Diário da Covid-19: México se aproxima do Brasil e dos EUA em número de casos e óbitos diários

Na Cidade do México, a indígena Otomi Maricela Pere, usa uma máscara facial contra a disseminação do coronavírus enquanto tenta vender as suas peças de artesanato. Foto Claudio Cruz/AFP

Negacionismo irresponsável, pouco caso com a pandemia e alto volume de casos e mortes une a gestão dos três países

Por José Eustáquio Diniz Alves | ODS 3 • Publicada em 1 de junho de 2020 - 11:41 • Atualizada em 28 de julho de 2020 - 11:27

Na Cidade do México, a indígena Otomi Maricela Pere, usa uma máscara facial contra a disseminação do coronavírus enquanto tenta vender as suas peças de artesanato. Foto Claudio Cruz/AFP

O México, geograficamente, fica entre os Estados Unidos (EUA) e o Brasil. E parece ser este também o destino sobre os rumos da pandemia. O Brasil está, atualmente, em primeiro lugar nos coeficientes diários de incidência e mortalidade. Os EUA estão em segundo lugar e o país dos Astecas vem em terceiro, mas com tendência de ultrapassar o seu vizinho norte-americano.

O México tem um presidente de esquerda que perdeu preciosos dias negando a gravidade da pandemia, até reconhecer que precisava atuar rápido para evitar uma catástrofe. O Brasil tem um presidente de extrema direita que não perdeu sequer um dia para minimizar a gravidade da emergência sanitária e para debochar e menosprezar da situação dos doentes e dos mortos.

O que os EUA, o Brasil e o México têm em comum é a alta proporção de pessoas infectadas, o elevado número de vidas perdidas e um grande tombo na economia, com graves consequências sociais. Considerando o total das cifras acumuladas da pandemia entre as três maiores nações das Américas, o país de língua inglesa está na liderança mundial, o país de língua portuguesa está na liderança da América Latina e o país de Montezuma, em números absolutos de óbitos, lidera a América espanhola.

Para entender a situação mexicana, vamos iniciar este diário com uma breve caracterização sociodemográfica e econômica do país, apresentar os dados da covid-19 e trazer ao público brasileiro uma entrevista com uma demógrafa muito experiente e reconhecida internacionalmente, Irene Casique Rodríguez, socióloga e doutora em demografia pela “University of Texas at Austin”, professora da Universidade Nacional Autónoma do México (UNAM) e Editora do prestigioso periódico acadêmico RELAP (Revista Latino Americana de População) da ALAP (Associação Latino Americana de População).

Breve panorama demográfico e socioeconômico do México

O México é o terceiro país da América Latina em área (atrás apenas do Brasil e da Argentina) e o segundo em tamanho de população (atrás somente do Brasil). O país da América Latina situado mais ao norte, tem uma área de quase 2 milhões de km2 e uma densidade demográfica de 58 habitantes por km2. Segundo a Divisão de População da ONU, o México tinha uma população de 28 milhões de habitantes em 1950, chegou a 129 milhões em 2020 e deve alcançar, na projeção média, 142 milhões de pessoas em 2100.

As mulheres mexicanas tinham em média 6,8 filhos no quinquênio 1950-55, pouco acima da média da América Latina e Caribe (ALC) e, ainda no quinquênio 2015-20, mantinham taxa acima da média continental com 2,1 filhos por mulher. A mortalidade infantil e a esperança de vida ao nascer segue a tendência média da região. O Índice de Envelhecimento (IE) era de 13 idosos (60 anos e mais) para cada 100 jovens de 0 a 14 anos e está em 44 idosos por 100 jovens atualmente. Em consequência, o México possui uma estrutura etária rejuvenescida, o que propiciaria melhores condições para reduzir a letalidade da pandemia. Contudo, é um país com fortes desigualdades socioeconômicas e muitas carências sociais, o que dificulta o controle do coronavírus.

Nada é absoluto. Tudo muda, tudo se move, tudo gira, tudo voa e desaparece

Nos últimos 40 anos, o México manteve uma renda per capita acima da renda do Brasil, da ALC e da média mundial. Depois da recessão provocada pela crise financeira de 2008/09, o México manteve um crescimento econômico modesto, mas não sofreu com a crise de  2015 e 2016 que afetou bastante o Brasil e a ALC, conforme mostra o gráfico abaixo, com base nos dados do FMI, a preços correntes, em poder de paridade de compra (ppp na sigla em inglês). Em 2019, o México tinha uma renda per capita de US$ 21,9 mil, acima dos US$ 16,7 mil do Brasil, dos US$ 16,6 mil da ALC e dos US$ 18,4 mil da renda média mundial.

