ODS 1
Famílias partidas: efeito colateral da hanseníase no Brasil
Durante quatro décadas, política de combate à doença consistia internar pacientes à força e separar pais de filhos - que agora lutam por reparação do Estado
Durante quatro décadas, política de combate à doença consistia internar pacientes à força e separar pais de filhos - que agora lutam por reparação do Estado
Parecia uma simples brincadeira de criança curiosa: aos oito anos de idade, Cleima passava por baixo da cerca de um terreno, muito atenta para não ser pega por um dos vigilantes, enquanto observava de longe o que acontecia lá dentro. Mas, durante alguns anos, este era o único jeito que a menina encontrava para ver a mãe, doente de hanseníase e isolada compulsoriamente em um hospital-colônia em Itaboraí, cidade distante apenas 45 km do Rio de Janeiro.
Ao todo, foram dez anos de laço rompido pelo isolamento forçado. Hoje, aos 52 anos, Cleima Maciel da Silva é uma das mais de cem filhas e filhos de ex-internos do Hospital Estadual Tavares de Macedo que lutam na Justiça para serem reparados pela separação compulsória de seus pais e mães — e a primeira a ter uma decisão favorável sobre o tema em primeira instância no estado do Rio de Janeiro. A antiga colônia de Itaboraí é uma das 36 instituições onde, por quase quatro décadas, o Estado brasileiro internou à força doentes de hanseníase, como parte de uma das mais duras políticas de saúde da história do país.
Assista ao nosso webdocumentário “Dona Santinha”, sobre a política de isolamento compulsório
— Eu olhava para minha mãe lá dentro, de longe, e achava ela muito triste. Parecia que não ficava feliz quando me via. Mas hoje eu entendo: era tristeza de não poder estar junto comigo — recorda Cleima.
[g1_quote author_name=”Cleima Maciel da Silva” author_description=”filha” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]Governo tinha que ir atrás dessas pessoas, buscar esses filhos que foram separados. Acho que para ser feito mesmo Justiça, eles tinham que ir atrás de todo mundo para indenizá-los. Eles não foram atrás dos pais? Agora busquem os filhos, para ver como ficou a situação dessas crianças que foram separadas, que ficaram com os outros.
[/g1_quote]A mãe de Cleima, Dolores Maciel da Silva, foi uma das cerca de 2,5 mil pessoas internadas compulsoriamente na Colônia Tavares de Macedo durante a política de combate à hanseníase — uma parcela dos milhares de homens e mulheres que foram segregados em instituições do tipo em todo o país. Eram minicidades com casas, praças, igreja, escola, salão de festas e delegacia, cercadas por muros altos, onde as pessoas diagnosticadas deviam ficar confinadas até o fim da vida.
Mesmo após o fim da política de isolamento, muitos permaneceram nas colônias. Dona Santinha (Maria da Conceição de Souza), de 86 anos, vive há quase 50 anos, na Tavares de Macedo: ela teve duas filhas que foram levadas pela polícia sanitária após o parto e nunca mais as viu. Sebastião Dutra, de 89 anos, vive na colônia de Itaboraí desde que foi diagnosticado com hanseníase aos 15 anos. Nunca mais soube dos irmãos.
Durante quatro décadas, a política de combate da hanseníase no Brasil consistia em internar os portadores da doença à força e separá-los da família, inclusive de seus filhos recém-nascidos. As colônias de leprosos ou leprosários reforçaram o preconceito contra uma doença que deixa de ser transmissível ao ser tratada e tem cura para a maioria das pessoas. Série de reportagens de Letícia Lopes no #Colabora conta que, os sobreviventes lembram ainda hoje as dores da separação e muitos filhos cobram reparação do Estado na Justiça.Leia todas as reportagens da série Hanseníase: internação à força e filhos separados dos pais
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Veja o que já enviamosA precariedade de registros e a escassez de documentos ao longo das décadas fez com que não existam números exatos de quantas pessoas foram forçadas a seguir para os “leprosários”, como eram chamados os hospitais que recebiam os doentes.
— Não há documentos, registros, estatísticas redondas. Para se ter uma noção, um dos números que temos é uma pesquisa feita ainda na década de 1950 pelo (médico hansenologista Heraclides Cesar de Souza Araújo, que falava em 60 mil doentes internados até aquele momento — explica Artur Custódio, coordenador do Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase (Morhan), instituição que luta pelos direitos dos ex-internos das colônias e seus filhos.
Brasileiros doentes de hanseníase já viviam separados do convívio em sociedade desde o século XVIII, mas foi na década de 1920 que os primeiros “leprosários”, ou colônias, foram construídos no país, ao mesmo tempo que esses espaços eram fechados na Europa, onde a melhoria das condições de vida e de higiene provocaram uma queda acentuada no número de casos. No Brasil, uma política de combate à doença, no entanto, só foi sistematizada como política pública a nível nacional na década de 1930, no primeiro Governo Vargas, sob comando do ministro da Educação e Saúde, Gustavo Capanema.
