Pouco antes do primeiro turno da eleição, quase 100 indígenas da etnia Munduruku se reuniram em uma das aldeias da Terra Indígena Sawré Muybu, no sudoeste do Pará, para receber em mãos os laudos dos exames realizados em novembro de 2019, para medir o impacto do mercúrio dos garimpos na região. Os resultados genéricos da análise – feita por pesquisadores da Fiocruz – já haviam sido divulgados no fim de 2020: todos os 200 indígenas testados tinham mercúrio no organismo.
A ameaça à saúde está em cada exame: aproximadamente 6 em cada 10 (57,9%) dos participantes da pesquisa apresentavam níveis de mercúrio acima de 6 µg/g, que é o limite máximo aceitável de segurança estabelecido por agências de saúde. Por conta da pandemia, só agora, nesta reunião no fim de primavera de 2022, os laudos individuais chegam aos Mundurukus: a contaminação generalizada é causada pelo consumo de peixes dos rios inundados de mercúrio pelos garimpos do Rio Tapajós, que atravessa o território.
Os sintomas da contaminação por mercúrio chegaram muito antes. “Hoje, eu sinto muito esquecimento e dor de cabeça e eu sei que é consequência do mercúrio. O corpo dói e a gente não pode ficar muito tempo trabalhando no sol. A visão também dói. E a gente sabe o que é. É do garimpo”, conta Aldira Akay Munduruku, 31 anos, coordenadora do Coletivo Audiovisual Munduruku. Seu laudo indica um nível de mercúrio de 8,9 – índice de 6 a 10 é considerado Alto pelos padrões das agências de saúde. O clima é de choque, tristeza e apreensão na assembleia indígena que acompanha a apresentação dos resultados já que muitos indígenas registraram níveis de contaminação acima de 10 – classificado com Muito Alto; em alguns, o nível passou de 20. “É triste pra nós saber que estamos contaminados pelo garimpo. É um impacto no território e na nossa vida também”, comenta Aldira Akay.
Na assembleia, estão reunidos indígenas das três aldeias Munduruku que foram alvo do trabalho da Fiocruz – Poxo Muybu, Sawré Aboy e Sawré Muybu. É nesta última, que tem o mesmo nome da Terra Indígena e fica mais perto de Itaituba, a cidade mais próxima, que os pesquisadores Paulo Basta e Ana Cláudia Santiago de Vasconcellos apresentam o que chamam de devolutiva de resultados à comunidade. “A água que a gente tem pra consumo tá suja. Virou lama e agora a gente sabe que tá contaminada com mercúrio. Imagine você saber que sua única fonte de alimentação está doente com mercúrio. Até as crianças ficam preocupadas”, lamenta a líder indígena Alessandra Korap Munduruku.
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Foi Alessandra Korap, como presidente da Associação Indígena Pariri, que representa os Mundurukus, quem entrou em contato com a Fiocruz para que os exames fossem feitos, e viabilizou, junto aos moradores das três aldeias, que os técnicos realizassem a coleta de material. Desde 2018, os indígenas vêm denunciando o avanço descontrolado no garimpo na região e começaram a sentir seus impactos. É ela quem recebe – na Aldeia Praia do Índio, em Itaituba, onde mora – os pesquisadores da Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz e um pequeno grupo de documentaristas que vão acompanhar a devolutiva. São nove horas de ônibus desde Santarém, cidade que recebe voos comerciais. O aeroporto de Itaituba é um dos mais movimentados do país, mas só recebe pequenos aviões – a maioria a serviço do garimpo. A cidade – a quarta mais populosa do Pará – tem 101.395 habitantes e o garimpo e a compra e venda de ouro são as principais atividades econômicas: em rápida circulação pelo centro da cidade, encontramos 19 casas de compra de ouro apenas nas ruas principais.
Garimpo envenena o Tapajós
A Aldeia Praia do Índio, onde a líder indígena nasceu, fica às margens do Rio Tapajós. São mais 50 minutos de voadeira até a até a Aldeia Sawré Muybu. a mais próxima de Itaituba na Terra Indígena Sawré Muybu, demarcada, inicialmente, pelos próprios Mundurukus: eles mesmo marcaram os territórios e colocaram as placas. Em abril de 2016, o Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação – primeiro passo para a oficialização – da Terra Indígena Sawré Muybu foi publicado pela Funai, mas desde então, o processo de demarcação está parado. Alessandra Korap participou ativamente da auto-demarcação: em 2020, prêmios Robert F. Kennedy de Direitos Humanos e o Taz Panter, de uma fundação alemã, por sua “coragem civil”.