Contudo, embora o México tenha um desempenho econômico melhor do que a média da América Latina, passou por uma pequena recessão em 2019 e passará por uma grande depressão em 2020. Segundo o FMI, o PIB mexicano terá uma queda de 6,6% e segundo a Cepal, a queda será de 6,5% em 2020. Evidentemente, estes cenários vão depender do controle da pandemia e da capacidade de retomar as atividades de produção e consumo.

 Dados sobre a covid-19 no México, Brasil, EUA e no mundo

O Brasil, na atualidade, é o principal epicentro internacional da pandemia do novo coronavírus, pois, tem liderado em vários momentos o ranking global do número diário de casos e de vidas perdidas, possuindo taxas mais elevadas de crescimento diário do que os EUA. O México está em 15º lugar em número de casos, mas no 7º lugar no ranking do número de mortes.

A tabela abaixo mostra que, no dia 31 de maio, o México tinha quase 100 mil casos e quase 10 mil mortes. A taxa de letalidade (11%) é muito alta para os padrões internacionais e o número de testes (2,1 mil por milhão de habitantes) é muito baixo, sugerindo que deve haver uma grande subnotificação do número de pessoas infectadas. Assim, o coeficiente de incidência (704 casos por milhão) está abaixo da média mundial (803 por milhão), mas o coeficiente de mortalidade (77 óbitos por milhão) está acima da média mundial (48 por milhão). Indubitavelmente, os números do Brasil e dos EUA são muito mais elevados.

Os gráficos abaixo, com base em material do jornal Financial Times, mostram as tendências dos coeficientes de incidência e de mortalidade para o México, o Brasil, os EUA e outros países ao longo dos dias, desde o início da pandemia.

Os gráficos abaixo (note-se que estão em escalas diferenciadas) deixam claro como o México e os Estados Unidos estão em diferentes fases epidemiológicas da pandemia, pois o país latino-americano apresenta uma tendência de aumento do número de casos e de óbitos, enquanto o país anglo-saxão já ultrapassou o pico e está numa fase de diminuição do número de casos e de óbitos. O Brasil está numa situação parecida com a do México.

Avaliando o ritmo do crescimento da pandemia nos últimos 10 dias do mês de maio, nos três maiores países das Américas, observa-se que o México apresenta taxas de aumento dos óbitos de 4,3% ao dia, o Brasil 4,0% ao dia e os EUA 1,2% ao dia. Portanto, os três países apresentam tendência de se aproximar nas tristes estatísticas do número de vítimas fatais.

Entrevista com a demógrafa Irene Casique sobre a situação da pandemia no México

Para entender melhor o que acontece no país de Diego Rivera, fizemos uma entrevista com a demógrafa Irene Casique sobre a evolução da pandemia no México.

Quando o México percebeu a gravidade da pandemia?

Irene Casique – A epidemia na China tornou-se conhecida desde janeiro, mas a encaramos como um problema localizado em um local muito distante. Quando começamos a conhecer sobre a gravidade da situação em países como Espanha e Itália, já a entendíamos como um problema de escopo mais global, do qual não estaríamos isentos. Mais tarde, em março, quando os casos começaram a se multiplicar nos Estados Unidos, sabíamos que já a tínhamos à nossa porta e que era uma questão de tempo para o país estar em uma situação grave.

O primeiro caso confirmado de covid-19 no país foi divulgado pelo Subsecretário de Saúde em 27 de fevereiro e desde então o Governo, por meio da Secretaria de Saúde, tem apresentado relatórios diários sobre o número de casos confirmados e das mortes que ocorreram. Em 28 de fevereiro, a Secretaria da Saúde iniciou a Fase 1 da covid-19 no México, caracterizada pela presença de somente casos importados e um número limitado de casos confirmados. Em 24 de março, as autoridades de saúde anunciaram o início da etapa 2, com casos de contágio local, e em 30 de março foi decretada a “emergência de saúde por força maior” no país, dada a evolução dos casos confirmados e mortes pela doença.