Com Capanema no ministério, o combate à hanseníase passou a ser prioridade e a estratégia do governo estabelecia um modelo tripé de atuação: pessoas com casos suspeitos eram colocadas em observação em dispensários, enquanto quem tinha a doença era internado em colônias. Já os filhos de doentes eram tirados de seus pais e mães e levados para os preventórios. O afastamento forçado, na maioria das vezes sem despedida, valia tanto para crianças e adolescentes quanto para bebês nascidos dentro dos “leprosários”.
Até 40 mil crianças separadas dos pais
Espalhados por quase todos os estados, o país chegou a ter 102 dispensários, 21 preventórios e 36 hospitais-colônia, mas com uma concentração maior desses espaços na região Sudeste. No atual estado do Rio de Janeiro, por exemplo, eram três colônias, dois preventórios e treze dispensários. O estado era o segundo do país com mais instituições, ao lado de Minas Gerais e abaixo de São Paulo, que chegou a contabilizar 54 aparelhos.
Apesar dos investimentos de grande porte na construção desses espaços, muitas vezes em locais precários em infraestrutura — como era o caso de Itaboraí, que ganhou luz elétrica com a implantação da colônia. Para especialistas, o isolamento com política pública não deu certo, e durou tempo demais.
— Temos um atraso histórico de décadas. Essa política não funcionou, e terminou muito tarde. Quando o Brasil estava começando a construir colônias para que pessoas com hanseníase pudessem morar e ter uma vida separada, a Europa estava fechando esses espaços. Se tivesse funcionado, teríamos controle da doença, o que nunca aconteceu — sentencia o dermatologista Claudio Salgado, presidente da Sociedade Brasileira de Hansenologia (SBH).
Projeção feita em 2012 pela antiga Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República calculava que cerca de 40 mil crianças e adolescentes, filhos de doentes de hanseníase, foram separados de seus pais e podem ter sido encaminhados para preventórios. O número tende a ser maior, já que não inclui crianças entregues a outros parentes, por exemplo. Já o Morhan estima que cerca de 14 mil pessoas, separadas de seus pais na infância estejam vivas, e ainda podem ser reparadas pelo Estado.
[g1_quote author_name=”Carlos Adriano Miranda Bandeira” author_description=”Juiz federal, na sentença da ação indenizatória de Cleima” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]Governo tinha que ir atrás dessas pessoas, buscar esses filhos que foram separados. Acho que para ser feito mesmo Justiça, eles tinham que ir atrás de todo mundo para indenizá-los. Eles não foram atrás dos pais? Agora busquem os filhos, para ver como ficou a situação dessas crianças que foram separadas, que ficaram com os outros.
[/g1_quote]Cleima e as duas irmãs, Cleumene e Ana Cleide, conseguiram escapar da estatística e foram acolhidas na casa de uma tia, num bairro vizinho à Tavares de Macedo, que funcionava como uma espécie de comunidade-satélite da colônia. Ainda assim, foram dez anos sem poder conversar com a mãe, Dona Dodô. Durante o período, o contato entre as duas era apenas visual, quando Cleima, a filha do meio, entrava clandestinamente no “leprosário” e observava a mãe, ao longe. Depois de certa idade, as entradas às escondidas do delegado da colônia — um interno responsável pela segurança — passaram a ser mais escassas até não mais acontecerem.
Com o passar do tempo e a chegada da adolescência, Cleima sentiu os impactos do afastamento da mãe de maneira mais intensa e, de algum modo, “culpou” os pais pela situação em que estavam. O pai das meninas, Silvino Martins da Silva, também tinha hanseníase, mas os sinais da doença ficavam em partes não visíveis do corpo, e ele escapou da política autoritária se tratando às escondidas na Baixada Fluminense, onde trabalhava. Quando a política de internação compulsória acabou, em meados da década de 1980, Dona Dodô finalmente deixou a Colônia, mas ainda demorou para que mãe e filha conseguissem reconstruir os laços afetivos. A relação entre as duas só mudou após o nascimento do primeiro filho de Cleima, Marlonn, hoje com 32 anos.
— Tive meu filho em 1988, e aí você entende o que é ser mãe. Um filho muda muito a cabeça de uma pessoa. A gente volta atrás. Meu marido morreu no ano seguinte, e ela fez pelo meu filho tudo o que não pôde fazer por mim — conta.
“Parece ficção científica”, diz defensor
Cleima nunca tinha pensado que poderia ser indenizada pelo Estado por todos os anos que viveu afastada de Dona Dolores, até um amigo do bairro, que também foi vítima da política de combate à doença, alertá-la para a possibilidade. O processo dela contra a União e o Estado do Rio é um dos mais de cem casos de filhos e filhas de ex-internos da Colônia Tavares de Macedo em que a Defensoria Pública da União (DPU) atua, e o primeiro a conseguir uma decisão favorável na Justiça.
— Eu nunca tinha pensado nisso. Fui por curiosidade. Levei os documentos de pai, mãe, prontuários, tirei cópia de tudo, e levei. Sempre tive mania de guardar papel, então tinha tudo guardado — lembra.
