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Veja o que já enviamosHaroldo Costa, guardião gigante da cultura negra (e carnavalesca)
Vida do ator, escritor, jornalista e totem do samba deixa legado inestimável à manifestação mais brasileira
“Tamos aí”.
Determinados personagens da cultura brasileira se disfarçam no despojamento que quebra o protocolo da devoção. São gigantes, totens, completamente essenciais, e por isso mesmo praticam a mais desconcertante simplicidade, camuflando a própria trajetória. Quem não se liga na história, passa batido – pecado capital. Os pagãos, mortais comuns, que se virem. Os senhores das maiores virtudes não têm que exaltá-las.
Leu essa? A melhor cara do Brasil
Haroldo Costa praticava a bula, com seu “tamos aí” sedutor, emblemático, precioso, único. Assim, ele cumprimentava a todos, pacato e elegante, sereno e apaixonante, tolerante e genial. Da aldeia de Paulinho da Viola, Martinho da Vila, Nelson Sargento, Paulo da Portela, Cartola, Monarco, Neguinho da Beija-Flor, doutores da fórmula precisa, que decifra todo um jeito de ser. O que de melhor o Brasil inventou.


Aqui está o truque. Sem trombetas nem marquetices, enganava os ignorantes, que desconheciam o tamanho do personagem. Ninguém mandou ser idiota. Haroldo Costa se escala entre os inventores das mais preciosas virtudes da civilização brasileira (sim, ela existe). Antirracista muito antes de a expressão existir, praticou o ativismo pela via da arte múltipla, incansável, suave e contundente ao mesmo tempo.
Pesquisador incansável, escritor essencial, Haroldo foi ainda ator, diretor, jornalista, produtor, conferencista. Um virtuose que brilhou no teatro, na televisão, no rádio e na literatura sem nunca conceder sobre suas raízes, sua identidade e sua missão: defender a cultura do povo preto.
A trajetória construída por ele é monumental. Primeiro ator negro a atuar no Theatro Municipal do Rio, protagonizou o “Orfeu da Conceição” que deu no filme franco-brasileiro ganhador da Palma de Ouro em Cannes. O pioneirismo se estendeu às origens da TV Globo, como primeiro homem preto a atuar na emissora. E antes, no Teatro Experimental do Negro, parceiro de Abdias do Nascimento, início do ofício de ator. Fundou também a companhia de danças Brasiliana, da qual foi diretor e bailarino.
Escritor, escreveu “Fala, crioulo. O que é ser negro no Brasil” (1982), “Salgueiro: academia do samba” (1984), “Na cadência do samba” (2000), “100 anos de Carnaval no Rio de Janeiro” (2001), “Ernesto Nazareth – Pianeiro do Brasil” (2005); “Políticas e religiões no Carnaval” (2007); “Catulo da Paixão – vida e obra” (2009), “Nação Quilombo”, em parceria com Joel Rufino e Nei Lopes (2010) e “Arte e cultura afro-brasileiras” (2014). Acervo literário da mais resoluta coerência.
Totem, guardião e promotor da cultura negra, Haroldo Costa tornou-se rei no Carnaval. Esculpiu, com parceiros igualmente geniais, a grandeza dos Acadêmicos do Salgueiro, escola fundamental, que inventou a versão contemporânea da festa. Iniciada nos anos 1960, a revolução estética sofisticada, com profunda base intelectual, pavimentou o caminho que deu no espetáculo de repercussão planetária, melhor cara do Brasil.
Haroldo nunca abandonou as escolas de samba. Entrou para o júri do Estandarte de Ouro (mais importante prêmio individual da festa) no segundo ano, em 1973, e nunca mais saiu. As décadas se passaram e ele, com retidão de devoto, manteve-se ligado aos bambas, sendo celebrado em todas as quadras.
O avanço da idade e a fragilidade física sequer arranharam a paixão pela maior festa brasileira. Haroldo Costa percorria quadras e barracões com energia e desenvoltura, mesmo que precisasse, eventualmente, do auxílio de muletas ou de braços amigos. Tudo certo. Estavam lá sempre o sorriso, a simpatia, a parceria de mafioso com todos os sambistas.
Praticava filosofia de vida iluminada. Além dos 90, entendia que o valor da existência está em aproveitar os encontros, as amizades, os afetos. O futuro, em verdade, não existe -então, guardar-se em nome de quê? Assim, bastava convidar que Haroldo e a mulher, Mary Marinho, amor da vida inteira, iam. E iluminavam o lugar onde estavam, com sua trajetória de casal apaixonado e apaixonante, a simplicidade mais sofisticada, a elegância mais despojada. Conviver com eles foi, a vida toda, privilégio único.


Certa vez, em 2023, Haroldo recebeu convite para ensaio em homenagem à imprensa, numa noite de terça-feira, na quadra da Unidos do Viradouro, na divisa de Niterói e São Gonçalo. Ele e Mary chegaram cedo a seus assentos na van oferecida pela escola, para levar os convidados do Rio.
Terminado o evento, o casal se deteve nos cumprimentos das pessoas – Haroldo sempre foi cultuado pela aldeia carnavalesca – e perdeu o transporte, que partiu sem eles. Finzinho da noite, os dois no deserto Barreto, à beira da rodovia Niterói-Manilha. Atenta, a escola niteroiense rapidamente percebeu o problema, conseguiu outro carro e levou os dois até a casa deles, na Gávea. Mas ficou o constrangimento. No dia seguinte, um diretor da escola ligou, desculpando-se novamente pelo incômodo. “Acontece. Só não deixa de me convidar para o próximo”, respondeu Haroldo, numa tradução mais longa do proverbial “tamos aí”.
Breve nota pessoal: voltei ao júri do Estandarte de Ouro no último Carnaval e, como em todos os outros anos afora o primeiro (1972), Haroldo estava lá, atento aos deveres de jurado. Por três noites e madrugadas, no formato inédito adotado pela Liesa, acompanhou a evolução das 12 escolas, respondendo com sorrisos e acenos às saudações dos muitos sambistas, de todos os grêmios, que o avistavam da pista. A paixão do Salgueiro jamais tisnou o amor pela festa toda, retribuído na mesma proporção por bambas de todas as bandeiras.
Ao fim da maratona, Haroldo participou dos longos debates que precedem a votação das categorias. Como sempre, desfilou sabedoria completa sobre as diversas especialidades analisadas pelo júri – do samba ao casal de mestre-sala e porta-bandeira, da bateria à comissão de frente, do enredo à personalidade do ano. Ao fim, despediu-se com o sorriso-assinatura de toda uma vida.
No meio da tarde do sábado, 13 de dezembro, Haroldo Costa morreu, vítima de pneumonia e infecção urinária, aos 95 anos. “Um homem que entendeu cedo que o samba não podia ser apenas vivido. Precisava ser preservado, estudado, contado e respeitado. Ele deu palavra, contexto e dignidade à nossa história. No Salgueiro, sua presença sempre foi de respeito. Sua palavra sempre foi de autoridade. Sua trajetória sempre foi de amor verdadeiro pela Academia do Samba”, escreveu sua escola do coração, numa rede social.
Tamos aí, Haroldo. Lembraremos de você para sempre. Obrigado por muito, por tudo.
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