As dores crônicas da doença falciforme

A professora Gisele da Silva convive com doença falciforme, a desinformação e o preconceito: ‘Tive chefe que me obrigava a trabalhar no dia da transfusão’ (Foto: Adyel Beatriz)

No Dia Mundial de Conscientização sobre a Doença Falciforme, pacientes lutam por menos desinformação e preconceito

Por Adyel Beatriz | ODS 3 • Publicada em 19 de junho de 2019 - 08:05 • Atualizada em 19 de junho de 2019 - 15:19

A professora Gisele da Silva convive com doença falciforme, a desinformação e o preconceito: ‘Tive chefe que me obrigava a trabalhar no dia da transfusão’ (Foto: Adyel Beatriz)
A professora Gisele da Silva convive com doença falciforme, a desinformação e o preconceito: 'Tive chefe que me obrigava a trabalhar no dia da transfusão'. (Foto: Adyel Beatriz)
A professora Gisele da Silva convive com doença falciforme, a desinformação e o preconceito: ‘Tive chefe que me obrigava a trabalhar no dia da transfusão’ (Foto: Adyel Beatriz)

Pelo menos duas vezes por mês, a professora Gisele da Silva, 29 anos, embarca no trem do ramal Japeri, da Central do Brasil, em direção ao Instituto Estadual de Hematologia Arthur de Siqueira Cavalcanti, o Hemorio. Nesse centro especializado no atendimento às pessoas portadoras de doenças sanguíneas, Gisele faz tratamento da doença falciforme, mais conhecida como anemia falciforme, para enfrentar as dores crônicas, que sofre desde criança.

Desde os cinco anos de idade, quando a doença começou a se manifestar, Gisele se desloca de Paracambi, cidade da região metropolitana do Rio, ao centro da capital fluminense para fazer o acompanhamento. Como milhares de pessoas que convivem com a doença falciforme no Brasil e no mundo, ela cresceu sendo obrigada a lidar, além das dores crônicas, com preconceitos e desinformação. A doença falciforme é uma doença sanguínea crônica, quase sempre sem cura, causada por uma alteração genética na hemoglobina, a HbS.

Os pacientes sofrem com o descaso do Estado e de profissionais da área da saúde no atendimento. Nascida no final dos anos 80, Gisele conta que a doença só foi descoberta, após uma crise. Até seus cinco anos de idade, ninguém havia conseguido diagnosticar suas dores. Ainda hoje, há muito desconhecimento sobre a doença. “No hospital da minha cidade, sempre preciso explicar do que se tratam as crises de dor: Quando eu tenho crises fortes, corro para o hospital. Minha mãe chega explicando que sou falcêmica e a gente tem que explicar para enfermeiros e até médicos, como eles devem proceder. Deixamos o número do Hemorio para eles ligarem e se informarem. Muitas vezes não sabem o que fazer”, conta a professora.

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Segundo Gisele, o Hemorio é sempre o melhor lugar para ir em crises mais graves: o atendimento especializado e a estrutura do hospital fazem muita diferença no tratamento. A viagem de trem até o Hemorio dura em torno entre 1h30 e 2h. “Por Paracambi/Japeri ser a primeira estação do ramal que vai para a Central do Brasil, eu consigo ir sentada. Mas na volta é difícil conseguir sentar. Muitas vezes estou destruída por conta da transfusão sanguínea e tenho que fazer a viagem inteira em pé.”

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No meu primeiro emprego, não tive nenhum problema com a chefia, mas sofri com preconceito dos outros funcionários. Muitos diziam que a minha contratação foi um erro porque eu vivia doente. Em um outro emprego, a minha chefe não entendia eu ter de ir com frequência ao hospital. Nos dias de transfusão, eu era obrigada a ir trabalhar

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A doença falciforme é uma das doenças hereditárias com mais ocorrências no Brasil, sobretudo nas regiões que receberam maciços contingentes de escravos africanos – o gene da hemoglobina HbS teve origem na África. Na população brasileira, a doença falciforme continua sendo predominante entre negros e pardos; porém, devido aos processos de miscigenação, também está presente em pessoas de variados  genótipos/fenótipos.

A Assembleia Geral das Nações Unidas escolheu o dia 19 de junho como o Dia Mundial de Conscientização sobre a Doença Falciforme, com o objetivo de dar visibilidade e reduzir as taxas de morbidade e mortalidade da doença. Apesar de existirem cerca de 60 mil pessoas no Brasil vivendo com Doença Falciforme, poucas pessoas conhecem ou já ouviram falar sobre ela.

Alteração genética

A doença falciforme é causada por uma alteração genética, caracterizada por um tipo de hemoglobina mutante, chamada de hemoglobina S (ou HbS). Essa hemoglobina mutante provoca a distorção das hemácias sanguíneas. Desse modo, a pessoa que recebe um gene do pai e outro da mãe para produzir a hemoglobina S nasce com um par de genes SS: isto é, nasce sendo portadora da doença falciforme. O conjunto das formas sintomáticas é conhecido como Doença Falciforme, tendo tipos de manifestação, como a anemia falciforme, por exemplo.

