Cientista aponta riscos de adiar segunda dose da vacina contra covid-19

Fila para vacinação contra covid-19 em Birmingham, Inglaterra: com explosão de casos, Reino Unido foi primeiro país a anunciar adiamento da segunda dose para imunizar mais gente com a primeira, decisão arriscada, de acordo com cientistas (Foto: Jacob King/AFP)

Falta de estoque de imunizantes e avanço da doença levam autoridades de saúde do mundo inteiro, inclusive do Brasil, a avaliar estratégia de espaçar as doses

Por The Conversation | ODS 3 • Publicada em 12 de janeiro de 2021 - 09:01 • Atualizada em 9 de fevereiro de 2021 - 09:43

Fila para vacinação contra covid-19 em Birmingham, Inglaterra: com explosão de casos, Reino Unido foi primeiro país a anunciar adiamento da segunda dose para imunizar mais gente com a primeira, decisão arriscada, de acordo com cientistas (Foto: Jacob King/AFP)

Sanjay Mishra*

As empresas farmacêuticas estão enfrentando desafios na fabricação de vacinas e na construção de cadeias de abastecimento para atender à demanda por imunizantes para a covid-19. A Pfizer até mesmo reduziu as metas de produção. A escassez de vacinas, em relação à demanda, levou a pedidos de uma estratégia semelhante a um band-aid para esticar o suprimento precário.

Para proteger o maior número possível de pessoas contra a covid-19, as autoridades médicas do Reino Unido optaram por priorizar a distribuição de uma primeira dose de vacina para o maior número possível de pessoas – atrasando as segundas doses da vacina Pfizer/BioNTech Covid para 12 semanas – a recomendação inicial era aplicar a segunda dose de 3 a 4 semanas após a primeira. Os britânicos enfrentam uma explosão de casos – e mortes – com a segunda impulsionada pela nova variante do vírus.

O presidente eleito dos EUA, Joe Biden, que já recebeu a segunda dose, deseja liberar todas as doses da vacina para acelerar o programa de vacinação – mas o risco é que os fabricantes de vacinas não consigam reabastecer o fornecimento para garantir que a segunda dose seja entregue a tempo. (Nesta segunda, 11/1, o ministro da Saúde do Brasil, general Eduardo Pazuello, anunciou que também estuda atrasar a segunda dose da vacina para que a primeira possa ser aplicada em mais pessoas)

Essas decisões abriram uma polêmica entre os especialistas porque alguns apoiam dar uma única dose de vacina para o maior número possível de pessoas, enquanto outros querem vacinar de acordo com o protocolo usado durante os testes clínicos. Nos EUA, apenas cerca de um décimo das 300 milhões de doses prometidas em janeiro, na Operação Warp Speed, ​​estão realmente disponíveis. No entanto, a Food and Drug Administration lembrou a comunidade médica da importância de receber ambas as doses de vacinas covid-19 de acordo com a forma como foram testadas em ensaios clínicos. O FDA lembra que não há dados que demonstrem a eficácia da vacina se a segunda dose for adiada.

Estou particularmente interessado neste debate porque coordeno um registro internacional de pacientes com câncer que foram diagnosticados com covid-19. Pacientes com câncer – atualmente enfrentando a doença ou mesmo já tratados e curados – têm duas vezes mais chances de morrer de covid-19 do que aqueles sem câncer. Os Centros de Controle e Prevenção de Doenças dos EUA não incluíram pacientes com câncer atuais ou sobreviventes para inclusão no primeiro grupo de recipientes da vacina covid-19. Alterar o prazo para as doses de vacina parece uma solução fácil para esticar os suprimentos limitados e fornecer vacinas para populações mais vulneráveis. Mas é a coisa certa a fazer?

Presidente eleito dos EUA, Joe Biden recebe a segunda dose da vacina contra covid-19: imunização incompleta e defesa menor a mutações do vírus entre os riscos de adiar a segunda dose (Foto: Alex Wong/AFP)
Presidente eleito dos EUA, Joe Biden recebe a segunda dose da vacina contra covid-19: imunização incompleta e defesa menor a mutações do vírus entre os riscos de adiar a segunda dose (Foto: Alex Wong/AFP)

O que é uma vacina?

