A saúde mental de pessoas surdas entre barreiras, silêncios e abismos*

Falta de acessibilidade na comunicação e baixo número de profissionais que atendem em Libras dificulta acesso aos serviços

Por Micael Olegário | ODS 10ODS 3 • Publicada em 5 de fevereiro de 2025 - 08:59 • Atualizada em 5 de fevereiro de 2025 - 10:25

Consulta médica com tradução em Libras pelo celular: dificuldade de comunicação afeta diferentes áreas da saúde e projetos buscam ampliar acessibilidade com intérpretes e formação em Libras (Foto: Divulgação/Secretaria de Saúde do Ceará)

*Esta reportagem sobre a saúde mental de pessoas surdas está disponível em Libras neste link e no final do texto

Nabi Nascimento Cordeiro, 29 anos, mudou de Belém (PA) para Caxias do Sul (RS) há quase seis anos. Surda desde a infância, a decisão de mudar para o sul foi a alternativa encontrada para ter independência e sair de um ambiente familiar que não a acolhia. No começo, sozinha e sem conhecer a cidade, Nabi enfrentou situações difíceis para se manter. Nesse período, também teve dificuldades para conseguir um emprego, o que a levou a ter crises de depressão. O quadro ficou mais grave devido à falta de acesso aos serviços de saúde mental, uma realidade que afeta a maioria das pessoas surdas no Brasil.

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De acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Brasil possui cerca de 2,3 milhões de pessoas surdas, considerando o público com dois ou mais anos de idade. Para a maioria dos surdos, a Língua Brasileira de Sinais (Libras) é a principal forma de comunicação. Porém, quase não existem profissionais de saúde mental que atendem em Libras, sejam psicólogos, psiquiatras e psicanalistas, ou terapeutas ocupacionais e assistentes sociais que atuam na área.

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A Lei Brasileira de Inclusão (LBI) garante o direito à saúde para todas as pessoas com deficiência, incluindo o atendimento psicológico. No caso das pessoas surdas, muitas vezes a única forma alternativa para se comunicar é com a mediação de um intérprete, o que compromete o diálogo sobre temas sensíveis. “Precisa ter um atendimento direto, porque é muito um desabafo”, aponta Luciana Ruiz, psicóloga surda e moradora de Nova Friburgo (RJ).

Professor de Libras na Universidade Federal do Pampa (Unipampa), William da Motta Brum explica que o contato visual, com uma pessoa em frente à outra, é algo muito importante para a comunicação dos surdos. “Esse encontro deveria ser só entre o psicólogo e a pessoa que precisa do atendimento, para que ela conseguisse demonstrar suas emoções. Para chorar e contar do seu sofrimento, da sua história e pontuar tudo para o psicólogo e a comunicação fluir. Para que o surdo sentisse liberdade e conseguisse se expressar”, ressalta ele.

Se vai fazer uma cirurgia, tu tem que estar levando o intérprete junto, porque não tem. Alguns surdos querem ir sozinhos ou se sentem muito ansiosos, ficam deprimidos, porque não tem a família que sinaliza

Francine Pedrotti
Presidente da Sociedade de Surdos de Caxias do Sul

Primeira surda a se formar em Psicologia no Rio de Janeiro, em 2005, Luciana enfrentou barreiras desde a graduação, em um período em que as instituições ainda não eram obrigadas a ter intérpretes em sala de aula. Pouco depois, ela começou a atender surdos e fez parte da primeira turma do curso de Letras – Libras do Brasil, em 2006, na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

Segundo Luciana, os cursos de psicologia, assim como nas demais áreas da saúde, precisam avançar na formação de profissionais capacitados para lidar com a diversidade. Ela também pontua que apenas o conhecimento da língua não basta, uma vez que, os significados e sentidos em Libras estão totalmente ligados com a cultura surda. “Na psicologia fazem cursos básicos e colocam lá como se fossem psicólogos bilíngues, mas na verdade, na hora de atender o surdo, a comunicação não acontece”, critica a psicóloga, mestre em Diversidade e Inclusão pela Universidade Federal Fluminense (UFF). 

Consulta feita aos dados do Conselho Federal de Psicologia (CFP), mostra que existem 550.459 psicólogos ativos. Levantamento independente feito por Luciana Ruiz indica 85 profissionais que atendem em Libras em diferentes regiões e estados brasileiros, sendo 23 deles surdos. 

