ODS 1
Na ditadura, reservas indígenas tiveram incentivo à monocultura
Desalojados de suas terras no século XIX, indígenas foram confinados em reservas, incorporando práticas, como uso de agrotóxicos, das áreas agrícolas vizinhas
Desalojados de suas terras no século XIX, indígenas foram confinados em reservas, incorporando práticas, como uso de agrotóxicos, das áreas agrícolas vizinhas
Vistas do alto, as aldeias da Terra Indígena Panambizinho e de boa parte da Reserva Indígena de Dourados parecem com as grandes fazendas de Mato Grosso do Sul, com plantações extensivas de soja e milho, principais produtos agrícolas do estado. Esses territórios já foram áreas de floresta, ocupadas pelos povos originários até a segunda metade do século XIX, quando começou um longo processo de expropriação. Os indígenas foram sendo expulsos de suas terras, entregues a projetos de exploração econômica.
Todas as reportagens da série especial Agrotóxicos: uma praga do Brasil
Hoje, plantar commodities – soja e milho, basicamente – nas aldeias do Mato Grosso do Sul é uma das formas dos indígenas obterem renda e acesso a direitos básicos, como transporte, saúde e educação, diante da ausência do poder público e da impossibilidade de manter seu modo de vida tradicional nos espaços reduzidos e descaracterizados das reservas onde foram confinados. As áreas arrendadas para a monocultura em terras indígenas seguem o padrão de outras plantações no estado, inclusive o uso, muitas vezes indiscriminado, de agrotóxicos. Mato Grosso do Sul é hoje o quinto estado do país em produção de grãos, que é responsável por 30% do PIB estadual.
Expulsão e escravidão no século XIX
Em 1882, o Governo Imperial expulsou a população originária de seus territórios perto da fronteira com o Paraguai para arrendá-los à Companhia Matte Laranjeiras, que ganhou o monopólio da exploração de erva-mate. Em uma área de 6 milhões de hectares no Brasil (e mais 2 milhões no Paraguai), a empresa produziu erva-mate para exportar para a Argentina usando mão de obra de indígenas guarani kaiowá e de camponeses paraguaios em condições análogas à escravidão.
Entre 1915 e 1970, os povos nativos foram confinados à força pelo Serviço de Proteção ao Índio (SPI) em reservas cujas terras, de escassa cobertura vegetal devido à ocupação agrícola, já não permitiam a plena realização de roça, coleta e caça. Durante o Estado Novo, o governo Getúlio Vargas implementou a Marcha para o Oeste visando expandir a agropecuária na região central do Brasil. O planejamento da Marca para Oeste incluía também a integração dos grupos indígenas à economia brasileira.
Objetivo semelhante – integrar os povos originários à sociedade brasileira – foi alegado pela ditadura militar (1964-1985) para incentivar, a partir da década de 1970, a plantação de grãos dentro das reservas indígenas ao sul do estado de Mato Grosso – Mato Grosso do Sul só virou estado em 1979 – dentro dos programas de financiamento do II Plano Nacional de Desenvolvimento, instituído pelo general Ernesto Geisel, que buscava ampliar a fronteira agrícola do país.
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Veja o que já enviamosSegundo o agricultor guarani kaiowá Nelson Ávila da Silva, o Banco do Brasil, em parceria com a empresa gaúcha de processamento de soja, Bianchini, inaugurou, em 1975, um projeto de hortas comunitárias para o plantio de milho, soja e trigo na Reserva Indíena de Dourados. “Uns 50 patrícios [indígenas] entraram nesse projeto, inclusive meu pai”, conta Nelson. Cada família tinha direito a retirar uma cesta de alimentos em um barracão da Funai e pagar somente quando recebiam o dinheiro da produção, descreve. “Essa foi a jogada para atrair o índio para a soja.”
Arrendamento no século XXI
Com o tempo, os programas estatais acabaram extintos e o fomento à monocultura nas aldeias passou a ter como protagonistas fazendeiros indígenas e não-indígenas. São eles que fornecem instrumentos e insumos necessários – agrotóxicos, inclusive – para o cultivo, além do pagamento de uma taxa de 26% pela colheita da soja e de 15% pela de milho aos indígenas que aceitam cultivar essas commodities em suas terras.