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Veja o que já enviamosNa voadeira, Alessandra chama a atenção para a água do Rio Tapajós, com uma coloração branca, pálida, que nem de longe lembra o mar esverdeado de outros tempos. “A gente tá muito preocupado com essa análise do mercúrio que eles vão devolver hoje os resultados pra nós. A gente tá preocupado com o peixe porque aqui, no Médio Tapajós a gente ainda vê o peixe, mas no Alto Tapajós (acima de Itaituba) já não tem peixe”, comenta a líder indígena. Os Mundurukus se prepararam para receber os pesquisadores: representantes das três aldeias estão presentes na assembleia.
Formado em Medicina com Douturado em Saúde Pública, Paulo César Basta desenvolve pesquisas sobre a saúde dos indígenas há quase duas décadas. Ele explica pausada e didaticamente, com auxílio de slides, os dados da pesquisa “Impacto do mercúrio em áreas protegidas e povos da floresta na Amazônia Oriental”. Ao todo, foram entrevistados, examinados e avaliados 200 pessoas: 94 indígenas da aldeia Sawré Muybu, 66 da Poxo Muybu e 40 da Sawré Aboy, de quem foram recolhidas amostras de cabelo e saliva. Todos tinham algum grau de contaminação por mercúrio. Os pesquisadores também levaram peixes para análise: todo o pescado examinado também estava contaminado por mercúrio.
O pesquisador Paulo Basta explica que os resultados extraídos da pesquisa são “muito preocupantes para a população do Tapajós”. Para cada quilo de ouro descoberto, relata o médico, são utilizados de três a quatro quilos de mercúrio para separar o metal precioso, antes de ser encaminhado para a casa de compra. Para o processo de separação, os garimpeiros usam maçaricos ou outro fonte de calor: a maior parte – de 65% a 85% – do mercúrio evapora e se mistura na atmosfera, viaja em forma de fumaça e, através do vento e da chuva, vai contaminar rios e solos. A outra parte é igualmente perigosa: jogada diretamente nos rios, vai se misturando com a lama, algas e microrganismos, entrando na cadeia alimentar peixes, tracajás, jacarés, camarões e larvas do rio.
Os pesquisadores Paulo Basta e Ana Cláudia Santiago de Vasconcellos explicam que peixes no topo da cadeia alimentar – como piranha, pirarucu e tucunaré – são aqueles que têm nível de concentração maior. Quanto maior o peixe, maior é a probabilidade de estar contaminado. “A gente se alimenta basicamente de peixe aqui e no Tapajós todo. As crianças desde pequena já pescam. Os principais peixes que a gente consome são os mais contaminados. Isso vai acabar com a gente, que já passa fome”, aponta Claudeth Saw Munduruku, de 44 anos, atenta à exposição.
Quem também acompanha a assembleia indígena é Maria Leusa Kaba Munduruku, coordenadora da Associação das Mulheres Munduruku Wakoborũn, que teve sua casa no município de Jacareacanga, incendiada por um grupo armado de garimpeiros e indígenas simpáticos ao garimpo no ano passado. “Eu tô arrasada. A gente tá com nossa alimentação em risco. Saber que a gente não pode comer mais peixe não é boa notícia. A gente vai morrer de fome agora? O que a gente vai comer? O que as grávidas vão comer pra alimentar seus filhos? A gente vê e sente na pele o garimpo”, frisa Maria Leusa, que teve de deixar a cidade por algum tempo após uma sequência de ameaças. “Eu fiquei muito revoltada com esse resultado triste e chocante”.
A entrega dos laudos espalha a apreensão pela assembleia indígena. O professor Aldo Karo, de 43 anos, da Aldeia Poxo Muybu, está com seu exame com alto nível de contaminação por mercúrio (8,9 µg/g). “A gente tem uma preocupação de não saber como são esses sintomas do mercúrio de quem adoece. Então essa é a minha preocupação maior porque de vez em quando a gente sente uma dor de cabeça, mal estar. A gente não sabe como é que funciona isso”, afirma Aldo Karo. Na Aldeia Sawré Muybu, Daniel mostra com preocupação os laudos de sua família: a mulher e os quatro filhos pequenos, todos com diferentes graus de contaminação. “O nosso maior medo é com as crianças”, comenta.
Na assembleia indígena, os pesquisadores explicam que os dois grupos de maior vulnerabilidade são grávidas e crianças. A contaminação por mercúrio afeta, principalmente, o sistema nervoso causando dores de cabeça, zumbidos constantes, perda da visão periférica, insônia, pressão alta, tremores nas mãos e fraqueza nas pernas. “A água que a gente tem pra consumo tá suja. Virou lama e agora a gente sabe que tá contaminada. O que a gente faz hoje é ir atrás de projetos como o Saúde e Alegria para ajudar os indígenas. Não vamos esperar pelo presidente porque ele não se importa. Ele nunca vai ajudar. A Prefeitura nunca vai ajudar. A gente conseguiu alguns pontos de água potável por aqui (Sawré Muybu) e agora tá conseguindo lá pro Alto Tapajós também. Bolsonaro não se importa com a água que a gente bebe e nem se importa se a gente come”, desabafa Alessandra Korap.
