Apegados ao desapego

Em tempos de crise, grupos de compra e venda de itens usados reúnem milhares de aficionados

Por Paula Autran e Reneé Rocha | ODS 17 • Publicada em 15 de março de 2016 - 08:00 • Atualizada em 18 de março de 2016 - 11:57

A designer Sandy Bahia, criadora dos sites Vendinhas e Vendonnas, com a filha Alice e o marido Rafael
A designer Sandy Bahia, criadora dos sites Vendinhas e Vendonnas, com a filha Alice e o marido Rafael

A cena é cada vez mais comum nas estações de Metrô. São pessoas que nunca se viram, mas marcaram encontros para comprar e vender o que previamente combinaram via redes sociais. Nada de drogas! Pelo contrário, só produto “do bom”. Do bom, do bonito e do barato. Quase sempre usados, ou comprados e esquecidos no armário, sem uso. Tem roupas, eletrodomésticos, perfumes e até móveis. Em tempos de crise, em que o comércio amarga números negativos, este “setor” só cresce. E aparece, em buscas de sites de relacionamento como o Facebook. São os grupos de desapego, como “Vendonnas” (com toda sorte de ofertas, reunindo 23 mil pessoas), Moms to moms (o M2M, para mães que buscam vender o que suas crianças já não usam mais e comprar coisas novas, com 11 mil membros) e o Gringos buy, sell and donate (inicialmente de estrangeiros chegando e saindo do país, com pressa para adquirir e se desfazer de todo tipo de bem, inclusive por doação, com 21 mil participantes). Verdadeiros brechós online, só que sem “atravessadores” para ficar com uma porcentagem da venda. Uma maneira de estar “na moda”, tanto por poder usar objetos do desejo que de primeira mão custariam bem mais caro, quanto pela atitude de evitar desperdícios e economizar.

Quando a Alice, que vai fazer 4 anos, nasceu, fui para Miami e comprei um enxoval enorme. Aos seis meses, ela começou a perder tudo. Foi quando pensei em criar um grupo para vender essas coisas, que estavam novas.

Mãe do Lucas, de 2 anos, Cristiane Spêdo já levou e pegou coisas não só no metrô (muito utilizado por facilitar o encontro de pessoas que moram e trabalham em vários cantos na cidade). “Marquei em portaria, no trabalho do marido de quem me vendeu, pedi que me enviassem pelo Correio, usei o serviço de motoboy indicado por um dos grupos…”, vai listando ela, que mais compra do que vende. Isso porque, na hora de se desfazer dos itens do Lucas, Cristiane criou uma espécie de corrente de repasse de enxoval de bebê que é outro exemplo de desapego. Abrimos, então, um parênteses:

(“Uma das madrinhas do Lucas já tinha o Miguel, e queria ter o segundo filho. Veio o Lucas, e ela começou a me passar as roupas do mais velho, novinhas, que eu vou devolvendo para o mais novo, Bernardo – ela engravidou assim que meu filho nasceu. Depois que o caçula usa as peças, eu as repasso para o filho de uma amiga, que já começou a devolver algumas também. Estou guardando o que retorna para a outra madrinha do Lucas, que nem engravidou ainda”, conta Cristiane, que, enquanto o novo bebê não vem, incluiu uma prima nessa corrente).

Foi graças às madrugadas amamentando que Cristiane conheceu os grupos de desapego. “Para me manter acordada, ficava direto no Facebook, Aí conheci o Vendinhas, que hoje é secreto (não aparece na busca) e tem uma lista de 3 mil mães aguardando aprovação”. Lá, encontrou pechinchas como uma bomba elétrica Medela (que de primeira mão chega a custar R$ 1.299,90, como no site da Walmart, em promoção – o preço cheio é R$ 1.499,90) por R$ 200. E perfeita, posso atestar eu, para quem a compra se destinava. Sou a tal prima da Cristiane, mãe do Pedro, que passou a herdar tudo do Lucas, boa parte adquirida em grupos de desapego.