Uma vacina dá ao corpo humano um vislumbre do vírus causador da doença. Esta prévia treina o sistema imunológico para a exposição ao vírus real. As primeiras vacinas, como as vacinas de poliovírus orais, continham vírus vivos, mas enfraquecidos. Eles fornecem imunidade robusta, mas apresentam um pequeno risco de doença, porque mesmo um vírus enfraquecido pode se tornar ativo e causar doenças em casos raros.

As vacinas modernas são mais seguras porque cada vez mais dependem apenas de partes do vírus, chamadas antígenos. No caso do COVID-19, o antígeno é a proteína de pico que permite ao vírus SARS-CoV-2 entrar nas células. Várias vacinas COVID-19 em desenvolvimento são baseadas em uma proteína spike sintética ou em seu código genético.

O FDA (agência de medicamentos dos EUA) deu, até agora, autorização de uso de emergência para duas vacinas COVID-19 baseadas em mRNA; da Moderna e Pfizer-BioNTech. No Reino Unido, uma vacina criada pela AstraZeneca também está autorizada. Essas três vacinas fornecem o material genético que codifica a proteína viral. Após a injeção na parte superior do braço, as células musculares leem as instruções genéticas e as utilizam para produzir a proteína viral diretamente no corpo. (As vacinas Coronavac – do laboratório chinês Sinovac, em parceria no Brasil com o Instituto Butantan – e a russa Sputnik, também aplicada na Argentina e outros países, também preveem duas doses – nota do tradutor)

A desvantagem dessas vacinas mais seguras e mais novas é que uma única dose desencadeia uma resposta imunológica menos eficaz do que uma vacina de vírus enfraquecida e, muitas vezes, requer vacinações repetidas para obter imunidade mais completa. Muitas vacinas humanas atuais, como contra tétano, hepatite B, sarampo, poliomielite e HPV, exigem duas doses: a primeira para preparar o sistema imunológico e a segunda para aumentar a resposta imunológica.

A eficácia das três vacinas para covid-19 autorizadas no Reino Unido foi estudada nos regimes de duas doses. Para a vacina Pfizer-BioNTech covid-19, o intervalo estudado e aprovado é de 21 dias entre a primeira e a segunda dose. Para a vacina Moderna covid-19, o intervalo é de 28 dias. Para a vacina AstraZeneca, o ensaio é para duas doses com 28 dias de intervalo. (Para as vacinas Coronavac e Sputnik, o intervalo entre as doses, estudado e aprovado, é de 21 dias – nota do tradutor)

O que acontece após a vacinação?

Uma vacina eficaz deve produzir memória imunológica semelhante ou melhor do que a adquirida pela exposição à doença natural – mas sem causar a doença. Para isso, após a primeira exposição, de uma vacina ou de uma infecção natural, uma classe de glóbulos brancos denominada células B virgens produz anticorpos como a primeira linha de defesa contra a infecção.

Esses anticorpos iniciais atingem níveis máximos geralmente quatro semanas após a primeira imunização, mas diminuem significativamente depois disso. Menos anticorpos significa que é mais provável que as partículas de vírus invasores possam escapar da destruição. Portanto, a imunidade protetora da primeira dose de vacinação geralmente não é muito eficaz ou durável.

Após a primeira exposição, algumas células B e outro tipo de glóbulo branco chamado células T tornam-se células de “memória” que lembram o antígeno – neste caso, a proteína do pico. Na segunda exposição de reforço e nas subsequentes, essas células de memória se reativam rapidamente para produzir anticorpos mais potentes que são capazes de reconhecer e se ligar ao vírus-alvo firmemente. Os anticorpos produzidos pelas células de memória após a dose de reforço aumentam rapidamente em níveis protetores dezenas a centenas de vezes maiores e persistem por mais tempo.