No dia seguinte, reunidos no barracão de reuniões da aldeia Sawré Muybu, os indígenas assistem ao novo filme do diretor premiado Jorge Bodanzky, “Amazônia, a nova Minamata?”. O documentário relaciona os acontecimentos que tiveram início em 1956 no Japão na cidade de Minamata onde uma população inteira sofreu os efeitos do mercúrio no ecossistema causando a doença neurológica que hoje é conhecida por Mal de Minamata. Imagens antigas, em preto e branco, mostram o estrago do mercúrio no sistema nervoso daqueles que são envenenados com o metal na cidade japonesa e os impactos nas futuras gerações.
O documentário retrata sobretudo a saga do povo Munduruku para conter o impacto destrutivo em seu território ancestral. O documentário acompanha Alessandra Korap e alguns personagens envolvidos nos impactos que o garimpo e mercúrio trazem para o povo indígena do Baixo, Médio e Alto Tapajós. São depoimentos de oficiais da Polícia Federal, indígenas, médicos e garimpeiros. Falas preocupantes de personagens que vivem diariamente essa realidade ignorada por boa parte da sociedade brasileira e o perigo do garimpo e sua contribuição para o crescimento desenfreado do crime organizado.
Disposição para a luta
Após as apresentações, tanto dos resultados dos exames quanto do filme, é possível ver a preocupação e a tensão no semblante dos indígenas. Mas esse ambiente pesado vai se dissipando quando as lideranças Munduruku falam da luta pela demarcação da Terra Indígena Sawré Muybu. “A auto demarcação já foi toda feita. Nós mesmos fizemos. Veio muita gente de várias aldeias ajudar aqui, com os guerreiros, pra fazer isso. Agora estamos cobrando do governo. Vamos ver se ganha outro para fazer a demarcação do nosso território”, afirma o cacique Valdemar Munduruku Puxu Muybu, alertando para as constantes invasões. “Agora aumentou a quantidade de maquinário de grileiro e garimpeiro no território. Muitos da nossa gente acredita nas promessas de que o ouro vai ajudar eles. Muitos caciques que botaram garimpeiros nas terras deles não ganharam nada. Isso é triste, muito triste”, acrescenta o líder indígena.
Maria Leusa, presidente da Associação de Mulheres Munduruku, mostra a mesma disposição para reivindicar a demarcação da Terra Indígena. “A gente fala que nenhuma bala de nenhum bandido vai nos calar. Hoje, a gente tá aqui vivo porque é nosso papel cuidar de nosso território e de nossos filhos, porque somos mães também. O povo da cidade fala que a gente recebe dinheiro de ONG, mas a gente não recebe nenhum dinheiro. A gente sabe capinar, sabe construir, sabe defender nosso território, sabe plantar e sabe trabalhar”, afirma a líder indígena “Nenhuma das mulheres aqui quer ver o seu filho doente. Queremos o bem de nossos filhos na resistência. A gente vai plaquear (placas com a legenda; Território Indigena Munduruku) o nosso território e autodemarcar, cobrando que órgãos e a DPU (Departamento de Patrimônio da União) acompanhem o trabalho da gente. Nós exigimos da Funai que faça o trabalho que nós estamos fazendo”, protesta.
Alessandra Korap mostra preocupação com a segurança dos indígenas com o avanço dos grileiros e, principalmente, dos garimpeiros. “A Maria Leusa teve a casa dela destruída pelos garimpeiros no ano passado e, por pouco, ela não morreu. Lá em Jacareacanga, onde ela mora, a gente já não encontra mais igarapés para achar água. Eles avançam, os garimpeiros, e vão destruindo as fontes de água e construindo igreja evangélica. Os políticos sempre falam em legalizar o garimpo sem saber como isso faz mal pra nós e o quanto custa isso pra vida do povo que tá ali no mato”, critica a liderança Munduruku, lembrando que o próprio governador Helder Barbalho, reeleito em primeiro turno, defende o garimpo e instituiu o Dia do Garimpeiro a ser comemorado em 11 de Dezembro.
Só para registrar e pedir correção da matéria essas análises individuais foram realizadas pelo Instituto Evandro Chagas de Belém.
O Jornalista deveria atentar que a pesquisa é uma parceria entre FIOCRUZ e Instituto Evandro Chagas. Nos Laudos anexos constam os resultados gerados nos laboratórios do IEC, segundo informações da FIOCRUZ.
Eu como cidadã Brasileira descendente de indígenas lamento a situação preocupante terrivel deste povo tao perseguido e sofrido como meus ancestrais os indigenas eu sofro muito com tuso isso e penso em um meio de ajuda los nesta luta pois meu coração esta sangrando muito em saber tudo isso.