As mulheres foram minoria da população durante a maior parte da história brasileira. Eram tratadas como cidadãs de segunda classe e, sistematicamente, seguiram sendo excluídas dos postos de decisão e dos cargos sociais de maior prestígio. Na frota de Pedro Álvares Cabral, que chegou ao Brasil em 22 de abril de 1500, havia cerca de 1,5 mil tripulantes e nenhuma mulher. A maioria da imigração portuguesa e europeia para o Brasil era composta por homens e calcula-se que dos mais de quatro milhões de africanos escravizados entre 1550 e 1855 que entraram nos portos brasileiros, a maioria era composta por jovens do sexo masculino. A desigualdade de gênero era ampla, geral e irrestrita.
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Mas as relações sociais entre homens e mulheres passaram por grandes transformações nos 200 anos Independência do Brasil. A primeira mudança foi quantitativa, mas com potencial de gerar profundas implicações no longo prazo, pois as mulheres deixaram a condição de sexo minoritário durante 450 anos e passaram a ser maioria da população a partir da segunda metade do século XX.
Em 1872, quando da realização do 1º censo demográfico do Brasil (50 anos depois da Independência) foram contabilizados 9,9 milhões de habitantes, sendo 5,1 milhões de homens e 4,8 milhões de mulheres (48,4% do total). O censo demográfico de 1940 foi o primeiro realizado pelo IBGE e contabilizou 41,2 milhões de habitantes, sendo 20,6 milhões para cada sexo. A partir de 1950, o número de mulheres passou a superar o número de homens e a diferença a favor do sexo feminino se ampliou ao longo das décadas.
O gráfico abaixo mostra que havia um superávit de homens na população brasileira de 1872 até 1920 (barras azuis). Em 1940 houve empate entre os dois sexos e a partir de 1950 as mulheres se tornaram o sexo majoritário na população (barras laranjas). Em 1970 havia 481 mil mulheres a mais do que homens e a diferença aumentou 10 vezes, para 4,8 milhões em 2022.
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Veja o que já enviamosNo Brasil, assim como em todos os países do mundo, nascem mais homens do que mulheres, mas o significativo aumento do superávit feminino ocorre porque as mulheres possuem taxas menores de mortalidade e maior expectativa de vida.
O gráfico abaixo mostra que, em 2022, os homens são maioria nos grupos etários de 0 a 29 anos (barras azuis) e as mulheres são maioria nos grupos etários de 30 anos em diante (barras laranjas). Entre as idades de 0 a 29 anos há um superávit de 1,56 milhões de homens, mas acima de 30 anos há um superávit de 6,40 milhões de mulheres. Portanto, os homens predominam entre os jovens e as mulheres predominam nos grupos etários acima de 30 anos e, no total, o superávit feminino no Brasil é de 4,848 milhões de mulheres, em 2022.
Todas estas características demográficas se refletem na composição do eleitorado brasileiro. As mulheres conquistaram o direito de voto há exatos 90 anos. O presidente Getúlio Vargas assinou o Decreto 21.076, de 24/02/1932, no Palácio do Catete, no Rio de Janeiro, permitindo o alistamento eleitoral das mulheres e o direito de lançar candidaturas. Mas Getúlio também decretou a ditadura do Estado Novo, em 1937, e as eleições só foram retomadas em 1945, após o fim da Segunda Guerra Mundial.
Não existem dados sistematizados e confiáveis sobre o eleitorado brasileiro antes da década de 1970. Mas se sabe que as mulheres eram minoria do eleitorado, pois existia uma série de restrições ao voto feminino. Por exemplo, os analfabetos não podiam votar e havia uma alta proporção de mulheres analfabetas (principalmente as idosas). Mas a realidade mudou ao longo do século XX, a Constituição Federal de 1988 ampliou o direito de voto (inclusive para analfabetos) e as mulheres superaram os homens nas matrículas em todos os níveis educacionais, inclusive mestrado e doutorado (Alves, 2022).
