Aumento do preço global de alimentos inviabiliza meta de fome zero até 2030

Jovem ajuda a família a preparar a terra para a plantação. O Sudão do Sul, onde vivem, é um dos países mais afetados pela fome no mundo. Foto Albert Gonzalez Farran/AFP

Ao invés de erradicar a fome, mundo sofre com o aumento recorde dos preços e com o agravamento da insegurança alimentar

Por José Eustáquio Diniz Alves | ODS 2 • Publicada em 8 de janeiro de 2024 - 17:01 • Atualizada em 16 de fevereiro de 2024 - 07:59

Jovem ajuda a família a preparar a terra para a plantação. O Sudão do Sul, onde vivem, é um dos países mais afetados pela fome no mundo. Foto Albert Gonzalez Farran/AFP

O preço mundial dos alimentos caiu em 2023 em relação ao recorde de 2022, mas continua em patamar elevado. A Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) divulgou, no dia 05 de janeiro de 2024, os novos dados do Índice de Preços dos Alimentos (FFPI). Os números dos últimos três anos mostram que a carestia é o grande desafio da década.

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O gráfico abaixo mostra o índice de preço real dos alimentos da FAO, de 1961 a 2023, considerando como referência a média de 2014 a 2016, com valor 100. Nota-se que a média decenal do preço dos alimentos estava acima de 100 nas décadas de 1960 e 1970, ficou abaixo de 100 nas três décadas seguintes e voltou a superar a média de 100 na década passada. Os valores mais baixos foram registrados na última década do século XX, mas os preços estão apresentando tendência de alta nos anos 2000. O valor do FFPI registrado em 2022 (140,6 pontos) foi o mais elevado em mais de 100 anos, desde os recordes alcançados na Primeira Guerra Mundial (1914-1918).

Para além da variação de um ano específico, o aspecto mais preocupante reside no fato de que a média real do Índice de Preços dos Alimentos (FFPI) no triênio 2021-2023 atingiu a marca mais elevada dos últimos 60 anos, equiparando-se à média do triênio 1973-1975. Os altos preços observados no triênio da década de 1970 foram diretamente influenciados pela Guerra do Yom Kippur (Guerra Árabe-Israelense de 1973) e pelo subsequente aumento nos preços do petróleo.

No cenário atual, os altos valores dos preços dos alimentos foram determinados pela quebra das cadeias produtivas decorrente da pandemia da covid-19, pela invasão militar da Ucrânia pela Rússia e por todas as consequências globais decorrentes da crise climática e ambiental.

As estimativas indicam que o Índice de Preços dos Alimentos deve se manter em um patamar elevado nos próximos anos, indicando que a média decenal do FFPI deve alcançar o seu maior valor na década atual. O aumento do preço dos alimentos é um reflexo da insustentabilidade entre o aumento da demanda alimentar provocada pelo crescimento da população e da economia e as dificuldades pelo lado da oferta em decorrência da degradação ambiental e dos efeitos do aquecimento global.

O ano de 2023 foi o mais quente desde o período interglacial do Eemiano, que ocorreu entre 130 mil anos e 115 mil anos atrás. A anomalia da temperatura ficou próxima de 1,5º C em relação ao período pré-industrial (geralmente considerado 1850-1900), atingindo de maneira antecipada o limite mínimo estabelecido no Acordo de Paris.

Toda a população mundial será afetada por ondas letais de calor e bilhões de pessoas poderão ter o padrão de vida reduzido pelos efeitos da emergência climática e da perda de biodiversidade. Os consumidores de baixa renda dos países pobres, que gastam mais em alimentos como proporção do orçamento familiar, serão os mais afetados pelo aumento do preço dos alimentos.

A persistência do crescimento demoeconômico global e a interseção de crises econômicas e ambientais, juntamente com o aumento de conflitos militares, têm minado as aspirações da Organização das Nações Unidas (ONU) para forjar um mundo melhor durante o segundo quindênio (2015-2030) do século XXI, conforme discutido no artigo intitulado “Os 70 anos da ONU e a agenda global para o segundo quindênio (2015-2030) do século XXI” (Alves, 2015).