Irene Casique, demógrafa. Foto Arquivo Pessoal
Irene Casique, demógrafa. Foto Arquivo Pessoal

Que medidas sanitárias foram tomadas pelo governo e pela sociedade civil?

Irene Casique – As primeiras medidas sanitárias foram implementadas entre a segunda e a terceira semana de março. A partir de 11 de março, quando a OMS declarou a covid-19 como uma pandemia, a sociedade civil – ainda não o governo – começou a tomar algumas medidas. Entre a segunda e a terceira semana de março, alguns centros educacionais e universidades particulares suspenderam aulas e algumas empresas privadas, por decisão própria, começaram a realizar suas atividades em casa. A mensagem das autoridades ainda não era muito clara.

Em 24 de março, o governo federal decretou o início da fase 2 da pandemia de covid-19 no país, após o registro das primeiras infecções locais e, a partir de então, foram adotadas oficialmente medidas mais rigorosas, como a suspensão de aulas, trabalho remoto, cancelamento de grandes eventos, cessação de atividades em espaços fechados e cancelamento de todas as atividades não essenciais nos setores público e privado (considerando as atividades relacionadas à saúde, segurança pública, alimentação e energia como essenciais).

Como parte da campanha sanitária das autoridades de saúde, a mais difundida pelo governo tem sido a promoção de manter uma “distância saudável” entre as pessoas. Para esta campanha foi criada uma personagem heroína chamada “Susana Distancia”, envolta em uma bolha de proteção, que alcançou ampla popularidade na população (“sana” em espanhol significa saudável – portanto um jogo de palavras com o nome Susana).

Em 21 de abril, o subsecretário de saúde, López Gatell, anunciou o início da Fase 3, com a qual as medidas de distância saudável foram mantidas até pelo menos 30 de maio.

Como a quarentena (isolamento social) tem funcionado no México?

Irene Casique – A quarentena tem funcionado de maneira desigual. Como a quarentena no país não é obrigatória, não há medidas de controle ou sanções para aqueles que não a cumpram. Assim, enquanto em algumas zonas de cada estado e de cada cidade se vê poucas pessoas na rua e quase todas as empresas fechadas, em outras áreas mais populares ou menos favorecidas, muitas lojas permanecem abertas e muitas pessoas transitam sem proteção e sem manter a distância umas das outras. E nos povoados e áreas rurais a quarentena não tem sido realmente implementada.

Segundo dados oficiais, o México, assim como o Brasil, parece estar em pleno andamento nas infecções e mortalidade por covid-19. Qual é a sua visão sobre o caminho futuro? Quando, por exemplo, você acha que o México alcançará o valor mais alto e começará a controlar a pandemia?

Irene Casique – Para começar, acho que ainda temos muitas semanas pela frente antes que o número de infecções e mortes comece a diminuir. Inicialmente, em março, quando a fase 2 foi declarada na terceira semana, o governo propôs como data de retorno à “normalidade” em 20 de abril. Já em abril, o governo, por meio do subsecretário de saúde, estimava que o México atingiria o pico de casos em 8 de maio, mas essas projeções não foram cumpridas e, agora, terminando o mês de maio, o relato de casos continua aumentando a cada dia. Isso deixa claro que não será antes de meados ou final de junho que o número de casos se estabilizará e, com sorte, em algum momento em julho começará a descida da curva de contágios e de mortes.

Como o Brasil, poucos testes foram realizados no México e parece haver subnotificação de casos e registro de óbitos. Em caso afirmativo, qual é a dimensão disso no México e como essa (des)informação afeta as ações e políticas de saúde para conter a pandemia?

Irene Casique – Efetivamente, o número de testes realizados no México é muito baixo. Desde o início, o governo mexicano rejeitou a possibilidade de aplicar testes massivos e apostou no chamado método Sentinela, que afirma que o número de casos reais pode ser 8 vezes maior que os dados relatados. No final de abril, estimava-se que tinham sido aplicados apenas 0,4 testes por 1.000 habitantes.

Portanto, a existência de testes tem sido muito limitada, os mesmos só podem ser realizados em pessoas com sintomas graves, seu custo tem sido alto e o governo também limitou que as empresas e laboratórios possam aplicá-los. Ao mesmo tempo, o governo rejeita a veracidade dos testes rápidos. Todos esses elementos levaram a acusações e reclamações contra o governo e as autoridades de saúde, além de muita incerteza em vários atores sociais.

