Casale Monferrato, a cidade que enfrentou a Eternit

Com mais de 500 casos de câncer registrados em 10 anos, moradores lutam para amenizar a dor e o sofrimento

Por Janaína Cesar | ODS 3 • Publicada em 16 de maio de 2018 - 08:11 • Atualizada em 17 de maio de 2018 - 13:54

No lugar da antiga fábrica da Eternit em Casale Monferrato foi construído o Parque Eternot. Expressão que significa "Eternit, não". Foto Divulgação
No lugar da antiga fábrica da Eternit em Casale Monferrato foi construído o Parque Eternot. Expressão que significa “Eternit, não”. Foto Divulgação

A história de Casale Monferrato poderia servir de pano de fundo para um romance trágico sobre uma cidade ambientalmente destruída e uma população fortemente abalada pelos casos de  câncer. Mas a história dos habitantes de Casale vai além do sofrimento e da dor da perda, ela foca na resistência de cidadãos que, cansados de contarem seus mortos, enfrentaram um gigante chamado Eternit. Algumas batalhas foram vencidas, mas a luta por justiça continuará até que os culpados sejam condenados por todos os crimes que cometeram.

Os caminhões da Eternit percorriam as ruas espalhando o pó branco pelas esquinas da cidade. Os operários já morriam, mas não existia ainda uma relação direta com a exposição ao amianto. Fomos tomando consciência a partir do momento em que as pessoas foram tombando sem deixar um respiro de trégua

A fábrica da Eternit funcionou no local entre 1906 e 1987 e foi, por anos, o único sonho de estabilidade e segurança financeira para centenas de operários.  A cidade também recebia o seu quinhão. Junto com os impostos vinha, gratuitamente, o chamado “polverino bianco” (poeirinha branca). Esse descarte do processo de produção era usado no asfaltamento, na construção de muros e até nas floreiras que enfeitavam as praças naqueles tempos de glória.  Nem mesmo a igreja ficou de fora. Tudo em Casale Monferrato era construído com amianto ou com o tal polverino (descarte).

Seus proprietários, os bilionários suíços da família Schmidheiny, “sempre souberam da periculosidade do material, mas nunca informaram aos trabalhadores e muito menos à população. Isso porque, já nos anos 1960, a comunidade científica sabia que o amianto era um produto cancerígeno”, diz Bruno Pesci, sindicalista e um dos representantes da Associação de Familiares e Vítimas do Amianto (Afeva).  Segundo ele, a Eternit é responsável pela morte de quase 3 mil pessoas no país, entre trabalhadores e moradores de áreas próximas às quatro fábricas espalhadas pela Itália. De acordo com o Instituto Superior Sanitário Italiano (ISS), somente na região de Casale Monferrato foram registrados 561 casos de mesotelioma pleurico entre  2003 e 2014.

Alguns dos muitos processos contra a Eternit na Itália. Foto reprodução
Alguns dos muitos processos contra a Eternit na Itália. Foto reprodução

Bruno conta que centenas de caminhões entravam e saíam da fábrica carregando toneladas de sacos de amianto sem nenhuma proteção. “Eles percorriam as ruas espalhando o pó branco pelas esquinas da cidade”, diz. “Os operários já morriam, mas não existia ainda uma relação direta com a exposição ao amianto. Fomos tomando consciência a partir do momento em que as pessoas foram tombando sem deixar um respiro de trégua”, conta Pesci, que começa a relatar casos e nominar pessoas uma atrás da outra, como Ana Maria, que levava a filha para o trabalho, a amamentava em meio à poeira e morreu de asbestose.

“Asbestose” era o nome do fantasma que inicialmente assombrava somente os operários da Eternit que haviam tido um contato direto com a fibra. Esse tipo de tumor também é conhecido como pulmão de pedra porque provoca o endurecimento do órgão, impedindo a respiração e causando a morte por asfixia. Com o tempo, pessoas que nunca haviam colocado o pé dentro da fábrica também começaram a adoecer, mas de mesotelioma, outro tipo de tumor que tem um longo período de latência — a doença pode se manifestar até 30 ou 40 anos depois da exposição ao amianto.  Segundo um relatório do Observatório Nacional do Amianto, o pico da doença deve ocorrer entre 2020 e 2030. “Levando em conta o longo tempo de latência e o período de maior uso e exposição ao material (1960 a 1985), prevê-se que o maior número de patologias relacionadas ao amianto ocorrerá entre 2020 e 2030.”

Um tiro no coração

Dizem que morrer de mesotelioma é como tomar um tiro no peito e descobrir depois de trinta anos que a bala perfurou o coração. Bem sabe Giovanni Cappa, 70 anos, um artesão aposentado que há quatro anos descobriu ser portador das células malditas, como ele define a doença. “Não fui fatalista, podia esperar um fim de vida desses, porque em Casale existe essa realidade que não depende de nós, aqui todos acertaram os ponteiros da vida com a morte e perderam um amigo ou familiar”, diz Giovanni.  “Vi minha mãe definhar por causa do mesotolioma. Ela viveu um ano e meio com a doença”, conta. Sua mãe era professora, morreu aos 82 anos e, assim como o filho, não havia tido nenhum contato com a fábrica do veneno.

Durante o relato da sua dor, sorri para lembrar ao mundo e a si que ainda está vivo.  “Agora sou eu que estou fazendo esta viagem e espero continuar, mas essa doença pode explodir a qualquer momento, basta um exame para perceber que ela começou a andar”, diz Giovanni, que mesmo diante de sua tragédia, consegue enxergar outras injustiças no mundo. “Eu sou otimista, talvez otimista seja uma palavra diversa, me sinto vítima, porém as verdadeiras vítimas são as crianças que morrem afogadas (no Mar Mediterrâneo) quando vêm para cá nos barcos”, diz emocionado.

Juliana Busto, presidente da Associação de Vítimas do Amianto. Foto Janaína Cesar
Juliana Busto, presidente da Associação de Vítimas do Amianto. Foto Janaína Cesar

Eternit, eternità, eternidade

A palavra “Eternit” vem do latim e significa “eternidade”. Talvez para representar a durabilidade do material. A questão, na verdade, pouco importa aos casaleses. Eles lutam para dar um fim ao fantasma do amianto que ronda a cidade.  Com seus 34 mil habitantes, Casale continua contando os mortos. Todos os anos cerca de 50 pessoas adoecem de amianto.  “Toda semana recebemos alguém aqui em busca de ajuda:  um doente ou um familiar”, diz Giuliana Busto, há dois anos presidente da Afeva. Localizada no fundo do corredor do segundo andar de um prédio de tijolos no centro da cidade, a associação vem desempenhando um papel importante na luta dos casaleses contra o amianto.

Giuliana perdeu o irmão: um bancário, esportista e doador de sangue, que de repente sentiu uma forte dor nas costas. Morreu aos 33 anos de mesotelioma. “Naquele período não se falava em vítimas do amianto que não fossem os trabalhadores da fábrica. O que fez com que os sintomas de meu irmão não fossem considerados. Ele faleceu cinco meses após sentir aquela dor”, conta a presidente. “Quando acontece um desastre desses, as pessoas reagem de diferentes maneiras”, diz.

Assunta Prato, 66 anos, integrante da Afeva há 21 anos, diante da morte do marido resolveu lutar. “Ninguém esperava que um homem de 49 anos morresse de amianto sem nunca ter colocado os pés na fábrica. Quando ele morreu eu podia escolher passar a vida chorando ou reagir; escolhi lutar”, conta. Professora aposentada, percebeu que o tema ainda era pouco conhecido entre os jovens, assim resolveu fazer um livro ilustrado contando a história da Eternit, usando uma linguagem que os adolescentes entendiam. Alguns anos depois, escreveu um livro infantil e hoje coordena a rede de colaboração que ajudou a criar entre a escola e a associação.

Foi como levar um tapa na cara. A dor maior ainda foi ter que ouvir do procurador-geral Francesco Iacoviello que entre o direito e a justiça havia prevalecido o direito

O processo

As vítimas e familiares de vítimas entraram com um processo contra os donos da Eternit, que foram acusados de desastre ambiental doloso permanente e omissão dolosa. Foram condenados em primeira instância e segunda instância a 16 e 18 anos respectivamente (na apelação aumentaram a pena em dois anos). Tudo parecia percorrer como desejavam as vítimas. A justiça estava sendo feita.  Mas em 2014, quando o caso chegou na Corte de Cassação, o crime estava prescrito.  “Foi como levar um tapa na cara”, conta Giuliana. “A dor maior ainda foi ter que ouvir do procurador-geral Francesco Iacoviello que entre o direito e a justiça havia prevalecido o direito.”

“Tudo prescrito, era uma brincadeira? O dano ambiental existiu e não foi cancelado com o fechamento da fábrica em 1987”, diz o sindicalista Pesci.  “Agora partimos para um processo penal”, conta. “O caso foi dividido em quatro e mandado para procuradorias diferentes. Começaremos tudo do início outra vez, não nos renderemos.  A justiça tem que ser feita e nós precisamos ser ouvidos”, declara Pesci.

A cidade, que ainda sonha que os culpados paguem pelas vidas roubadas, obteve uma significativa vitória. No lugar da fábrica que foi demolida nasceu o parque Eternot. O governo liberou 65 milhões de euros para serem usados na bonificação da cidade. Tetos em amianto de todas as escolas, hospitais e prédios públicos foram trocados e o processo de bonificação continua. Casale quer se liberar totalmente do amianto até 2020.

Assunta, Giuliana e Giovanni se uniram a centenas de familiares de vítimas do amianto e decidiram lutar, cada um a seu modo. Giuliana representa institucionalmente as vítimas; Assunta e Giovanni, que carrega no corpo as células malditas, são exemplos de combatentes.  “Casale é uma cidade que teve uma reação incrível de luta ao amianto e continua tendo, isso porque o número de mortes por mesotelioma é realmente alto, e fez com que fosse criada essa consciência geral, o que é uma coisa muito particular, única no mundo”, diz Giovanni.

A persistência dos casaleses na batalha por justiça pode ser um modelo a ser seguido por cidades brasileiras, visto que em novembro de 2017 o Supremo Tribunal Federal proibiu a extração, a industrialização, a comercialização e a distribuição do material no país.

Janaína Cesar

Formada pela Universidade São Judas Tadeu (SP), trabalha há 17 anos como jornalista e vive há 15 na Itália, onde fez mestrado em imigração, na Universidade de Veneza. Escreve para Estadão, Opera Mundi, IstoÉ e alguns veículos italianos como GQ, Linkiesta e Il Giornale di Vicenza. Foi gerente de projetos da associação Il Quarto Ponte, uma ONG que trabalha com imigração.

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