A reportagem entrou em contato com o CFP para saber se existem diretrizes sobre o atendimento de saúde mental de surdos, porém, nenhuma resposta foi dada até a publicação do texto. Nas demais áreas, o número de profissionais é ainda mais incerto. A principal lacuna, segundo Luciana Ruiz, está na área de psiquiatria, o que agrava diversos problemas no caso de quem precisa tomar medicamentos.

Foto colorida de Luciana Ruiz durante lançamento de livro. Luciana é uma mulher branca e loira. Ela usa uma camisa verde e segura um exemplar do seu livro, ela usa óculos e sorri. Na frente, bancada com outros exemplares do livro.
Luciana Ruiz durante lançamento do livro “Seu filho agora é surdo”; psicóloga também atua com atendimento de crianças e famílias (Foto: Reprodução/PsicLibras)

Barreiras que se acumulam

Quando chegou no Rio Grande do Sul, Nabi decidiu entrar para o curso de Psicologia em uma instituição privada de Caxias do Sul, porém, a ausência de uma rede de apoio e as dificuldades financeiras, acabaram por fazer ela interromper a formação. “Eu paguei metade e acabei largando. A minha depressão aumentou e eu chorava muito, fiquei nervosa por muito tempo”, relembra ela. Foi na universidade que ela teve contato com atendimento de saúde mental de pessoas surdas pela primeira vez.

Falta acessibilidade em farmácias, em hospitais, em vários lugares. As pessoas precisam pensar no futuro, porque os surdos precisam tomar medicações, eles compram remédios, eles vão aos hospitais também

Willian da Motta Brum
Professor de Libras

Atualmente, Nabi trabalha em um hotel e conseguiu retomar as sessões com uma psicóloga que atende em Libras. Antes, apenas com a renda do Benefício de Prestação Continuada (BPC), no valor de um salário mínimo, ela não tinha condições de pagar as consultas. A partir da retomada dos atendimentos, Nabi afirma ter começado a entender melhor sintomas de sobrecarga mental que antes desconhecia, como o bruxismo. “Ela me explicou que bruxismo também é por causa da ansiedade”, conta.

Francine Pedrotti é presidente da Sociedade dos Surdos de Caxias do Sul (SSCS) e foi a responsável por indicar a profissional bilíngue que atende Nabi. Depois da pandemia de Covid-19, ela notou um aumento na procura de serviços de saúde mental pelos surdos. “Tem três psicólogos em Caxias, mas psiquiatra não tem nenhum (que saiba Libras). Já pesquisei e procurei, porque às vezes a gente precisa tomar um remédio e a gente não tem”, descreve ela.

Cabe destacar que os profissionais que atendem a comunidade surda em Libras trabalham, na maioria das vezes, em clínicas particulares. “O surdo paga (médico) particular, paga o remédio e tem de pagar o intérprete. A maioria dos surdos não têm poder aquisitivo muito alto”, exemplifica Francine, sobre a dificuldade do acesso aos serviços de saúde.

Saúde e Libras

A falta de acessibilidade não dificulta apenas o acesso de surdos ao atendimento psicológico. Morador de São Borja, na fronteira oeste do Rio Grande do Sul, Willian Brum revela que, quando vai em uma farmácia ou no hospital, tem de escrever o que precisa ou está sentindo. “Falta muita acessibilidade, o atendimento é muito difícil, porque como que vai conversar, como vai explicar, por exemplo, onde está doendo? A pessoa precisa mostrar e indicar”, desabafa ele, sobre a falta de acessibilidade nas instituições de saúde.

Segundo Francine, em muitos casos uma pessoa da família exerce esse papel de mediar o contato com um profissional de saúde, mas nem todos os surdos possuem familiares fluentes em Libras. “Se vai fazer uma cirurgia, tu tem que estar levando o intérprete junto, porque não tem. Alguns surdos querem ir sozinhos ou se sentem muito ansiosos, ficam deprimidos, porque não tem a família que sinaliza”, acrescenta a presidente da SSCS.

Outra das questões apontadas por Willian está nas diferenças entre regiões e municípios. Em São Borja, por exemplo, não há profissionais de saúde que são fluentes em Libras, o que força surdos a viajarem para outras cidades. “Falta acessibilidade em farmácias, em hospitais, em vários lugares. As pessoas precisam pensar no futuro, porque os surdos precisam tomar medicações, eles compram remédios, eles vão aos hospitais também”, destaca o professor. 