“O valor é pequeno mas, como a terra do indígena está abandonada e ele não tem recurso nem assistência técnica para cultivá-la, acaba se submetendo”, comenta o biólogo e professor guarani kaiowá Cajetano Vera. “Além de roubar terra da família, o arrendamento livra o poder público de gastos com trator e sementes. E ainda traz veneno, que antigamente não tinha aqui”, critica Nelson. Segundo eles, as monoculturas tiram o espaço já escasso das aldeias para o cultivo de alimentos, impactando na saúde indígena.
A parceria entre indígenas na plantação de grãos é legal e está embasada na autonomia no usufruto da terra por esses povos garantida pela Constituição de 1988. Já o arrendamento (quando um não-indígena planta em terra indígena), fere a lei, de acordo com o Estatuto do Índio, de 1973. Outra prática criminosa é a de fazendeiros usando indígenas como laranjas para plantarem impunemente nas TIs. Segundo o capitão da Jaguapiru, Ramon Fernandes, “existem dois ou três indígenas laranjas” na aldeia, dentro da Reserva Indígena de Dourados. “Estou investigando quem são para informar às autoridades”, diz o capitão, título dado aos indígenas responsáveis pelo contato com os órgãos do Poder Público durante a ditadura militar que permanece sendo usado até hoje.
Fazendeiros indígenas defendem monocultura
Capitão na TI Panambizinho há 30 anos, Valdomiro Oswaldo é uma das lideranças espirituais mais antigas da região e planta mais de 50 hectares de monocultura (soja e milho) em terrenos da aldeia através de parcerias com outros indígenas. Segundo ele, o cultivo de commodities ajudou a comunidade a levantar casas, além de garantir o pagamento da faculdade de seus filhos, um carro e a habilitação para dirigi-lo. Por mais que 80% da aldeia que capitaneia seja tomada pela monocultura, ele diz que isso não limita as roças voltadas para a alimentação. Também afirma nunca ter visto um indígena intoxicado por agrotóxico
Para o agricultor terena Sidney Freitas, morador da Jaguapiru, a proximidade com a cidade é um dos incentivos para que a sua família plante soja e milho há mais de 50 anos nas aldeias do estado. “Tem muita gente que tem um pedacinho de terra mas não tem condição de plantar, então faz parceria com quem tem”, diz ele, em meio a tratores modernos e a uma ampla plantação de milho no quintal. “O indígena pega a parte deles na parceria e consegue pagar faculdade, ter moto, uma casa melhor… Se não fosse bom, ele não plantava soja”, argumenta. “É o que sabemos fazer; é um trabalho difícil, mas recompensador”, diz Ney.
“Se quem trouxe as primeiras sementes de soja para as aldeias foi a própria Funai, como é que vai proibir agora depois que deslanchou?”, questiona. Há 20 anos, sua família foi até Brasília protestar pelo direito de desenvolver a monocultura com semente geneticamente modificada nas aldeias, prática proibida. O ato resultou em um termo assinado junto à Funai, no qual indígenas se comprometem a manter parcerias apenas com indígenas e a usar agrotóxicos seguindo a lei. Nenhum item do documento trata da liberação de transgênicos nas TIs, onde as sementes continuam ilegais, mas seguem sendo plantadas. “Com a semente convencional, tem que usar muito mais veneno. É o dobro de aplicação por safra”, justifica o agricultor.
*Esta reportagem foi financiada por uma bolsa promovida pela Alter Conteúdo Relevante e pelo #Colabora, em parceria com a Fundação Heinrich Böll, para promover e aprofundar o debate sobre o uso de agrotóxicos e suas consequências.
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Martina Medina é jornalista independente com mais de dez anos de profissão e formada pela USP. Seu trabalho é focado em comunidades originárias e tradicionais, gênero e meio ambiente. Produz reportagens investigativas sobre esses temas por meio do apoio de bolsas nacionais e internacionais. É colaboradora em diversos veículos de imprensa como editoras Globo e MOL, e já passou pelas redações da Band, UOL, Folha de S. Paulo, Abril, Trip, Jornal Joca e Vida Simples.