Acabar com a fome, melhorar a nutrição e alcançar a segurança alimentar até 2030

O Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS) nº 2, da Agenda 2030 da ONU, tem como propósito acabar com a fome até 2030 e garantir o acesso de todas as pessoas, em particular os pobres e pessoas em situações vulneráveis, incluindo crianças e idosos, a alimentos seguros, nutritivos e suficientes durante todo o ano.

Porém, a meta da fome zero está seriamente ameaçada pela crise climática e ambiental, pelas guerras e pelo aumento do preço dos alimentos. O gráfico abaixo, do site Our World in Data, com dados do Banco Mundial, mostra que a proporção da população global subnutrida estava diminuindo entre 2001 e meados da década passada, mas inverteu a tendência e passou a subir nos anos mais recentes, especialmente depois da pandemia da covid-19 e suas consequências.

A proporção mundial de pessoas subnutridas (proxy para medir a fome) estava em 13,1% em 2001, caiu para menos de 8% até 2018 e subiu para 9,3% em 2020 (último dado disponível). Na África Subsaariana, a proporção de pessoas subnutridas era de 25,9% em 2001, caiu para menos de 20% na década passada e voltou a ultrapassar a casa de 20% em 2020. O Sul da Ásia (que inclui a Índia) tinha 18,9% de pessoas subnutridas em 2001, caiu para 13% em 2018 e ficou em 15,9% em 2020.

Na América Latina e Caribe (ALC) a proporção de pessoas subnutridas era de 10,8% em 2001, caiu para 5,7% em 2014 e voltou a subir e atingiu 7,8% em 2020. A única região que apresentou conquistas ininterruptas na redução da fome foi o Leste da Ásia e Pacífico (que inclui a China), pois tinha uma proporção de pessoas subnutridas de 12,2% em 2001 e tem mantido uma proporção de pessoas subnutridas abaixo de 5% desde 2012.

Portanto, ao invés da erradicação da fome, o mundo está assistindo ao aumento do preço dos alimentos e ao agravamento da insegurança alimentar. O relatório da ONU, “The Global Land Outlook” (UNCCD, 27/04/2022), registra que 52% do total das terras agricultáveis estão degradas e, globalmente, os sistemas alimentares são responsáveis ​​por 70% do uso da água doce, 80% do desmatamento, 29% das emissões de gases de efeito estufa, 70% da perda de biodiversidade terrestre e 50% da perda de biodiversidade marinha. Cerca de US$ 44 trilhões de produção econômica – mais da metade do PIB anual global – é moderada ou altamente dependente do capital natural. O fracasso agrícola representaria também o fracasso de toda a economia global.

No início da década de 1940, Mahatma Gandhi disse: “A terra pode oferecer o suficiente para satisfazer as necessidades de todos os indivíduos do mundo, mas não a ganância de todos”. Com esta frase, o líder indiano buscava denunciar as desigualdade sociais, argumentando que não haveria pobreza e fome em um mundo mais justo e equitativo.

Todavia, esta reflexão foi realizada há mais de 80 anos, quando a população mundial era de cerca de 2 bilhões de habitantes e havia maior preservação do meio ambiente. Atualmente, o mundo possui mais de 8 bilhões de habitantes e a economia já ultrapassou em muito a capacidade de carga da Terra. O nível global do consumo, incluindo o consumo conspícuo dos ricos, tem afetado a capacidade de resiliência do planeta.

O modelo de desenvolvimento atual é insustentável. A pegada ecológica supera a biocapacidade do planeta em mais de 70%, como mostrei no artigo “Oito países consomem toda a biocapacidade do Planeta” (Alves, 18/06/2023). E seis das nove fronteiras planetárias foram superadas, como mostrei no artigo “Risco de colapso ambiental cresce com o rompimento de seis fronteiras planetárias” (Alves, 25/09/2023). Fica difícil ter justiça social e ambiental neste cenário.

