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Preta Gil não foi guerreira: foi uma mulher normal lidando com o impossível

Estereótipos de força e metáforas de guerra afastam pacientes oncológicos do direito à humanidade

ODS 3 • Publicada em 21 de julho de 2025 - 11:11 • Atualizada em 21 de julho de 2025 - 12:24

Sempre fico na dúvida se devo ou não escrever sobre o câncer, sob risco de ser a chata oncológica. Mas, nessa equação da vida, em que perdi cabelos, um peito, amigos e certezas (entre outras coisas), se falar sobre essa devastação depois de passar por ela me tornar chata, é um preço que tô disposta a bancar. Então é claro que a morte da Preta Gil, triste como é por si só, bate diferente para quem, como eu, recebeu a notícia que ninguém quer ter: “é câncer sim”.

Leu essa? Precisamos chamar o câncer de câncer

Nem todas as mortes são sentidas por um país inteiro como a de Preta, herdeira da realeza da música brasileira, empresária, artista, fodona, amiga de geral. Tem umas partidas que afetam ali, o núcleo de gente que cerca quem se foi, quem viveu ao lado da pessoa que se torna ausência. Mas no câncer, é tudo teoria do caos. Se, de fato, “o bater de asas de uma borboleta no Brasil pode provocar um furacão no Texas”, o falecimento de alguém com câncer traz um tornado de sentimentos a pacientes oncológicos independentemente da proximidade entre as pessoas, física ou emocional.

A cantora Preta Gil ao anunciar seu tratamento contra o câncer: Estereótipos de força e metáforas de guerra afastam pacientes oncológicos do direito à humanidade (Foto: Reprodução)
A cantora Preta Gil ao anunciar seu tratamento contra o câncer: Estereótipos de força e metáforas de guerra afastam pacientes oncológicos do direito à humanidade (Foto: Reprodução)

Toda vez que morre alguém de câncer (e toda hora morre alguém de câncer), morre um pedacinho da certeza de que tudo vai continuar bem. E vem o medo de não ficar mesmo. E vem a culpa por estar com a gente, e não pra quem se foi. Mas vem, ao mesmo tempo, a gratidão por ter estado até agora. E a solidão de sentir isso tudo junto. Um “sozinha” que se sente a despeito de quanta gente nos cerque. Mas também na companhia de todo mundo que sente o mesmíssimo sopro de medo no cangote. Toda vez que morre alguém de câncer. Toda vez.

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É também quando alguém morre de câncer que estereótipos de força e metáforas de guerra se repetem à enésima potência, como que tentando dar poesia ao indizível: “guerreira”, “perdeu a batalha”, “lutou até o fim”. Entendo que a vida muitas vezes é dureza, e concordo com Chico que “também sem um carinho ninguém segura esse rojão”. Mas acredito também que tem vezes em que é preciso “olhar pedra e ver pedra mesmo”, sem poesia. (Perdão, Adélia).

Preta Gil não foi guerreira: foi uma mulher normal lidando com o impossível. Que teve medo de morrer, alívio com notícias boas, que fraquejou antes as pioras e que viveu, viveu pra cacete, pra contar o que viu e venceu. Numa batalha, sempre alguém perde e alguém sai vitorioso. Então, porque morreu, a Preta perdeu? A “guerreira” amarelou? Se aposentou? Se acovardou? Pendurou as chuteiras? Ela teve escolha?

Estereótipos de força e metáforas de guerra relacionados a doenças devastadoras, principalmente o câncer, afastam pacientes justamente de sua humanidade. É porque somos humanas que a loteria genética faz com que fiquemos doentes, e é também por essa humanidade que temos o direito de sentirmos raiva, medo, dor, alívio, cansaço, frustração. E ao contrário do que ela própria gostaria, óbvio, Preta Gil era uma mulher normal sendo obrigada a lidar com o impossível para continuar fazendo o que me parece que fazia muito bem – por si mesma e pelos outros: vivendo.

E quando digo “normal”, de maneira alguma pretendo tirar o extraordinário que havia em Preta Gil, documentado na vida com a família, com os tantos amigos e que agora culmina em tantos posts honrando sua vida, de gente que a viveu e de gente que só a viu. Quando digo normal, é porque foi na cotidianidade que sua força precisou ser forjada. Sem poderes mágicos, sem armadura, sem dublê. O câncer não permite eufemismos, ao contrário de quem fala “aquela doença” buscando distanciamento possa acreditar. E quando digo normal, também quero lembrar o que ninguém quer saber: podia ser com absolutamente qualquer pessoa. Foi comigo. Mas ainda tô aqui. Eu e tanta gente.

Toda vez que morre alguém de câncer, morre um pouquinho da segurança de quem passou por essa estrada e fala sobre a viagem. Mas é também aí que sentimos ainda mais, em cada poro, o quanto é bom viver. (Quem poderá fazer aquele amor morrer?)

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