As consequências derivadas do baixo número de testes refletem na ausência de medidas preventivas de contágio dos inúmeros casos que permanecem sem diagnóstico, o que facilita a disseminação do contágio. Consequentemente, se assumimos que muitas pessoas não são diagnosticadas, isso implica que o número de casos publicados diariamente no México está subestimando o número real de infectados e mortos.

Existem medidas econômicas tomadas pelo governo para garantir que as pessoas mantenham sua sobrevivência? Existem medidas que os especialistas consideram necessárias, mas não estão sendo implementadas?

Irene Casique – A principal proposta anunciada em 24 de abril é austeridade, cortando 25% dos salários dos funcionários de alto escalão, eliminando 10 subsecretarias de governo e não executando 75% do orçamento disponível dos itens de serviços e suprimentos gerais, entre outras disposições, para economizar.

O governo também anunciou a implementação de programas de apoio e assistência diretos as pessoas e setores mais desprotegidos, deixando claro que somente apoiarão os mais necessitados, mas que não haverá apoio a empreendedores nem endividamentos a serem resgatados, ao mesmo tempo em que o governo tem se recusado a reduzir impostos ou a implementar medidas fiscais.

Quando e como o governo planeja encerrar a quarentena?

Irene Casique – Para iniciar o “novo normal”, cada entidade federal estabelecerá um “semáforo epidemiológico” que inclui 4 fases possíveis: vermelho (quando a ocupação do hospital é de 65% ou mais ou houve aumento de casos durante duas semanas seguidas); laranja (quando há menos de 65% de ocupação hospitalar e duas semanas de tendência de queda no número de casos); amarelo (quando a ocupação hospitalar é inferior a 50% e duas semanas de tendência de queda nos casos); e verde (a ocupação hospitalar é inferior a 50% e, pelo menos, um mês de tendência de queda nos casos).

Foi anunciado oficialmente que a partir de segunda-feira, 1º de junho, começará gradualmente a reabertura de alguns setores econômicos (indústria automotiva, construção e mineração). Nas declarações de 29 de maio, o Subsecretário de Saúde anunciou que praticamente todo o país ainda continua com “sinal vermelho” (com um aumento diário no número de infectados e mortes), de modo que o retorno será gradual e, semanalmente, a situação de cada entidade federativa será atualizada, permitindo a reabertura de outras atividades econômicas não essenciais quando o semáforo epidemiológico estiver amarelo. O retorno à escola ocorrerá somente quando o semáforo estiver na fase verde.

Existem lições que você acha que o México pode ensinar ao Brasil neste momento de enfrentamento da pandemia?

Irene Casique – Sinceramente, acho que não. Em relação às medidas sanitárias ou econômicas, acho que não temos muito a ensinar, mas sim a aprender. No entanto, algo que tem sido muito positivo é a política de comunicação adotada pelas autoridades, por meio do subsecretário de saúde, que todos os dias, às 7h e 19h, oferecem informações sobre a evolução dos casos, as medidas implementadas e um pouco do que esperar a curto e médio prazo.

Como você e sua família estão enfrentando esses meses de quarentena?

Irene Casique – Embora o confinamento às vezes traga momentos cansativos e nos dá vontade de sair para ir ao cinema, ver amigos ou qualquer outra coisa que por hora não podemos fazer, temos vivido a experiência com a consciência que somos privilegiados. Que temos tudo para estar confortável e tranquilo em casa. Que podemos trabalhar desde casa e continuar recebendo nossos salários – embora a filha mais velha tenha perdido o emprego em uma empresa dedicada à organização de eventos musicais -, mas mesmo com esta experiência temos podido viver com a certeza de que continuamos tendo sorte, fundamentalmente porque estamos todos saudáveis.

 Frase do dia 01 de junho de 2020

“Nada é absoluto. Tudo muda, tudo se move, tudo gira, tudo voa e desaparece”

Frida Kahlo (1907-1954)

José Eustáquio Diniz Alves

José Eustáquio Diniz Alves é sociólogo, mestre em economia, doutor em Demografia pelo Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional (Cedeplar/UFMG), pesquisador aposentado do IBGE, colaborador do Projeto #Colabora e autor do livro "ALVES, JED. Demografia e Economia nos 200 anos da Independência do Brasil e cenários para o século" (com a colaboração de F. Galiza), editado pela Escola de Negócios e Seguro, Rio de Janeiro, 2022.

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