Suprema Corte dos EUA dá vitória à liberdade religiosa sobre os direitos LGBT+

Justiça garante direito de agência de adoção católica de recusar casais do mesmo sexo em seu programa e comunidade LGBT+ teme retrocesso

Por The Conversation | ODS 10ODS 16 • Publicada em 30 de junho de 2021 - 08:20 • Atualizada em 7 de julho de 2021 - 09:22

Comemoração em frente à Suprema Corte em 2015, quando casamento de pessoas do mesmo sexo foi aprovado: decisão recente do tribunal coloca liberdade religiosa acima de direitos LGBT (Foto: Mladen Antonov/AFP – 26/06/2015)

(Morgan Marietta*) – Não foi uma expansão dramática dos direitos religiosos – ainda não. Mas a decisão da Suprema Corte em favor de uma agência de adoção católica que foi excluída dos programas de adoção da Filadélfia por se recusar a trabalhar com casais do mesmo sexo terá consequências para a comunidade LGBT+. Isso sugere que, quando a questão mais ampla de se os grupos religiosos têm o direito de discriminar chegar aos juízes, eles provavelmente defenderão a liberdade religiosa em vez dos direitos dos homossexuais.

A decisão do tribunal, proferida em decisão unânime (9 votos a 0), enfatiza uma abordagem pluralista: a agência cristã participa dos programas de adoção ao mesmo tempo que adere às suas crenças religiosas, e os casais LGBT+ continuarão a ter acesso a outras agências de adoção dentro do sistema da Filadélfia.

Mais: Dilemas e angústias dos LGBTs católicos no Brasil

A decisão é restrita ao caso, mas significa que qualquer tratamento desigual de grupos religiosos será considerado uma violação da Primeira Emenda, mesmo que prejudique a dignidade dos cidadãos LGBT+.

Talvez o aspecto mais importante da decisão seja sua unanimidade em apoiar um padrão claro de tratamento neutro para grupos religiosos e seculares (laicos). O governo da cidade alegou que não estava violando esse padrão, mas mesmo os juízes liberais da Suprema Corte concordaram que sim.

Gostando do conteúdo? Nossas notícias também podem chegar no seu e-mail.

Veja o que já enviamos

A alegação da cidade de que a legislação sobre financiamento público ou as regras de contratação da Filadélfia prevaleceriam sobre os direitos religiosos foi totalmente rejeitada pelo tribunal.

A decisão unânime foi alcançada adiando outra questão central que alguns dos magistrados da Suprema Corte queriam abordar: se empresas ou grupos religiosos têm o direito claro de negar serviço à comunidade LGBT+ ou se os estados podem insistir que, nos espaços públicos, grupos de base religiosa deixam de lado crenças discriminatórias.

Mais: Pena de morte, prisão perpétua e perseguição contra LGBTs na África

No entanto, como um estudioso da Suprema Corte, acredito que a decisão dos nove juízes terá amplas ramificações para as políticas governamentais atuais e também para futuras decisões judiciais. Ao subordinar a dignidade dos casais do mesmo sexo aos direitos religiosos dos crentes, a nova decisão do tribunal irá influenciar muitas interações entre organizações religiosas e cidadãos LGBT+.

Dignidade de casais LGBT+ ferida

O caso diante da Suprema Corte abordou a recusa da cidade de Filadélfia em continuar a permitir que a agência CSS (Catholic Social Services – Serviços Sociais Católicos) participasse dos programas municipais de adoção e de acolhimento porque esta instituição de caridade religiosa não atendia casais do mesmo sexo.

A agência alegou que seu direito da Primeira Emenda ao livre exercício da religião foi violado e processou a cidade, com a participação de Sharonell Fulton e Toni Simms-Busch, duas mulheres católicas, negras e solteiras, que já atuavam como mães adotivas (nos Estados Unidos, as pessoas podem se inscrever para cuidar de órfãos definitiva ou temporariamente, com pagamento por este serviço).

Os autores da ação foram auxiliados pelo Becket Fund for Religious Liberty (Fundo Becket pela Liberdade Religiosa), uma firma de advocacia sem fins lucrativos por trás de vários casos bem-sucedidos da Suprema Corte, incluindo Burwell contra Hobby Lobby de 2014, que garantiu o direito de empresas religiosas de se recusarem a pagar por formas de contracepção que violem suas crenças, e Little Sisters of the Poor contra Pensilvânia em 2021, que garantiu à instituição católica de descumprir a lei estabelecendo a obrigatoriedade de unidades de saúde e hospitais a fornecerem contraceptivos.

Mais: O drama dos refugiados LGBT na Itália

A cidade de Filadélfia argumentou que os direitos religiosos não podem permitir danos a terceiros, inclusive à dignidade dos casais do mesmo sexo, quando informados publicamente que essas iniciativas não são aceitáveis.

Como um professor de direito constitucional escreveu em depoimento em favor da cidade: “Os crentes podem acreditar no que quiserem e organizar seus negócios por meio de propósitos discriminatórios, com certeza; mas não podem fazer isso quando o governo está pagando e nem quando o público em geral é impactado.”