O gráfico abaixo mostra quando se deu a reversão do hiato de gênero no número de eleitores no Brasil. Em 1974, havia 22 milhões de eleitores masculinos e 12 milhões de eleitoras, sendo que o superávit masculino era de 10 milhões de potenciais votantes. Este superávit foi diminuindo para cerca de 5 milhões em 1980, 1,6 milhão em 1990 e apenas 500 mil em 1998. A reversão de gênero aconteceu em 2000, com superávit de 1,2 milhão de mulheres. Nos anos seguintes o diferencial de homens e mulheres foi se alargando e, para as eleições de 2022, estão inscritos 71,8 milhões de homens e 80,5 milhões de mulheres, um superávit feminino de 8,7 milhões de votantes.
Em 1974, o eleitorado de 36 milhões de pessoas representava 35% dos 102 milhões de habitantes do país. Este percentual foi subindo progressivamente e, em 2022, o eleitorado de 152,3 milhões de pessoas já representa mais de 70% da população total de 214 milhões de habitantes. Ou seja, houve uma massificação da democracia e o percentual de votantes nunca foi tão alto, sendo que o maior aumento do contingente de votantes aconteceu entre o sexo feminino. As mulheres contribuem com a legitimidade da participação cívica, possuem maior poder numérico de voto e estão ficando cada vez mais empoderadas em termos eleitorais.
Além da feminização do eleitorado, outra característica da nova configuração demográfica brasileira é o envelhecimento populacional, que tem grande impacto na composição do eleitorado. Como a idade mediana da população está se elevando, em decorrência da transição demográfica, a percentagem de idosos no eleitorado também se eleva. Ainda existe no subconsciente coletivo do povo brasileiro a ideia de que o Brasil é um país jovem e a juventude é decisiva nos processos eleitorais, mas os dados confirmam o crescente peso eleitoral dos idosos.
O gráfico abaixo mostra a percentagem de jovens e idosos no total das pessoas aptas a votar. Observa-se que houve uma reversão no século XXI. Em 2002 os jovens representavam 21,2% do eleitorado e os idosos somente 13,2%. Em 2014 houve a inversão (16,8% dos idosos contra 16,3% dos jovens). Em 2022, os jovens caíram para 14,5% e os idosos subiram para 19,9% do eleitorado total.
No mês de janeiro de 2022 havia apenas 731 mil jovens de 16 e 17 anos cadastrados no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e 18,4 milhões de jovens de 18 a 24 anos. Mas depois de intensa campanha para o alistamento eleitoral os números subiram em maio de 2022 e chegaram a 2,53 milhões de adolescentes de 16 e 17 anos e 19,7 milhões de jovens de 18 a 24 anos até o final do prazo para o cadastramento. Desta forma, o número de jovens de 16 a 24 anos passou de 19,1 milhões em janeiro para 22,2 milhões em maio de 2022. Mesmo assim, é um número bem inferior aos 30,5 milhões de idosos de 60 anos e mais. Portanto, o eleitorado brasileiro está ficando cada vez mais feminino e idoso.
Consequentemente, o eleitorado brasileiro não é mais aquele que prevaleceu no século XX, quando havia predominância de homens jovens. O gráfico abaixo mostra que, em 1992, as mulheres representavam menos de 50% do eleitorado em todos os grupos etários, sendo que entre as idosas de 70 anos e mais de idade o percentual feminino era de apenas 45,4%.
Esta realidade mudou completamente nos anos seguintes e, em 2022, as mulheres eram maioria em todos os grupos etários, inclusive entre os jovens de 16 a 24 anos, com 51,7% de mulheres (a despeito dos homens serem maioria nesta faixa etária). Entre os adolescentes de 16 e 17 anos (onde o voto é facultativo) as meninas são 53,9%. Entre os septuagenários o percentual de mulheres chegou a 56,1% em 2022. No geral, a força eleitoral das mulheres com mais de 30 anos é cada vez maior e reflete o chamado “Poder das Balzaquianas” (Alves et. al. 2017). No total, as mulheres representam 52,8% do eleitorado brasileiro em 2022.
