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Saúde materna e mudanças climáticas: desastres e calor afetam mães e bebês
Relatório de especialistas em ciência climática destaca impactos negativos do aquecimento global na saúde reprodutiva de mulheres
“No meu local de trabalho, a gente teve situações dramáticas, por exemplo, de bebês prematuros que estavam internados na neonatal e os pais não conseguiam chegar ao hospital”, conta Mariana Gonçalves de Oliveira. Professora da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA), ela atua como intensivista na unidade neonatal do Hospital Moinhos de Vento, na capital gaúcha. O relato de Mariana sobre o período das enchentes no Rio Grande do Sul ilustra a relação entre saúde materna e mudanças climáticas.
Relatório lançado recentemente pelo The Earth League, consórcio internacional de cientistas e especialistas em clima, apontou diferentes ameaças da crise climática para os ecossistemas e as futuras gerações. O documento “10 Novos Insights em Ciência Climática” indica que o aumento das temperaturas globais pode elevar as chances de complicações na gravidez e impactar negativamente a saúde reprodutiva de mulheres, principalmente, quando associado com desigualdades sociais, econômicas e de gênero.
Professora do departamento de Biologia da Universidade de Brasília (UnB) e uma das responsáveis pelo estudo, Mercedes Bustamante menciona os efeitos diretos e indiretos causados, por exemplo, por ondas de calor e pela redução global da disponibilidade de água e alimentos. “O aumento da perda de gravidez, o nascimento prematuro, as doenças maternas graves e os impactos cognitivos nos filhos são alguns dos riscos”, afirma a pesquisadora.
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Veja o que já enviamosAlém do estresse térmico, o relatório aponta os problemas gerados por inundações como a que atingiu o Rio Grande do Sul. “Em pesquisa realizada em 33 países da América do Sul e Central, da Ásia e da África, estimou-se que os eventos de inundação podem ser responsáveis por mais de 107.000 perdas de gravidez por ano nessas regiões”, descreve Mercedes. Mulheres com menor nível de escolaridade são as geralmente mais expostas a esses riscos.
Em sua experiência com o desastre climático deste ano, Mariana cita diferentes desafios que colocam em risco mães e crianças, como o esgotamento dos bancos de leite e casos de bebês que tiveram alta e não tinham para onde ir. “É outra situação dramática, de uma criança que ficou internada vários meses na UTI Neonatal, que não tem um lugar com condições adequadas para os pais levarem quando tem alta”, complementa a professora, especialista em recém-nascidos e prematuros.
Mulheres em abrigos
As chuvas e enchentes no Rio Grande do Sul levaram mais de 600 mil pessoas a sair de suas casas. No pior momento do desastre, mais de 80 mil pessoas ficaram desabrigadas, entre elas, mulheres grávidas e bebês. “Imagina estar numa situação de abrigo, onde tem um milhão de coisas para organizar e pensar ainda em esterilizar a mamadeira, ferver a água e conseguir fórmula adequada para a faixa etária do bebê”, exemplifica Mariana.
Esse caos foi vivido de perto por Priscila Moraes de Souza, grávida de seis meses na época das enchentes, entrevistada em reportagem do especial “As crianças e a crise climática” do #Colabora. Outra situação emblemática ocorreu com Katiele Borges, que entrou em trabalho de parto em um abrigo de Sapucaia do Sul, município da região metropolitana de Porto Alegre. Antes, ela tinha visto a casa onde morava com o marido ser inundada.
Ao falar sobre as principais estratégias adotadas para enfrentar a calamidade, Mariana Gonçalves descreve a mobilização para manter a vacinação atualizada e apoiar mães em processo de amamentação. A criação de abrigos específicos para mulheres e crianças foi uma das medidas adotadas pelo poder público para evitar casos de abuso e violência. De acordo com a especialista, fortalecer redes de apoio é outro elemento essencial na relação entre saúde materna e mudanças climáticas.
Mães pelo clima
Natural de São Paulo, Clarissa Canova morou no Rio Grande do Sul até a água invadir a casa em que ela morava no bairro Menino Deus, em Porto Alegre. “A gente teve que sair sem olhar para trás, porque tava todo mundo da família e amigos sem eletricidade, sem água. Entramos no carro e viemos para São Paulo”, relembra a publicitária, sobre a situação que enfrentou junto com o marido e o filho de 5 anos.
O episódio materializou de uma forma pessoal e radical o que Clarissa trabalha no projeto “Mães pelo Clima”. A iniciativa foi idealizada como um ecossistema de apoio para mães diante da crise climática. O projeto atua por meio de comunidades de apoio, capacitações e o estímulo ao comércio, como alternativa de renda para essas mulheres.
Clarissa conta que o projeto surgiu de uma dupla inquietação que começou a sentir quanto ao futuro. “Que filho que eu ia deixar para o mundo e que mundo eu ia deixar para o meu filho?”. As ações do Mães pelo Clima também levam em conta a sobrecarga das mulheres nas tarefas de cuidado. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) revelam que elas dedicam 10,6 horas a mais do que os homens aos afazeres domésticos e/ou cuidados de pessoas.
“As mulheres e as crianças são as principais afetadas pela crise climática, então fica um ‘gap’ (lacuna), porque nós somos responsáveis pela casa e pelos filhos”, destaca a publicitária. Por isso, explica Clarissa, um dos pilares do projeto é capacitar mulheres para que desenvolvam produtos sustentáveis, como panos de cera de abelha.
Diálogo com as crianças
Outro dos desafios do Mães pelo Clima está em ajudar mães a conversarem sobre as mudanças climáticas com os filhos. “Como que eu crio filhos resilientes em meio a tudo isso?”, pontua Clarissa. Segundo ela, além do acolhimento, é preciso evitar o sentimento de culpa ou de ansiedade nas crianças. Outra alternativa é inserir práticas de cuidado com a natureza no cotidiano da família, como o uso de ecobags para ir ao supermercado.
No contexto da saúde materna e mudanças climáticas, incluindo as demais fases da infância, as escolas e famílias passam a ter também um novo horizonte de educação socioambiental. “As escolas também fazem parte dessa rede de apoio e amparo, precisa dessa junção para conseguir mudar, pelo menos alguma coisa, para que outras mães não sofram como eu sofri. O nosso papel enquanto Mães pelo Clima é fazer essas provocações”, afirma Clarissa.
Um dos frutos do trabalho desenvolvido pelo projeto foi o lançamento, no ano passado, do e-book “Oportunidades entre gerar e regenerar: diálogos sobre regeneração e clima na maternidade”. Para o futuro, a intenção é ampliar a realização de eventos e ter uma plataforma com conteúdos sobre o tema para serem acessados por diferentes mães.
Jornalista formado pela Universidade Federal do Pampa (Unipampa). Gaúcho de Caibaté, no interior do Rio Grande do Sul. Mestrando em Comunicação na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Escreve sobre temas ligados a questões socioambientais, educação e acessibilidade.