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Veja o que já enviamosPreta Gil não foi guerreira: foi uma mulher normal lidando com o impossível
Estereótipos de força e metáforas de guerra afastam pacientes oncológicos do direito à humanidade
Sempre fico na dúvida se devo ou não escrever sobre o câncer, sob risco de ser a chata oncológica. Mas, nessa equação da vida, em que perdi cabelos, um peito, amigos e certezas (entre outras coisas), se falar sobre essa devastação depois de passar por ela me tornar chata, é um preço que tô disposta a bancar. Então é claro que a morte da Preta Gil, triste como é por si só, bate diferente para quem, como eu, recebeu a notícia que ninguém quer ter: “é câncer sim”.
Leu essa? Precisamos chamar o câncer de câncer
Nem todas as mortes são sentidas por um país inteiro como a de Preta, herdeira da realeza da música brasileira, empresária, artista, fodona, amiga de geral. Tem umas partidas que afetam ali, o núcleo de gente que cerca quem se foi, quem viveu ao lado da pessoa que se torna ausência. Mas no câncer, é tudo teoria do caos. Se, de fato, “o bater de asas de uma borboleta no Brasil pode provocar um furacão no Texas”, o falecimento de alguém com câncer traz um tornado de sentimentos a pacientes oncológicos independentemente da proximidade entre as pessoas, física ou emocional.

Toda vez que morre alguém de câncer (e toda hora morre alguém de câncer), morre um pedacinho da certeza de que tudo vai continuar bem. E vem o medo de não ficar mesmo. E vem a culpa por estar com a gente, e não pra quem se foi. Mas vem, ao mesmo tempo, a gratidão por ter estado até agora. E a solidão de sentir isso tudo junto. Um “sozinha” que se sente a despeito de quanta gente nos cerque. Mas também na companhia de todo mundo que sente o mesmíssimo sopro de medo no cangote. Toda vez que morre alguém de câncer. Toda vez.
É também quando alguém morre de câncer que estereótipos de força e metáforas de guerra se repetem à enésima potência, como que tentando dar poesia ao indizível: “guerreira”, “perdeu a batalha”, “lutou até o fim”. Entendo que a vida muitas vezes é dureza, e concordo com Chico que “também sem um carinho ninguém segura esse rojão”. Mas acredito também que tem vezes em que é preciso “olhar pedra e ver pedra mesmo”, sem poesia. (Perdão, Adélia).
Preta Gil não foi guerreira: foi uma mulher normal lidando com o impossível. Que teve medo de morrer, alívio com notícias boas, que fraquejou antes as pioras e que viveu, viveu pra cacete, pra contar o que viu e venceu. Numa batalha, sempre alguém perde e alguém sai vitorioso. Então, porque morreu, a Preta perdeu? A “guerreira” amarelou? Se aposentou? Se acovardou? Pendurou as chuteiras? Ela teve escolha?
Estereótipos de força e metáforas de guerra relacionados a doenças devastadoras, principalmente o câncer, afastam pacientes justamente de sua humanidade. É porque somos humanas que a loteria genética faz com que fiquemos doentes, e é também por essa humanidade que temos o direito de sentirmos raiva, medo, dor, alívio, cansaço, frustração. E ao contrário do que ela própria gostaria, óbvio, Preta Gil era uma mulher normal sendo obrigada a lidar com o impossível para continuar fazendo o que me parece que fazia muito bem – por si mesma e pelos outros: vivendo.
E quando digo “normal”, de maneira alguma pretendo tirar o extraordinário que havia em Preta Gil, documentado na vida com a família, com os tantos amigos e que agora culmina em tantos posts honrando sua vida, de gente que a viveu e de gente que só a viu. Quando digo normal, é porque foi na cotidianidade que sua força precisou ser forjada. Sem poderes mágicos, sem armadura, sem dublê. O câncer não permite eufemismos, ao contrário de quem fala “aquela doença” buscando distanciamento possa acreditar. E quando digo normal, também quero lembrar o que ninguém quer saber: podia ser com absolutamente qualquer pessoa. Foi comigo. Mas ainda tô aqui. Eu e tanta gente.
Toda vez que morre alguém de câncer, morre um pouquinho da segurança de quem passou por essa estrada e fala sobre a viagem. Mas é também aí que sentimos ainda mais, em cada poro, o quanto é bom viver. (Quem poderá fazer aquele amor morrer?)
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