Covid-19 derruba o consumo de carne no mundo

Relatório da ONU fala em queda de 3% em 2020, mas alguns analistas preveem redução maior nos próximos anos

Por Agostinho Vieira | ODS 3 • Publicada em 1 de agosto de 2020 - 10:27 • Atualizada em 7 de agosto de 2020 - 10:58

Vendedor corta carne em um mercado em Shenyang, na província de Liaoning, no nordeste da China. O país é o maior produtor mundial de proteína animal. Foto STR/AFP/China Out

O que alguns dos ambientalistas e ativistas veganos mais barulhentos do planeta vêm tentando fazer há anos, sem sucesso, o pequeno coronavírus conseguiu, silenciosamente, em poucos meses: reduzir o consumo mundial de carne. De acordo com o relatório semestral das Nações Unidas sobre o mercado global de alimentos, a queda em 2020 será da ordem de 3%, o que equivale a 9,5 milhões de toneladas. Pode não parecer muito, mas este é o nível mais baixo desde o início do século XXI. As razões são inúmeras e incluem as denúncias de contaminação pela covid-19 em frigoríficos de vários países. Algumas das maiores empresas do setor tiveram que fechar fábricas ou reduzir as suas operações, como a Tyson Foods, a Smithfield Food Inc, a Cargill, a National Beef Packing e a brasileira JBS.

O declínio na demanda por produtos à base de proteína animal nesse período se deve também ao fechamento de restaurantes e escolas. Mas a principal causa é a crise econômica provocada pela pandemia, o desemprego e a consequente queda no poder aquisitivo da população. Historicamente, o consumo de carne tende a crescer numa relação direta com o aumento do poder de compra do consumidor.

Nos últimos 60 anos a produção subiu quase cinco vezes, passando de 70 milhões de toneladas em 1960 para mais de 330 milhões em 2017. É verdade que há muito mais gente no mundo. No início da década de 1960, havia cerca de 3 bilhões habitantes no planeta. Hoje, somos mais de 7,6 bilhões. Sozinho, no entanto, esse argumento não explica como a produção de carne se multiplicou por cinco. A resposta está no aumento da renda. A média global mais do que triplicou em meio século. Uma olhada rápida no mapa do consumo per capita revela que quanto mais rica é uma nação maior tende a ser o número de carnívoros. Logo, não é só uma questão de ter mais gente no mundo. São mais pessoas, mais pessoas que podem comprar e mais pessoas que querem comprar carne.

E aí começa uma outra discussão: o que faz essa gente consumir tanta carne? Até hoje, médicos, cientistas e ambientalistas vinham usando três argumentos básicos e fortes para tentar evitar que isso acontecesse. O primeiro deles é que o consumo excessivo de carne não é nada bom para a saúde. Diversos estudos da OMS (Organização Mundial de Saúde) associam uma alimentação baseada em carne vermelha e processada ao aumento do risco de doenças cardíacas, derrames e certos tipos de câncer.

O segundo argumento, bastante repetido pelos cientistas, tem a ver com a crise climática. Dados da FAO (Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação) mostram que a pecuária é responsável por 14,5% dos gases de efeito estufa. Polui mais que todos os carros, trens, navios e aviões que se deslocam pelo mundo. Também gera 92% das emissões de amônia, o que acidifica o solo, diminuindo sua qualidade. Além de ser um dos setores que mais utiliza e desperdiça água no planeta.

A terceira razão lógica para que as pessoas não consumissem tanta carne está relacionada com o tratamento dado a esses animais em cativeiro, que é absolutamente desumano. Em artigo para a revista Página 22, o economista e professor da USP Ricardo Abramovay cita um estudo publicado pela Royal Society Open Science que mostra que a massa de frangos mantidos em cativeiro industrial supera a de todas as outras aves do planeta: “estes animais são configurados geneticamente para uma vida de cinco a sete semanas, durante a qual alimentam-se compulsivamente para ganhar peso com rapidez. Seus antepassados viviam entre três e onze anos. Da Idade Média para cá, o peso das galinhas industriais aumentou cinco vezes”, explica.

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Na cidade de Lapa, no Paraná, a linha de produção de frango da JBS-Friboi. Foto Rodrigo Fonseca/AFP
Na cidade de Lapa, no Paraná, a linha de produção de frango da JBS-Friboi. Foto Rodrigo Fonseca/AFP

A pandemia da covid-19 incluiu os epidemiologistas neste grupo de críticos e acrescentou mais um forte argumento. Comer menos ou nenhuma proteína animal pode reduzir enormemente os riscos de novas infecções virais e pandemias como a do coronavírus.  O aumento da produção nos últimos 50 anos tornou a carne mais barata, o que ajudou a ampliar o consumo. Mas com um custo muito elevado para a saúde do consumidor e dos trabalhadores da indústria. Concentrar milhares de animais em espaços reduzidos e centenas de pessoas em seu processamento, ampliou os riscos de transmissão viral ou bacteriana. Em apenas um frigorífico na Alemanha, a pandemia de covid-19 atingiu 6,5 mil trabalhadores e foi responsável por reverter a curva de declínio da doença que o país europeu vinha experimentando. E o pior, os infectados, quase sempre, são de minorias raciais e étnicas, como os latinos nos EUA e os haitianos que lotam os frigoríficos brasileiros.

Mesmo com todos esses argumentos, ainda é muito cedo para saber se essa queda no consumo de carne se manterá depois da pandemia. Alguns analistas falam em redução na Europa, nos EUA e no Brasil. Na China, maior produtor mundial, o tombo chegaria a 25%. Será? Hoje, os maiores consumidores de carne são os Estados Unidos, a Austrália, a Nova Zelândia e a nossa vizinha Argentina. Todos com mais de 100 kg de consumo de carne por pessoa a cada ano. É como se cada indivíduo comesse 50 frangos ou metade de um boi todos os anos. O Brasil vem logo atrás, com 99,84 kg por pessoa/ano. Em 1961, esse número era de 27,50 kg por pessoa/ano. Hoje, tanto no Brasil como no resto do mundo, come-se muito mais frango do que carne vermelha. O que não deixa de ser uma boa notícia para a saúde e para o combate à crise climática. Mas ainda estamos longe de resolver o problema.  Para o bem de toda a humanidade, não basta mudar o tipo de carne que comemos, é preciso reduzir a quantidade. E muito.

Agostinho Vieira

Formado em Jornalismo pela Escola de Comunicação da UFRJ. Foi repórter de Cidade e de Política, editor, editor-executivo e diretor executivo do jornal O Globo. Também foi diretor do Sistema Globo de Rádio e da Rádio CBN. Ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo, em 1994, e dois prêmios da Society of Newspaper Design, em 1998 e 1999. Tem pós-graduação em Gestão de Negócios pelo Insead (Instituto Europeu de Administração de Negócios) e em Gestão Ambiental pela Coppe/UFRJ. É um dos criadores do Projeto #Colabora.

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