[g1_quote author_name=”Joice Aragão” author_description=”Médica e coordenadora da Política Nacional de Atenção Integral às Pessoas com Doença Falciforme de 2005 a 2015″ author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]

Foi uma luta muito grande para conseguirmos mais direitos e atenção para as pessoas com doença falciforme. Enfrentamos de cara um sistema que não queria olhar para pessoas negras e pobres. Já ouvi muito que a doença falciforme não era doença importante e que não era responsabilidade do Ministério da Saúde

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Segundo dados do Ministério da Saúde, a hemoglobina S está presente em 4% a 6% da população brasileira: a probabilidade é de que nasçam por volta 3.500 crianças com doença falciforme por ano. A doença falciforme tem sintomatologia muito variada com alta mortalidade e morbidade. Vivendo com dores crônicas, os pacientes – e também seus parentes – têm a rotina alterada, ocasionando, em muitos casos, problemas psicológicos e emocionais. Os índices também revelam que a incidência média da DF no Brasil é de 1 em cada 2.700 recém-nascidos  vivos.  A  maior é observada  na  Bahia  (1 em cada 900), estado com grande número de afro-descendentes.

A única opção de cura para a doença falciforme é o transplante de medula óssea, que é oferecido pelo SUS em casos mais graves. O tratamento de redução de danos aos pacientes é feito com o uso de vacinação e penicilina nos primeiros cinco anos de vida, para evitar infecções, uso regular de ácido fólico, medicamentos para a dor, uso de hidroxiuréia e, em alguns casos, como o de Gisele, transfusões de sangue de rotina.

Doença falciforme no SUS

Das primeiras pesquisas sobre a doença falciforme até a implementação de políticas públicas voltadas aos pacientes, houve um hiato de mais de 90 anos sem nenhum tipo de ação dirigida ou atenção especializada. Esse intervalo, superior ao de outras doenças com menor incidência, deixa transparecer o racismo estrutural sofrido por esses pacientes. O primeiro passo rumo à construção de um programa de atenção integrada à doença falciforme foi dado com institucionalização do Programa Nacional de Triagem Neonatal (PNTN) no Sistema Único de Saúde do Brasil, em 2001, incluindo a triagem para as hemoglobinopatias (doenças ocasionadas por deficiência na formação da hemoglobina).

Com o PNTN, a doença falciforme passou a ser descoberta no teste do pezinho. Antes disso, muitas pessoas descobriam a doença após crises graves, ou depois de muito tempo de vida. Há casos de pessoas que só descobriram a doença falciforme com mais de 40 anos de idade. Só em 2005, foi criada a Política Nacional de Atenção Integral às Pessoas com Doença Falciforme do Ministério da Saúde. “O Programa Anemia Falciforme começou a existir porque, além de outros motivos, precisávamos normatizar e protocolar o atendimentos às pessoas com doença falciforme. Por muito tempo, a doença falciforme não tinha protocolo, muitos remédios que são usados para o tratamento da doença não podiam distribuídos pelo SUS e Anvisa”, explica a médica pediatra Joice Aragão, coordenadora da  Política Nacional de Atenção Integral às Pessoas com Doença Falciforme de 2005 a 2015.

A médica explica que foi feito um esforço enorme para tentar tirar a doença falciforme da invisibilidade. “Foi uma luta muito grande para conseguirmos mais direitos e atenção para as pessoas com doença falciforme. Enfrentamos de cara um sistema que não queria olhar para pessoas negras e pobres. Já ouvi muito que a doença falciforme não era doença importante e que não era responsabilidade do Ministério da Saúde”, critica Joice Aragão.

Quando não tratada, a doença falciforme pode levar o paciente a morte até os 5 anos de idade. No entanto, através de políticas públicas, a história das pessoas com a doença começou a mudar. Foram criadas centros de referência e linhas de cuidado para a doença, a partir de um protocolo básico. No SUS, a doença falciforme passou a pertencer a Atenção Básica juntamente a outras doenças que faziam parte do Programa de Saúde da População Negra. “Essa linha de cuidado normatizada pelo SUS de atenção básica às pessoas com doença falciforme deu suporte para a sobrevivência e qualidade de vida de muita gente que sofria”, explica a ex-coordenadora da Política Nacional.

Crises de dor, acompanhamento e saúde mental

A rotina de uma pessoa que tem doença falciforme é constantemente alterada em decorrência das crises de dor. Escola, faculdade, vida social. Os hábitos de autocuidado e de prevenção são importantes para evitar cenários mais graves, e, desse modo, uma vida de preservação faz com que o cotidiano de quem tem doença falciforme seja muito diferente de quem não tem.