O aquecimento global e o aumento do preço dos alimentos

Indubitavelmente, a sociedade global está envolta em um círculo vicioso, pois o modelo de produção de alimentos é um grande emissor de gases de efeito estufa, que aumenta a concentração de CO2 na atmosfera, elevando a temperatura média global, o que dificulta colocar comida de qualidade na mesa da população mundial.

O aquecimento global representa uma ameaça existencial à humanidade e é um impulsionador do aumento do preço dos alimentos, tendo, como consequência, o aumento da fome e da insegurança alimentar. A crise climática não é um fator conjuntural, mas sim estrutural. O aumento das emissões de CO2 provoca não só a elevação da temperatura, mas a acidificando das águas e dos solos afetando a fertilidade dos ecossistemas. O aquecimento global provoca perdas das colheitas e tende a aumentar a desertificação de amplas áreas geográficas.

O gráfico abaixo mostra a correlação entre o aumento da temperatura global (com dados da NOAA/NASA) e a elevação dos preços dos alimentos da FAO. Nota-se que existe uma correlação crescente entre as duas variáveis, sendo que 38,8% da variabilidade do preço da comida pode ser explicada pelo aumento da temperatura global.

A aceleração do ritmo de aquecimento tem consequências danosas para a segurança alimentar, pois provoca eventos climáticos extremos, tempestades e furacões intensos, ondas letais de calor, inundações catastróficas, secas prolongadas, perdas na produção agropecuária, aumento da desertificação, estresse hídrico, aceleração do degelo dos polos e glaciares, perda de oxigênio dos oceanos, diminuição da vida marinha, elevação do nível do mar com inundação de terras costeiras provocando deslocamento populacional e aumento do número de refugiados do clima.

Se 2023 bateu todos os recordes históricos de temperatura, o ano de 2024 pode ter temperaturas ainda mais elevadas, pois, como tem mostrado o renomado climatologista James Hansen, o desequilíbrio energético do planeta tem acelerado o aquecimento global.

Portanto, a instabilidade climática é uma ducha de água fria na pretensão da ONU de liderar a erradicação da fome até 2030. As perspectivas não são alvissareiras. No quadro atual, com esforço, o mundo pode tentar estabilizar os índices de desnutrição no patamar de 2015.

Referências:

ALVES JED. Os 70 anos da ONU e a agenda global para o segundo quindênio (2015-2030) do século XXI. Rev. bras. estud. popul. . 2015, vol.32, n.3, pp. 587-598.

http://www.scielo.br/pdf/rbepop/v32n3/0102-3098-rbepop-32-03-0587.pdf

ALVES, JED. Oito países consomem toda a biocapacidade do Planeta, # Colabora, 18/06/2023

https://projetocolabora.com.br/ods12/oito-paises-consomem-toda-a-biocapacidade-do-planeta/

ALVES, JED. Risco de colapso ambiental cresce com o rompimento de seis fronteiras planetárias, # Colabora, 25/09/2023

https://projetocolabora.com.br/ods6/risco-de-colapso-ambiental-cresce-com-o-rompimento-de-seis-fronteiras-planetarias/

United Nations Convention to Combat Desertification, 2022. The Global Land Outlook,

second edition. UNCCD, Bonn, 27 April 2022

https://www.unccd.int/sites/default/files/2022-04/UNCCD_GLO2_low-res_2.pdf

José Eustáquio Diniz Alves

José Eustáquio Diniz Alves é sociólogo, mestre em economia, doutor em Demografia pelo Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional (Cedeplar/UFMG), pesquisador aposentado do IBGE, colaborador do Projeto #Colabora e autor do livro "ALVES, JED. Demografia e Economia nos 200 anos da Independência do Brasil e cenários para o século" (com a colaboração de F. Galiza), editado pela Escola de Negócios e Seguro, Rio de Janeiro, 2022.

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