Porém, as conquistas que as mulheres brasileiras obtiveram no eleitorado, na saúde, na educação e no mercado de trabalho ainda não se traduziram em aumentos significativos na presença feminina nas diversas esferas dos espaços de poder público e privado. Em toda a história brasileira, apenas três mulheres foram nomeadas ao Supremo Tribunal Federal (STF). A pioneira foi a ministra Ellen Gracie, que integrou a Corte de 2000 a 2011. Duas outras fazem parte da atual composição de 11 juízes: Carmen Lúcia e Rosa Weber. Indubitavelmente, o hiato de gênero nas esferas de poder favorece amplamente os homens.
As mulheres brasileiras têm assumido um protagonismo crescente na história contemporânea do país, mas a participação feminina no Legislativo, por exemplo, tem sido pífia. Em 1975, quando a ONU promoveu o Ano Internacional da Mulher e foi organizada a Primeira Conferência Mundial da Mulher, ocorrida no México, havia apenas uma representante feminina na Câmara Federal do Brasil constituída de 326 membros na época (o que representava 0,31%). No conjunto das Assembleias Legislativas com 900 membros em 1975, havia apenas 11 mulheres eleitas (representando 1,2% do total). Quando ocorreu a 2ª Conferência Mundial da Mulher, em 1980, em Copenhague, havia 4 deputadas federais na Câmara (0,95%) e 20 deputadas (2,2%) nas Assembleias Legislativas. Por ocasião da 3ª Conferência Mundial da Mulher, em 1985, em Nairóbi, havia 8 deputadas federais (1,67%) e 28 deputadas estaduais (2,96%). Em 1995, quando ocorreu a 4ª Conferência Mundial da Mulher, em Beijing, havia 32 mulheres na Câmara Federal de 513 membros (6,3%) e 82 mulheres nas Assembleias Legislativas com um total de 1036 membros (7,9%).
Esta situação de exclusão feminina dos espaços de representação parlamentar não é exclusividade brasileira, mas no Brasil a situação é pior do que a média mundial. O gráfico abaixo mostra que, entre 1945 e 1985, houve um pequeno aumento da participação política feminina no mundo, passando de 3% para 12% e um avanço super tímido no Brasil de 0% para 1,7%. Em 1995 a diferença diminui um pouco, com as mulheres representando 11,6% das Câmaras de Deputados do mundo e 6,3% no Brasil.
Para reduzir as desigualdades de gênero e elevar a participação feminina, a Conferência de Beijing, em 1995, propôs a adoção de ações afirmativas ou políticas de cotas para dar chances ao empoderamento feminino. Desta forma, os ganhos de participação política das mulheres nos 27 anos após a IV Conferência de Mulheres foram maiores do que nos 50 anos anteriores, pois o percentual de deputadas femininas passou de 11,6% em 1995 para 26,4% em 2022. Contudo, os ganhos do Brasil nos últimos 27 anos continuaram lentos, passando de 6,3% em 1995 para 14,8% em 2022. No mundo, as mulheres ultrapassaram 25% da participação parlamentar, mas a diferença entre o Brasil e o mundo permanece em torno de 12% e a paridade de gênero na política ainda permanece um sonho distante no território brasileiro.
No ranking da Inter-Parliamentary Union (IPU), em maio de 2022, o Brasil aparece em 143º lugar, com 14,8% de mulheres na Câmara Federal, perdendo para a média mundial de 26,4%, para as Américas com 34,6%, Europa com 31,3%, África Subsaariana com 26,1%, Ásia com 21,2%, Mena (Oriente Médio e Norte da África) com 18,2% e região do Pacífico com 17,9%, conforme mostra o gráfico abaixo. Portanto, mesmo com o número recorde de deputadas federais eleitas em 2018 (77 mulheres), o Brasil continua no grupo da lanterna mundial do ranking de participação parlamentar feminina. O Brasil perde inclusive para a Arábia Saudita que tem 19,9% de mulheres no parlamento do país.
As mulheres são maioria da população na maior parte dos países do mundo e alcançar a paridade de gênero nas diversas instâncias do parlamento é uma meta universal. Segundo os números da Inter-Parliamentary Union (IPU) há 5 países onde as mulheres ocupam 50% ou mais dos assentos da Câmara dos Deputados (ou no parlamento unicameral), 15 países com mais de 45% e 61 países com mais de 30% de participação feminina. Portanto, o Brasil está distante no combate da desigualdade de gênero e atrasado na incorporação da diversidade de gênero nos espaços de representação do Poder Legislativo.