Gisele da Silva conta que sua infância não foi igual a de uma criança comum: “Com 11 anos, as crises da falciforme começaram a amenizar. eu parei de ficar internada com frequência e foi só com essa idade que tive o prazer de jogar uma queimada, uma bandeirinha, com quase 13 anos.  A dificuldade que eu tinha enquanto criança era a de não poder fazer o simples, de brincar como toda criança. Eu não podia correr. Se eu corresse, entrava em crise minutos depois”, conta. “Com 13 anos, eu pensava em brincar o que não tinha brincado; minhas amigas já estavam com seus primeiros namoradinhos. Eu fui a última a das amigas a dar o primeiro beijo. O preconceito com a doença falciforme está presente em diversas esferas da vida social, não acontece apenas no atendimento”, completa.

Durante parte da vida, Gisele estudou em um leito de hospital. Sua mãe pegava os cadernos emprestados de suas amigas, copiava as lições e dava aula para ela enquanto se recuperava de cirurgias nas duas pernas. Hoje, Gisele é formada em história, estuda pedagogia na UERJ e já atua como professora.

[g1_quote author_name=”Leandro da Conceição” author_description=”Técnico em gestão de TI” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]

Eles acham que a gente inventa a dor só para tomar remédio. Muitas vezes, eu prefiro me cuidar em casa porque nem sempre sou bem atendido no hospital. Tomo os remédios para dor e muita água em casa. Só vou quando a crise está muito forte

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O mercado de trabalho pode ser um ambiente muito hostil. A inserção de pessoas com doença falciforme nem sempre é simples, pois exige que haja certa flexibilidade para seguir o tratamento e não acabar sobrepondo muito esforço físico e emocional no ambiente de trabalho. “No meu primeiro emprego, não tive nenhum problema com a chefia, mas sofri com preconceito dos outros funcionários. Muitos diziam que a minha contratação foi um erro porque eu vivia doente. Em um outro emprego, a minha chefe não entendia eu ter de ir com frequência ao hospital. Nos dias de transfusão, eu era obrigada a ir trabalhar”, conta Gisele.

Leandro da Conceição, diagnosticado com doença falciforme aos dois anos: ‘ Muitas vezes, eu prefiro me cuidar em casa porque nem sempre sou bem atendido no hospital’ (Foto: Acervo pessoal)

As dificuldades de Leandro de Oliveira da Conceição, de 31 anos, não foram diferentes. Morador da Rocinha, na zona sul do Rio, desde que nasceu, ele foi diagnosticado com doença falciforme aos dois anos de idade: “Minha irmã, que é dois anos mais velha, nasceu com traço falciforme (sem sintomas). Eu nasci com a doença. Minha mãe nem sabia da existência dessa doença, só foi saber sobre quando me teve”, relata Leandro, que faz acompanhamento no Hospital Federal da Lagoa, também na Zona Sul.

A doença falciforme começou a complicar a vida de Leandro principalmente a partir dos 16 anos. Passou por diversas internações e procedimentos cirúrgicos no quadril e vesícula. Apesar do cotidiano difícil e das muitas idas ao hospital, Leandro segue a vida estudando e se movimentando. Está desempregado, mas se formou em  em gestão de TI, tem curso técnico de segurança do trabalho e faz outros cursos.

No atendimento, Leandro já observou algumas atitudes de preconceito e diz que a dor dos pacientes é muitas vezes subestimada. A rotina intensa de dor e hospitais faz com que haja um grande estresse emocional. “Eles têm um pouco de descaso. Acham que a gente inventa a dor só para tomar remédio. Muitas vezes, eu prefiro me cuidar em casa porque nem sempre sou bem atendido no hospital. Tomo os remédios para dor e muita água em casa. Só vou quando a crise está muito forte”, descreve Leandro.

No caso de Gisele, ela diz que sempre é bem atendida no Hemorio, mas que houve um caso específico que ficou marcado em sua memória: “Quando eu era pequena, estava internada e chorando muito, um enfermeiro sem paciência simplesmente tampou a minha boca com esparadrapo e me mandou ficar quieta. Eu estava no meio de uma crise. Minha mãe olhou a situação, nervosa, e tirou o esparadrapo da minha boca”, conta.

Apesar de tudo, Gisele e Leandro seguem a vida estudando, trabalhando e se cuidando. O controle da dor caminha junto com uma vida que vai além da doença falciforme. A sociedade, juntamente com o Estado, precisa enxergar e cuidar de Giseles e Leandros – são, pelo menos, 60 mil brasileiros que vivem com a doença, mais 3.500  que nascem com ela por ano. Políticas públicas de atenção e cuidado servem para reduzir danos, promover a qualidade de vida e  produzir pesquisas para novos tratamentos. Em 2019, no Dia Mundial do Mundial de Conscientização sobre a Doença Falciforme, ainda há muito o que se falar sobre a doença, discussões que perpassam questões de classe e raça.

Adyel Beatriz

Paulistana, no Rio desde 2016. Apreciadora de longas viagens de ônibus e amante do desconhecido. Estudante de jornalismo da UFRJ, costuma escrever sobre os incômodos do mundo.

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