontem estava na companhia de um Homem: Amigo, Amado, Motorista, vivendo uma História de Longevidade Saudável, por nos querermos bem!