A luta pelos direitos políticos das mulheres é antiga e já estava na pauta da comunidade internacional, mesmo na época do Brasil Colônia. Por exemplo, no início da Revolução Francesa, o matemático, filósofo, iluminista e revolucionário Marquês de Condorcet (1743-1794) foi uma das primeiras vozes a defender participação política das mulheres. Nos debates da Assembleia Nacional francesa, em 1790, ele protestou contra os políticos que excluíam as mulheres do direito ao voto universal, dizendo o seguinte: “Ou nenhum indivíduo da espécie humana tem verdadeiros direitos, ou todos têm os mesmos; e aquele que vota contra o direito do outro, seja qual for sua religião, cor ou sexo, desde logo abjurou os seus”.
Na época da Independência do Brasil, em 1822, o Brasil tinha uma economia agrária, rural e primário-exportadora, mão-de-obra escrava, família tradicional e patriarcal, uma estrutura econômica hierarquizada e injusta, práticas patrimonialistas e uma grande desigualdade social e de poder entre os sexos masculino e feminino.
Nos últimos dois séculos muita coisa mudou e as mulheres obtiveram o direito de voto em 1932; passaram a ser maioria da população a partir da década de 1940; atingiram a maioria do eleitorado a partir de 1998; reduziram as taxas de mortalidade, elevaram a esperança de vida e já vivem, em média, sete anos acima da média masculina; ultrapassaram os homens em todos os níveis educacionais; aumentaram as taxas de participação no mercado de trabalho, diminuíram os diferenciais salariais e são maioria da População Economicamente Ativa (PEA) com mais de 11 anos de estudo; conquistaram duas das três medalhas de ouro do Brasil nas Olimpíadas de Pequim (2008) e Londres (2012), são maioria dos beneficiários da previdência e dos programas de assistência social, conquistaram a igualdade legal de direitos na Constituição de 1988 e obtiveram diversas vitórias específicas na legislação nacional, além de chegar à presidência do Supremo Tribunal Federal (Ellen Gracie em 2006) e à presidência da República (Dilma Rousseff nas eleições de 2010 e 2014).
Nos 200 anos da Independência, os ganhos foram inquestionáveis e o teto de vidro foi rompido em vários locais e em diversos momentos. As mulheres brasileiras venceram múltiplas batalhas, mas não venceram a “guerra”. A paridade de gênero na política é um passo decisivo para se conquistar a vitória final que só será consolidada quando for implementado a plena equidade entre homens e mulheres. Uma sociedade sem desigualdades sociais de gênero é a meta a ser atingida no século XXI. As eleições gerais de 2022 serão um bom momento para se debater essas questões e para ampliar a presença feminina, com toda a sua diversidade, nos inúmeros espaços de poder da democracia brasileira.
Referências
ALVES, JED. Demografia e Economia nos 200 anos da Independência do Brasil e cenários para o século XXI (com a colaboração de GALIZA, F), ENS, maio de 2022
https://ens.edu.br:81/arquivos/Livro%20Demografia%20e%20Economia_digital_2.pdf
ALVES, JED et. al. Meio século de feminismo e o empoderamento das mulheres no contexto das transformações sociodemográficas do Brasil. In: BLAY, E. AVELAR, L. 50 anos de feminismo: Argentina, Brasil e Chile. EDUSP, São Paulo, 2017
ALVES, JED, PINTO, CRJ, JORDÃO, F. (Orgs). Mulheres nas eleições 2010. ABCP/SPM, SP, 2012, 520 p. http://nupps.usp.br/downloads/livros/mulheresnaseleicoes.pdf
Araújo, Clara, ALVES, J. E. D. Impactos de indicadores sociais e do sistema eleitoral sobre as chances das mulheres nas eleições e suas interações com as cotas. Dados (Rio de Janeiro). , v.50, p.535 – 578, 2007. http://www.scielo.br/pdf/dados/v50n3/04.pdf