[g1_quote author_name=”Bernar dos Reis Alô” author_description=”Defensor Público” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]Os registros se perderam, evaporaram. Tirando a prova testemunhal, provar essa separação é muito difícil. Muita gente não tem documentos dos pais, e, às vezes, não tem nem documentação própria. Fica difícil a gente traçar essa linha de prova
[/g1_quote]Na primeira instância da Justiça Federal, em Itaboraí, o processo tramitou por sete meses, de novembro de 2017 a junho de 2018. Pela decisão de 17 páginas assinada pelo juiz Carlos Adriano Miranda Bandeira, Cleima seria indenizada em quase duzentos salários mínimos, mas a União e o Estado do Rio recorreram e o caso passou para a segunda instância, onde o pedido de reparação foi negado. Agora, ela aguarda que a ação seja avaliada no Superior Tribunal de Justiça (STJ) e no Supremo Tribunal Federal (STF).
Na sentença, ainda na primeira instância, Bandeira citou diversos trabalhos acadêmicos produzidos por pesquisadores que se debruçaram sobre o estudo da história da hanseníase no Brasil. O magistrado afirma que o dano causado pelo Estado Brasileiro é “existencial” e chama de “quase orfandade” a separação de filhos e filhas de seus pais e mães doentes.
“A família é sistema básico, que estabelece as referências de comportamento e de mundo para o indivíduo. A dissolução do vínculo familiar, a qualquer título que seja, é traumática e deixa consequências que apenas mediante muito trabalho não se prolongam por toda uma vida. Trata-se aqui de dano existencial. Submeter crianças filhas de hansenianos a uma quase orfandade, ainda que pudesse preservar saúde biológica, causava indubitável prejuízo a seu desenvolvimento pessoal e a sua inserção na sociedade. (…) Quando agentes do Estado tiram familiares um dos braços dos outros, impedem que a família seja tida como referencial de ambiente seguro. Essa é uma lesão que afeta profunda e prolongadamente os membros familiares separados”, diz a sentença.
A decisão de Miranda Bandeira foi na contramão do que vinha sendo determinado por outros juízes em ações semelhantes, que entendiam que o direito à indenização dos filhos e filhas dos ex-internos da colônia já estava prescrito, uma vez que a legislação brasileira prevê que o direito à reparação por danos causados pelo Estado expira em cinco anos. De outra forma, no processo de Cleima, Miranda Bandeira, ancorou sua decisão em um entendimento da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que estabelece que, quando há grave violação de direitos humanos, não haveria prescrição que impedisse investigação e punição dos responsáveis, pois o dano seria permanente.
— Tudo se baseia nessa divergência: se o juiz segue a jurisprudência brasileira, da prescrição, ou a jurisprudência da Corte Interamericana. A maioria dos juízes entende que está prescrito porque ultrapassou o prazo, então a maioria das decisões que temos conhecimento até agora são desfavoráveis — explica o defensor público Bernard dos Reis Alô, um dos profissionais que atua em processos como o de Cleima.
Falta de documentos
Segundo o defensor Alô, os casos começaram a chegar à unidade da DPU em Niterói — responsável também pelos municípios vizinhos de São Gonçalo e Itaboraí — em meados de 2017, mas a abertura das ações sempre esbarrou na falta de documentos que comprovassem a separação forçada das crianças.
— Nós dependíamos dos documentos da pessoa que nos procurava, e muita gente não tem nada: os registros se perderam, evaporaram. Tirando a prova testemunhal, provar essa separação é muito difícil. Muita gente não tem documentos dos pais, e, às vezes, não tem nem documentação própria. Fica difícil a gente traçar essa linha de prova. Além disso, muitas vezes quando nós provocamos o Estado a apresentar esses documentos, eles simplesmente também não existem — sinaliza o defensor.
Os relatos dolorosos e profundamente traumáticos dos assistidos são parte de um capítulo da história do país que era desconhecido por Alô até se deparar com os casos.
— Só fiquei sabendo de tudo isso por trabalhar na Defensoria Pública. Parece coisa de ficção científica: pai de um lado, filho de outro com um vidro no meio, gente sendo levada sem consentimento. Olhando para esses casos em 2017, era uma outra realidade. É assustador saber que esse tipo de coisa aconteceu — surpreende-se o defensor.
Cleima hoje aguarda o decorrer do processo em segunda instância. Enquanto os trâmites judiciais acontecem, ela acredita que, além das prováveis indenizações, o governo deveria fazer mais pelos filhos e filhas que foram privados do convívio com seus familiares, tiveram a vida invadida, a infância marcada pelo trauma do laço rompido e, muitas vezes, desconhecem o direito de reparação que possuem.
— Falei muito com o pessoal da Defensoria que eu acho que o Governo tinha que ir atrás dessas pessoas, buscar esses filhos que foram separados. Acho que para ser feito mesmo Justiça, eles tinham que ir atrás de todo mundo para indenizá-los. Eles não foram atrás dos pais? Agora busquem os filhos, para ver como ficou a situação dessas crianças que foram separadas, que ficaram com os outros. O certo para mim seria isso — opina.
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Jornalista formada pela UFF, com passagens pelos jornais O Globo e Extra, BandNews FM e O São Gonçalo. Gosta de rua, de gente e de dias de outono