William (à esquerda, em pé) atua como professor de Libras em São Borja; surdos enfrentam dificuldades ao buscar serviços de saúde – (Foto:Divulgação/Unipampa)

Lacunas na formação de profissionais

“A comunicação em Libras na saúde é básica, pelo menos para aprender o alfabeto”, afirma Jéssica Fernandes, psicóloga em Caxias do Sul. O contato desde a infância com dois sobrinhos surdos fez com que ela aprendesse a língua de sinais. Por isso, nas aulas de Psicologia, geralmente era Jéssica quem introduzia o tema nas discussões. Apesar de também atender ouvintes, ela afirma que quase 90% do seu público é formado por surdos, com uma procura cada vez mais crescente. 

Em relação aos principais temas que aparecem nos atendimentos, a psicóloga aponta problemas de ansiedade, principalmente ligados a dificuldade de colocação no mercado de trabalho, além de problemas familiares. “Eles saem novos de casa, têm filhos muito cedo, então vai desestruturando. Eles trazem muitos traumas que vêm desde criança, por conta da má comunicação”, descreve Jéssica.

Em muitos casos, a busca também é uma oportunidade para desabafar. “Eles não têm nenhuma pessoa que possa ouvi-los. Então, por exemplo, muitos fazem três sessões e não querem mais. Depois de um tempo, voltam”, explica a profissional de Caxias do Sul. O processo terapêutico também envolve a explicação sobre sentimentos, emoções e termos que, por vezes, demanda o uso de ilustração, por conta da dificuldade de tradução em Libras.

Tanto Jéssica, quanto Luciana Ruiz, relatam que após a pandemia, tornou-se comum fazer atendimentos on-line, o que facilita o acesso aos serviços por surdos de diferentes cidades e estados. “Eu trabalho muito a distância às vezes à noite porque a maioria dos surdos trabalham também durante o dia e não tem tempo”, exemplifica Luciana. 

A especialista também cita a preocupação com dois públicos específicos, crianças e idosos surdos. Em relação ao primeiro grupo, o desconhecimento de como lidar com a deficiência por parte das famílias é uma das principais dificuldades. “Muitas famílias simplesmente deixam os bebês nas creches e nem sabem que ele é surdo. Precisa fazer o exame, precisa participar da comunidade surda e às famílias, às vezes, só procuram o médico para fazer um implante”.

Ao abordar os desafios do envelhecimento das pessoas surdas, Luciana descreve a dificuldade causada pelo isolamento e a solidão de muitos idosos. Por isso, ela trabalha com outros membros da comunidade surda para criar um local para o acolhimento desse grupo. “Às vezes, as próprias famílias têm preconceito com o idoso. O idoso vive sozinho, então precisa ter esse olhar também para o idoso essa didática própria para o idoso”, destaca a pesquisadora e psicóloga.

Como buscar atendimento?

Nos últimos anos, surgiram diferentes iniciativas com objetivo de ampliar a inclusão e oferecer suporte para a comunidade surda na área da saúde. O Instituto de Psicologia e Estudos Surdos (Ipes), por exemplo, atua com palestras e formação de psicólogos para atuar em Libras. Durante as enchentes no Rio Grande do Sul, o Ipes também disponibilizou atendimento gratuito para a comunidade surda gaúcha. Outro exemplo de iniciativa semelhante é o grupo Libras e Saúde, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). O projeto trabalha de forma interdisciplinar para facilitar o acesso e a compreensão dos surdos sobre as questões da área da saúde.

No âmbito do poder público, alguns estados e municípios também têm feito esforços nesse sentido. Em 2023, a Câmara de Porto Alegre aprovou uma lei que determina que as unidades de saúde municipais disponibilizem intérpretes de Libras, de forma presencial ou virtual. Também no último ano, a Secretaria de Saúde do Ceará criou um Núcleo de Acessibilidade e o perfil no Instagram – @saudecearalibras – para divulgar informações em língua de sinais.

Na Câmara dos Deputados, o Projeto de Lei 342/24 prevê a obrigatoriedade de hospitais de médio e grande porte terem, pelo menos, um intérprete de Libras. A matéria aguarda para ser discutida na Comissão de Saúde. Na área da saúde mental de pessoas surdas, a página Psicologia em Libras divulga listas de profissionais bilíngues em diferentes estados. A mais recente (disponível aqui) inclui o mesmo número de 85 profissionais citados por Luciana Ruiz.

Esta reportagem e as entrevistas foram produzidas com o apoio das intérpretes Aline Cardoso da Silva, Andrelise Gonçalves Sperb e Ludmilla Ximenes.

Micael Olegário

Jornalista formado pela Universidade Federal do Pampa (Unipampa). Gaúcho de Caibaté, no interior do Rio Grande do Sul. Mestrando em Comunicação na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Escreve sobre temas ligados a questões socioambientais, educação e acessibilidade.

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