Mãe do Lucas, de 2 anos, Cristiane Spêdo conheceu os grupos de desapego por conta das madrugadas em claro amamentando
Mãe do Lucas, de 2 anos, Cristiane Spêdo conheceu os grupos de desapego por conta das madrugadas em claro amamentando

O Vendinhas é um case de sucesso. Criado pela designer Sandy Bahia, em agosto ele, que já reúne quase 30 mil mães, vai fazer dois anos. De lá para cá, a designer formou uma verdadeira holding de grupos similares: além do Vendonnas, o Vendinhas Festas (com mais de 23 mil seguidores), Vendinhas de coração (como o nome sugere, de decoração, com 5.484 participantes), Vendinhas Fábula (só com roupas desta grife infantil, com 5.350 membros), Vendinhas Mini (apenas para roupinhas da Reserva para crianças, com 2.437 mães) e Vendinhas Viagens (com 9.052 pessoas).

“Quando a Alice, que vai fazer 4 anos, nasceu, fui para Miami e comprei um enxoval enorme. Aos seis meses, ela começou a perder tudo. Foi quando pensei em criar um grupo para vender essas coisas, que estavam novas”, relembra Sandy. “Ia para a Europa, e via muito esse tipo de comércio lá. Enxoval por doação, feiras para compras de usados…”.

No início, Sandy conta que enfrentou preconceito até “dentro de casa”: “Minha mãe dizia que a neta dela não ia vestir coisa usada, achava que vinha com uma ‘energia ruim’”. Mas passou, e Alice segue lançando moda: a mãe compra suas roupas e sapatos, ela usa, eles deixam de servir, e a mãe os revende para comprar novas levas. Uma Melissa infantil, que na loja sai por uns R$ 100, no Vendinhas é revendida por até 30% disso. Mas nem tudo pode ser comercializado naquele pequeno latifúndio. “Proibi venda de andadores. Publiquei textos de fisioterapeutas contraindicando o uso deles. Quero reunir pessoas mais conscientes, que compram conscientemente. Elas embrulham tudo de forma bem cuidada, trocam fotos de seus filhos com as peças. Tem um carinho que não há nas lojas”.

Sandy foi criando novos grupos na medida em que percebia o aumento de demanda em algumas áreas: “Tinha muita coisa de festas? Abri o Vendinhas Festas. Muitas mães queriam vender roupas do período de gestação? Lancei o Vendonnas, que hoje tem homens e é mais amplo, porque não é secreto. Depois veio o Vendinhas Fábula, em que um vestido da marca chega a ser vendido mais caro do que na loja, pois saiu de linha e se tornou raridade. Já o Vendinhas Viagens quem modera é meu marido, Rafael Xavier, que trabalha no Hotel Urbano. Ele negocia hotéis mais baratos, aluguel de carro etc. em nome do grupo”, enumera ela, que tira seu sustento trabalhando no site Ego. “O retorno que eu tenho dos grupos é indireto. No Festas, por exemplo, planejo as festinhas da Alice com fornecedores. Depois, todo mundo fica querendo aquele docinho, aquela roupinha…”.

E, assim, os grupos vão nascendo, crescendo e se multiplicando. E não eliminam os brechós – alguns apelidados de “brechiques”. No Memórias de Cabide (antiga A boutiquier), no Flamengo, só entram roupas e sapatos femininos sem imperfeições. A pessoa deixa tudo em consignação por três meses, com um contrato assinado em que já consta quanto será pago por cada item em caso de venda. Deixei 12 peças lá há um mês. Neste período, duas foram vendidas. Recebi R$ 45. Se tudo for comercializado, serão R$ 295. Se não, o que não faltam são formas de me desapegar delas.

Paula Autran e Reneé Rocha

Paula Autran e Reneé Rocha se completam. No trabalho e na vida. Juntos, têm umas quatro décadas de jornalismo. Ela, no texto, trabalhou no Globo por 17 anos, depois de passar por Jornal do Brasil, O Dia e Revista Veja, sempre cobrindo a cidade do Rio. Ele, nas imagens (paradas ou em movimento), há 20 anos bate ponto no Globo. O melhor desta parceria nasceu no mesmo dia que o #Colabora: 3 de novembro de 2015. Chama-se Pedro, e veio fazer par com a irmã, Maria.

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