Aberto nesta segunda (11/1), centro de vacinação em Nice, França, recebe população: testes de eficácia e segurança da vacina foram feitos com duas doses (Foto: Arie Botbol/Hans Lucas/AFP)
Aberto nesta segunda (11/1), centro de vacinação em Nice, França, recebe população: testes de eficácia e segurança da vacina foram feitos com duas doses (Foto: Arie Botbol/Hans Lucas/AFP)

Por que o momento da segunda dose é importante?

Ambas as vacinas de mRNA (Pfizer-BioNTech e Moderna), mesmo após a primeira dose, oferecem proteção bem acima do limite mínimo de 50% definido para os critérios de autorização de uso de emergência para vacinas covid-19 com base nos ensaios clínicos. Mas a eficácia dessas vacinas foi testada em um regime de duas doses.

Durante o ensaio da vacina da Pfizer-BioNTech, um participante vacinado e nove que receberam um placebo desenvolveram um caso grave de COVID-19 após a primeira dose. Isso sugere que os participantes desenvolveram proteção parcial logo 12 dias após a primeira dose. No entanto, todos os que receberam a vacina acabaram recebendo sua segunda dose apenas nove dias depois, de modo que não existem dados sobre quanto tempo duraria a proteção da dose única.

Da mesma forma, para o ensaio da vacina da Moderna, parecia haver alguma proteção contra COVID-19 após uma dose; mas os dados limitados não fornecem informações suficientes sobre a proteção de longo prazo além de 28 dias após a dose única. Na ausência de evidências de apoio, nada definitivo pode ser concluído sobre a profundidade ou a duração da proteção após apenas uma única dose das vacinas atualmente autorizadas, ou escolhendo entre os intervalos estudados e mais longos entre as doses.

Embora a eficácia das vacinas de mRNA contra covid-19 sintomático tenha superado as expectativas, os pesquisadores ainda não sabem quanto tempo dura essa proteção. No acompanhamento do ensaio de fase 1 da vacina da Moderna durante os 119 dias após a primeira dose, os anticorpos diminuíram em todos os participantes e os anticorpos neutralizantes – que não apenas ligam o vírus, mas também bloqueiam a infecção – caíram 50% a 75% nas pessoas com mais de 56 anos.

O que pode acontecer se a vacinação for incompleta?

Os vírus sofrem mutação natural devido a erros de cópia em seu código genético à medida que se multiplicam no corpo do hospedeiro ou devido à troca de códigos genéticos entre diferentes vírus que co-infectam o mesmo hospedeiro.

Mas eles também evoluem para escapar da imunidade do hospedeiro, especialmente se competirem contra uma resposta imunológica fraca, mas sustentada. O SARS-CoV-2 já pode estar baixo em indivíduos infectados e aproximadamente 40% a 45% dos infectados não apresentam nenhum sintoma. Em um paciente imunocomprometido – usando terapias para combater doenças auto-imunes ou câncer – o vírus está presente por até 154 dias. Em tais situações, há maiores chances de que uma variante do vírus possa surgir e escapar da resposta imunológica e se espalhar rapidamente. Na verdade, suspeita-se que a nova variante altamente infecciosa do Reino Unido, que também está se espalhando nos EUA (e já chegou ao Brasil), pode ter se originado em um indivíduo cronicamente infectado.

Embora a evolução da resistência à vacina seja considerada muito rara por causa de vacinas eficazes e rigorosamente desenvolvidas, a modelagem matemática sugere que um vírus resistente pode surgir prontamente se a resposta imune for muito fraca para destruir todos os vírus no hospedeiro.

Vacinas apressadas e ineficazes podem produzir anticorpos que não reconhecem e se ligam mal aos vírus, o que pode fazer mais mal do que bem.

Mudar a dosagem para superar a escassez de suprimentos é um debate que desperta polêmica e está apenas começando. No entanto, tomar decisões erradas sem evidências científicas adequadas pode ser contraproducente.

*Sanjay Mishra é cientista e coordenador do projetos do Centro Médico da Universidade de Vanderbilt (Estado do Tennessee, EUA)

(Tradução: Oscar Valporto)

The Conversation

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