Mas os juízes parecem ter concordado com o enquadramento alternativo oferecido por Lori Windham, advogada que representou Sharonell Fulton: “A cláusula de Livre Exercício Religioso não está encolhendo cada vez que o governo expande seu alcance e começa a regulamentar o trabalho que, historicamente e tradicionalmente, tem sido feito por grupos religiosos?”, questionou.

Uma surpreendente unanimidade

Todos os nove juízes concordaram com a alegação central de que a Filadélfia não poderia excluir os Serviços Sociais Católicos. Não houve divergências dos juízes Stephen Breyer, Elena Kagan ou Sonia Sotomayor – a atual ala liberal da Suprema Corte dos EUA.

Mas três dos ministros conservadores – Samuel Alito, Neil Gorsuch e Clarence Thomas – assinaram votos separados concordando com o resultado, mas argumentando que a proteção dos direitos religiosos deveria ter sido ainda mais forte.

A decisão da Suprema Corte não protege a capacidade de grupos religiosos de discriminar ou excluir em quaisquer circunstâncias. Em vez disso, impede que as autoridades governamentais apliquem padrões diferentes apenas a organizações religiosas e seculares. Para os juízes, as políticas da Filadélfia não estabeleciam uma regra aplicada a todos, mas, em vez disso, permitiam exceções a seu critério.

Mais: Jovens LGBTs revelam experiências de intolerância em igrejas evangélicas

Ao chegar à sua decisão, os juízes citaram decisões anteriores sustentando que, se o governo permitir exceções por razões seculares (laicas), então a Primeira Emenda exige que eles também as permitam por razões religiosas. Como disse o presidente da Suprema Corte, John Roberts: “A criação de um mecanismo formal para conceder exceções gera uma política não aplicável a todos”.

Ao apresentar o caso aos juízes, a advogado Lori Windham argumentou: “Em nossa sociedade pluralista, esta Corte disse repetidamente que deveria haver espaço para aqueles com pontos de vista diferentes.”

A opinião majoritária, defendida por Roberts, parece refletir essa visão: “Nenhum casal do mesmo sexo já buscou a certificação do CSS. Se o fizesse, o CSS direcionaria o casal para uma das mais de 20 outras agências na cidade, todas as quais atualmente certificam casais do mesmo sexo”, afirmou no seu voto. “O CSS busca apenas uma acomodação que lhe permita continuar servindo as crianças da Filadélfia de maneira consistente com suas crenças religiosas; não pretende impor essas crenças a ninguém”.

Expansão dos direitos religiosos

Com apenas 15 páginas, a sentença definitiva é o que o ministro Alito descreveu como um “fio de decisão” em seu voto de 77 páginas. Ele argumentou que o tribunal deveria ter decidido com mais ousadia a favor da expansão dos direitos religiosos.

A sentença segue uma longa série de outras decisões que favorecem reclamantes religiosos. Nos últimos anos, o tribunal tem protegido cada vez mais a liberdade de grupos religiosos em programas governamentais, no comércio, em exibições públicas e em programas de escolas públicas .

A decisão mais recente também sugere os limites dos direitos LGBT+ sob o tribunal atual. Não houve grandes vitórias nesta questão na Suprema Corte desde a aposentadoria, em 2018, do juiz Anthony Kennedy – o autor de todas as principais decisões sobre os direitos dos homossexuais nas últimas décadas, incluindo Obergefell contra Hodges, que legalizou o casamento do mesmo sexo em todo o país em 2015. Mas o próprio Kennedy sugeriu os limites dos direitos LGBT+ quando eles se opõem às liberdades religiosas, escrevendo na decisão deste caso que “a Primeira Emenda garante que as organizações religiosas e as pessoas recebam proteção adequada enquanto procuram ensinar os princípios que são tão gratificantes e tão importantes para suas vidas e crenças”.

Desde o caso Obergefell, a maioria dos casos da Suprema Corte que tratam dos direitos LGBT+ não foram apresentados por um reclamante LGBT+. Em vez disso, eles foram trazidos – e ganhos – por grupos religiosos. E o caso da Filadélfia não foi exceção a essa sequência de vitórias pelos direitos religiosos .

Mas o que a decisão não fez foi dar uma resposta definitiva à pergunta para a qual esses casos estão apontando: Quando os direitos dos homossexuais e os direitos religiosos estão em conflito irreconciliável, qual deles deve prevalecer? Quando o tribunal responder a essa pergunta, provavelmente não será unânime. Mas a trajetória atual sugere que os direitos religiosos têm maior probabilidade de prevalecer.

Como o juiz Gorsuch concluiu em seu voto: “esquivar-se da questão hoje garante que ela se repetirá amanhã”.

*Morgan Marietta é professor de Ciência Política da Universidade de Massachussets (EUA)

Tradução: Oscar Valporto

The Conversation

The Conversation é uma fonte independente de notícias, opiniões e pesquisas da comunidade acadêmica internacional.

Newsletter do #Colabora

A ansiedade climática e a busca por informação te fizeram chegar até aqui? Receba nossa newsletter e siga por dentro de tudo sobre sustentabilidade e direitos humanos. É de graça.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *