Receba as colunas de Júlia Pessôa no seu e-mail

Veja o que já enviamos

Pra não dizer que não falei de câncer – nem tudo no outubro é rosa

É preciso falar: não para romantizar, mas para lembrar que diagnóstico precoce salva vidas

ODS 3 • Publicada em 28 de outubro de 2025 - 09:00 • Atualizada em 28 de outubro de 2025 - 09:03

Eu quase passei ilesa este ano, mas não aguentei. Aos 45 do segundo tempo do mês, não pude deixar o rosa do outubro adormecido. Pessoalmente, o Outubro Rosa me desperta sentimentos conflitantes. Por um lado, é incrível que as pessoas estejam mais abertas a falar sobre prevenção, diagnóstico precoce e autoexame.

Leu essa? Preta Gil não foi guerreira: foi uma mulher normal lidando com o impossível

Por outro, é uma maré bem baixo astral de oportunismo, da lojinha da esquina a grandes marcas fazendo post fundo brega do Canva e fitinha rosada dizendo: nós apoiamos esta causa. Que causa? O câncer? A prevenção? Como exatamente sua marca ajuda a combater o câncer? Você facilita horários para que quem trabalha possa cuidar da saúde? Sua equipe tem um plano de saúde decente para se prevenir contra toda a paleta de cores dos meses do câncer?

Cristo Redentor iluminado para o Outubro Rosa: sempre é preciso falar de câncer (Foto: Fernando Frazão / Agência Brasil - 10/02/2018)
Cristo Redentor iluminado para o Outubro Rosa: sempre é preciso falar de câncer (Foto: Fernando Frazão / Agência Brasil – 10/02/2018)

Fora isso, não vai ser pintando de cor de rosa que o câncer vai deixar de ser o que é: uma doença devastadora, com tratamento difícil e que afeta as pessoas adoecidas em milhares de níveis, e também a vida de quem as cerca. O câncer não me ensinou coisa alguma, tudo que aprendi foi por esforço próprio, e apoio de quem não soltou minha mão. Se o aprendizado depende de uma doença que poderia ter me matado, preferia continuar burra. Mas ainda que a contragosto, uma das lições que fui obrigada a assimilar na marra foi “dar às coisas o tamanho que elas têm”, para bem e para mal.

Assim, esse papinho “pode crer” de que pensamento positivo cura câncer não se cria comigo. Tampouco essa coisa de “se ame e se toque” como se quem tivesse câncer não tivesse se amado ou se tocado suficientemente. Muito menos a ideia estapafúrdia de que pode haver, agora, um tratamento mais seguro e mais indicado do que aquele que vem curando milhares de pessoas há anos – não sem perrengue, claro. Claro que acredito que há outros saberes e possibilidades que nossa tão vã filosofia nem vislumbra. Mas sugerir abandonar o que a ciência vem provando como certo e seguro em detrimento de um tiro no escuro é conversa mesmo de quem não teve que sentir o bafo quente da morte soprando no cangote.

Receba as colunas de Júlia Pessôa no seu e-mail

Veja o que já enviamos

E a prioridade de alguém com câncer (na maioria dos casos ao menos) é se manter vivendo. E a gente se mantém assim não por coragem, por força, por um espírito guerreiro ou por alguma intervenção divina. Não é uma escolha, é a única possibilidade pra continuar existindo. E jogar a chance de cura para um “milagre”, sem desmerecer a fé de ninguém, é cruel e injusto. E as pessoas como eu (e o resto do mundo)? Que fazem fofoca, não se comovem com pranto de gente ruim e falam mal dos outros esporadicamente? Será que temos iluminação suficiente para sermos agraciadas com milagre? Estamos sendo punidas pela natureza por não termos filhos? (Amamentar previne o câncer de mama) E quanto às mães que também adoecem? Mas tem câncer na sua família? Quem tem culpa do seu câncer. (Spoiler: na maioria das vezes, estão acusando você e suas escolhas).

No entanto, dar às coisas seu devido tamanho também é reconhecer a pequeneza de tantas questões que em outros tempos me tirariam a paz e o sono. O câncer encolheu o mundo ao meu redor e, paradoxalmente, me fez vê-lo com mais nitidez. Falar de câncer é falar de finitude, e a finitude não combina com feed. Talvez por isso o rosa precise ser tão forte, tão vibrante, tão cheio de laços, como se pudesse colorir o que é impossível domesticar. Ele nos obriga a lidar com o corpo em ruína, com o tempo em suspensão, com a impotência de quem só pode esperar.

Ainda assim, é preciso falar, e cá estou eu. Não para romantizar, nem para vender esperança a preço de banana, mas para lembrar que diagnóstico precoce salva vidas. Salvou a minha. E também para não nos esquecermos de que nem tudo no outubro é rosa, e que por trás das fitinhas coloridas mês a mês, tem gente sobrevivendo à doença, ao medo, às cobranças, e, não menos importante, às campanhas que insistem em transformar dor em engajamento.

Apoie o #Colabora

Queremos seguir apostando em grandes reportagens, mostrando o Brasil invisível, que se esconde atrás de suas mazelas. Contamos com você para seguir investindo em um jornalismo independente e de qualidade.

Receba nossas notícias e colunas por e-mail. É de graça.

Veja o que já enviamos

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *