Projeto promove certificação inédita de peixe orgânico

Pesquisadores do Instituto Federal de Santa Catarina cultivam jundiás e carpas, com cuidados especiais e alimentados com plantas sem agrotóxicos

Por Letícia Maria Klein | ODS 2 • Publicada em 6 de agosto de 2019 - 08:00 • Atualizada em 23 de setembro de 2021 - 21:20

Despesca - captura em viveiro - dos peixes orgânicos do projeto do IFSC: certificação inédito (Foto: Divulgação/IFSC
Despesca – captura em viveiro – dos peixes orgânicos do projeto do IFSC: certificação inédita (Foto: Divulgação/IFSC)

Já começou a época da colheita de morango orgânico, aquele criado sem nenhum veneno. Nas feiras de produtores locais e nos supermercados, encontramos cada vez mais opções de alimentos orgânicos, de frutas e verduras a massas e bolachas e até carnes vermelhas e brancas, todos com algum tipo de certificação. Menos o peixe. Até o ano passado. Um projeto do Instituto Federal de Santa Catarina (IFSC) conseguiu certificar a produção de peixe orgânico pela primeira vez no país.

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O nome é grande: Projeto de Assistência Técnica e Extensão Rural para a Certificação da Piscicultura Orgânica com Bases Agroecológicas na Região de Gaspar/SC. A ideia é simples: estudar o manejo do peixe orgânico para conseguir a certificação do produto. O projeto foi realizado graças a uma parceria: IFSC Campus Gaspar, Secretaria de Agricultura e Aquicultura do município de Gaspar, Dasbier Gastronomia e Lazer e Ecocert Brasil.

A ideia surgiu no instituto a partir do Núcleo de Pesquisa Aplicada em Piscicultura com Enfoque Agroecológico, que escreveu o projeto para uma chamada do CNPq em 2014 sobre manejos agroecológicos. Em maio de 2016, eles começaram a preparação do tanque e, 27 meses depois, em julho de 2018, fizeram a despesca de três mil quilos de peixe orgânico, com uma média de meio quilo cada um.

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Para que o peixe possa ser certificado como tal, existe uma série de pré-requisitos, como a alimentação, que precisa ser orgânica: cultivada e produzida sem agrotóxico. Como não existe ração orgânica para peixe (farelo de arroz, no caso), eles tiveram que plantar capim para alimentar a principal espécie cultivada: a carpa-capim, que respondia por 60% da produção; os outros 40% eram jundiá. As duas espécies foram escolhidas por suas características biológicas e inter-relacionais. A carpa consome capim e o jundiá se alimenta de microrganismos, que surgem a partir dos dejetos da carpa, além de serem muito consumidos na região.

Os projetos que fazemos só são possíveis graças ao fomento e impulso do governo. Já tivemos que parar outra pesquisa por falta de verba. Se o recurso diminui, precisamos usar tudo o que vem para manter a instituição funcionando. Aqui na região, a agricultura familiar é muito forte. A pesquisa para torná-la rentável deveria ser prioridade

Apesar de existir a produção de peixe verde no estado, ainda não havia, no Brasil, um estudo de como fazer a certificação do peixe, declarando-o como orgânico. O objetivo dos pesquisadores, portanto, era analisar a viabilidade econômica desse processo e a possibilidade, a partir dele, de auto-renda para famílias produtoras. Plantando a alimentação dos próprios peixes, elas deixariam de gastar com a compra de ração, um item que responde por 70% dos gastos na produção (entre R$ 50 e R$ 60 mil por hectare por ano), além de terem um suprimento de proteína mais saudável, conforme explica Graciane Regina Pereira, docente do IFSC responsável pela pesquisa.

Amostras de jundiá retirados do tanque do IFSC: certificação checa origem dos peixes, alimentação, sanidade, manejo,instalações e ambientes de cultivo e medidas para evitar a contaminação (Foto: Divulgação/IFSC)
Amostras de jundiá retirados do tanque do IFSC: certificação checa origem dos peixes, alimentação, sanidade, manejo, instalações e ambientes de cultivo e medidas para evitar a contaminação (Foto: Divulgação/IFSC)

“Os resultados do projeto mostram que a certificação do peixe orgânico é possível e dá para fazer. O peixe cresce sendo tratado com forrageiras (capim), dentro de um sistema de policultivo, com espécies que se alimentam de vegetais e outras que consomem fitoplâncton”, afirma a professora. Para Henrique da Silva Pires, engenheiro agrônomo da Secretaria de Agricultura e Aquicultura que participou da pesquisa, os resultados são positivos. “Agora sabemos como é um plano de manejo para produção orgânica de peixe e constatamos que o apelo orgânico agrega valor tanto para o produto quanto para o turismo”, avalia.

Nova metodologia para certificação

O produto da despesca – recolhimento dos peixes criados em viveiros ou açudes – foi vendido durante um evento de fim de semana na Dasbier Gastronomia e Lazer, onde o experimento foi realizado. Os clientes tinham a opção de comprar o peixe vivo na feira ou consumi-lo em pratos do cardápio. Como produtor de peixes e empresário, Leandro Schmitt, proprietário, conta que decidiu participar do projeto para ver qual seria o resultado, pois o ramo de alimentos orgânicos está crescendo. O retorno dos clientes foi positivo. “A feira de peixe vivo orgânico atraiu mais pessoas. Elas acharam muito interessante, ficaram curiosas com a novidade”, afirma. A propriedade conta com restaurante e pesque-pague. Como o local já possui produção de peixes de forma não orgânica, com ração, a pesquisa também comprovou que é possível ter os dois sistemas no mesmo terreno, sendo um certificado e o outro, não.

As pessoas não compreendem que o peixe, apesar de ser cultivado na água, também está inserido na cadeia de produção de alimentos, pois a ração vem de algum lugar e foi produzida à base de veneno. Para criar o mercado, é preciso que o consumidor desenvolva essa consciência

Como o processo de certificação nunca tinha sido feito antes, a Ecocert desenvolveu uma metodologia nova para atender o caso. A empresa certificadora de alimentos orgânicos usou como base a IN 28/2011 do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, sobre Produção de Organismos Aquáticos. “Num processo de certificação, nós comparamos a atividade com a norma, propomos melhorias e emitimos o certificado, que é válido por um ano”, conta Daniel Araujo, responsável de Certificação & Projetos da Ecocert. O experimento do IFSC recebeu o certificado nos dois anos em que ficou ativo, até julho do ano passado.

Além dos critérios gerais de produção orgânica, o processo de certificação na aquicultura tem seis módulos de avaliação: composição do plantel (origem dos animais, métodos de reprodução), alimentação (nutrição adequada, origem da ração), sanidade (substâncias e práticas para garantir a saúde dos peixes), manejo (bem-estar dos animais, transporte, abate, densidade de cultivo), instalações e ambientes de cultivo (limpeza, qualidade da água, destinação dos dejetos) e medidas de separação para evitar a contaminação do cultivo orgânico. “O projeto foi avaliado positivamente. Foram feitos ajustes ao longo dos anos, em relação à ração e tanque, mas foram coisas pontuais. De modo geral, tudo foi muito bem organizado”, analisa Daniel, que acompanhou o processo.

Carpa passando por processo de medição: falta de ração orgânica atrasou crescimento dos peixes (Foto: Divulgação/IFSC)
Carpa passando por processo de medição: falta de ração orgânica atrasou crescimento dos peixes (Foto: Divulgação/IFSC)

Porém, por ser um estudo inédito no Brasil, os pesquisadores encontraram dificuldades e esbarraram na viabilidade econômica. “A contratação de mão de obra para cuidar do sistema (funcionários do restaurante) e o custo da certificação privada não compensaram o investimento e o retorno, no nosso caso, por causa do tamanho do tanque, que tinha 1.700m²”, explica Henrique.

Para Leandro, o crescimento lento dos peixes foi outro fator que reduziu a rentabilidade do projeto. Para crescer mais rápido, os peixes precisam de ração, que é o farelo de arroz. A legislação de orgânicos permite que 20% da ração seja convencional. Como não existe farelo de arroz orgânico na região, essa era a medida máxima de ração que os peixes podiam comer, sendo que o resto era capim. A quantidade, que se provou pouca, acabou retardando o crescimento deles. Havendo mais ração orgânica e mais canais de venda, Leandro tem interesse em voltar a cultivar peixe orgânico no futuro.

“Para valer a pena, a área de produção precisa ter no mínimo um hectare e a mão de obra deve ser familiar. Outro caminho para diminuir gastos é a certificação participativa, feita por associação de produtores”, complementa Henrique. Nesse formato, não existe o custo da empresa certificadora, pois a avaliação é feita pelos pares, e o processo é fiscalizado pelos órgãos competentes. “O que também aumentaria a receita é começar o cultivo na época certa e introduzir peixes maiores, não alevinos de 10 gramas, como fizemos”, acrescenta Graciane.

Dificuldades de financiamento

A intenção inicial era colocar mais duas espécies: carpa-cabeçuda e carpa-húngara, mas quando começaram, em maio, a temperatura mais fria não permitiu. No outono-inverno, o crescimento dos peixes é mais lento, o que também influenciou a rentabilidade do sistema, aliado à baixa quantidade de insumos orgânicos. Eles teriam começado antes, mas os recursos do governo federal chegaram atrasados. “Do ponto de vista ambiental e de cultivo, o peixe orgânico é completamente viável, mas temos que eliminar as dificuldades e replanejar para acertar na próxima vez”, conclui Graciane. Eles ainda estão aguardando a próxima vez. A professora diz que a demanda de mão de obra e de assistência técnica da produção orgânica de peixe precisa de um edital de fomento que banque os custos, mas não há previsão de novos editais.

Tanque dos peixes orgânicos com 1700 metros quadrados: pesquisadores temem corte de verbas (Foto: Divulgação/IFSC
Tanque dos peixes orgânicos com 1.700 metros quadrados: pesquisadores temem corte de verbas (Foto: Divulgação/IFSC)

O corte de verba para instituições de ensino federais piora a situação. “Os projetos que fazemos só são possíveis graças ao fomento e impulso do governo. Já tivemos que parar outra pesquisa por falta de verba. Se o recurso diminui, precisamos usar tudo o que vem para manter a instituição funcionando, porque a prioridade é o ensino”, explica Graciane. “Aqui na região, a agricultura familiar é muito forte. A pesquisa para torná-la rentável deveria ser prioridade”, analisa.

As vantagens de investir em pesquisas na área da produção orgânica e no mercado em si são muitas. Segundo Daniel, o segmento de orgânicos cresce em média 20% ao ano no Brasil. Além da produção ser sustentável e agroecológica, os insumos são naturais e produto final não tem contaminação, garantindo segurança alimentar e saúde para pessoas e ecossistemas. Em termos de certificação, os benefícios para o produtor incluem poder anunciar o produto como orgânico, agregando valor para um ganho maior, e viabilizar o acesso ao mercado consumidor de orgânicos.

Embora as vantagens sejam claras, o negócio de peixes orgânicos ainda é incipiente. “As pessoas não compreendem que o peixe, apesar de ser cultivado na água, também está inserido na cadeia de produção de alimentos, pois a ração vem de algum lugar e foi produzida à base de veneno. Para criar o mercado, é preciso que o consumidor desenvolva essa consciência”, avalia Daniel. Para contribuir com isso, o projeto de certificação do peixe orgânico em Santa Catarina já foi apresentado no próprio estado, na Bahia, no Paraná e até na Costa Rica. A próxima parada será XI Congresso Brasileiro de Agroecologia, na Paraíba. A realização e a divulgação de projetos como esse contribuem para a expansão de sistemas agroecológicos e a conscientização em prol da sustentabilidade.

81/100 A série #100DiasDeBalbúrdiaFederal pretende mostrar, durante esse período, a importância  das instituições federais e de sua produção acadêmica para o desenvolvimento do Brasil

Letícia Maria Klein

Jornalista formada, mora em Blumenau, Santa Catarina. É colaboradora do Um Só Planeta.

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