Refugiados LGBT+, pandemia e exclusão social

Armando e David, refugiados venezuelanos, no Brasil. Foto/ Arquivo Pessoal

Pesquisa traça perfil socioeconômico de migrantes no Rio de Janeiro: moradia e emprego são os grandes desafios para essa população, que vive sob apagão estatístico

Por Liana Melo | ODS 16 • Publicada em 28 de dezembro de 2020 - 10:53 • Atualizada em 26 de junho de 2021 - 21:03

Armando e David, refugiados venezuelanos, no Brasil. Foto/ Arquivo Pessoal

Foi uma saga chegar a Engenheiro Pedreira, em Japeri, na Baixada Fluminense, município com um dos piores resultados no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do Rio de Janeiro. José Armando Marchena, 22 anos, e David Emílio Castillo, 29, saíram de Puerto Ayacucho, na região amazônica da Venezuela, sem um tostão no bolso. Cruzaram a fronteira a pé. Na mochila, objetos típicos para trocar na viagem por comida ou um pernoite, onde pudessem estender a única rede que tinham na bagagem. Migraram para o Brasil para fugir da crise humanitária na Venezuela e para viverem juntos, sem medo. O pai de Armando nunca aceitou o fato do filho ser gay. Em agosto de 2019, chegaram a São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas, na fronteira com a Colômbia e Venezuela. Desde julho deste ano, o casal vive no Rio de Janeiro como refugiados LGBTTQIA+.

Aqui, Armando e David se depararam com o mesmo ciclo de pobreza do qual fugiram e o mesmo preconceito do qual foram vítimas. Soma-se à nova realidade uma espécie de invisibilidade estatística sobre os migrantes e refugiados LBGTTQIA+ no Brasil. A pesquisa “As Fronteiras do Não-Lugar: Perfil de Migrantes e Refugiados LGBTTQIA+ no Estado do Rio de Janeiro e os Impactos da Pandemia do Covid-19” é uma tentativa de reduzir essa invisibilidade, fazendo um retrato em 3X4 da situação socioeconômica dessa população.

Ainda que universo da pesquisa seja bastante reduzido – 46 pessoas responderam o questionário, o levantamento feito pela ONG LGBT+Movimento ajuda a entender onde moram e como vivem os refugiados LGBTTQIA+ no Rio de Janeiro. “Consideramos que esse relatório é apenas um pequeno passo e esperamos que seja motor para pesquisas mais inclusivas e sensíveis à temática”, comenta Nathália Antonucci, uma das coautoras do estudo junto com Marina Afonso Siqueira.

Essas pessoas seguem sendo reexpostas às violências estruturais que, como elas, também cruzam fronteiras transnacionais: xenofobia, o racismo, LGBTTQIA+fobia e etc

“Essas pessoas seguem sendo reexpostas às violências estruturais que, como elas, também cruzam fronteiras transnacionais: xenofobia, o racismo, LGBTTQIA+fobia e etc”, observa Nathália. Emprego e moradia são os principais desafios dos migrantes e refugiados. Para fugir da perseguição por conta da sua orientação sexual e/ou identidade de gênero, Armando e David engordaram a estatística de 369 pessoas que solicitaram refúgio no Brasil como LGBTTQIA+. Como nem todo migrante e refugiado assume essa condição, o número de lésbicas, gays, bissexuais, travestis, homens e mulheres transexuais, pessoas intersexo calculado pela Agência da ONU para refugiados (Acnur) tende a estar subnotificado.

 

Armando e David, refugiados venezuelanos, no Brasil. Foto/ Arquivo Pessoal
Armando e David (ao fundo), em refugiados venezuelanos, em São Gabriel da Cachoeira, também conhecido como Cabeça do Cachorro. Foto/ Arquivo Pessoal

Pouco mais de 30% dos migrantes e refugiados LGBTTQIA+ ouvidos pela pesquisa se autodeclarou gay quando perguntado sobre sua orientação sexual, como fizeram Armando e David. Lésbicas representaram 26,09% e 23,91% se declararam bissexual. Quanto a identidade de gênero, 36,96% se declararam mulheres cis, 34,78% homens cis e 19,57% mulheres trans.

Depois de cruzarem a fronteira entre os dois países a pé e viverem sem nenhum documento brasileiro durante um ano em São Gabriel da Cachoeira, o casal conseguiu regularizar sua situação ao chegar no Rio de Janeiro, em julho último. Foi com a ajuda da ONG LGBT+Movimento que Armando e David conseguiram dinheiro para comer e preparar a documentação, com fotos, para apresentar à Polícia Federal. “Foram idas e vindas à PF para convencer as autoridades de que a situação deles era emergencial”, lembra a pesquisadora.

Armando e David, refugiados venezuelanos, no Brasil. Foto/ Arquivo Pessoal
Armando e David (de boné) antes de embarcar em um das embarcações que usaram no Rio Negro, no Amazonas. Foto/ Arquivo Pessoal

Depois de passarem fome, sofrerem preconceito dos próprios conterrâneos quando tentaram ajuda em refúgios da Caritas no Amazonas, serem mordidos por lacraia e pegarem Covid, poucos meses depois de chegarem no Rio de Janeiro, no dia 14 de dezembro, os dois foram contratados como auxiliar operacional logístico na GO2B, uma empresa que contrata prestadores de serviços para os Correios. O salário é de R$ 1.239,00. Na Venezuela, David fazia faculdade de Direito e Geologia de Minas. Armando é técnico médio em comércio e serviços administrativos. Durante um ano, viveram vendendo sacolés e marmitex em São Gabriel da Cachoeira.

Se antes da pandemia já estava difícil regularizar a documentação no Brasil; depois da Covid ficou ainda mais complicado, porque os órgãos só faziam atendimento emergencial. A prioridade era para as mulheres grávidas

“Se antes da pandemia já estava difícil regularizar a documentação no Brasil; depois da Covid ficou ainda mais complicado, porque os órgãos só faziam atendimento emergencial. A prioridade era para as mulheres grávidas”, lembra Armando.

A pandemia aprofundou ainda mais a vulnerabilidade social dessa população. A pesquisa mostra que 58,7% deles estão vivendo com renda abaixo de 200 reais por mês. Cerca de 32% dos entrevistados respondeu que está se mantendo com auxílio emergencial do governo Federal, seguido de 28% que contam com ajuda de vizinhos e amigos para sobreviver no Rio de Janeiro.

Segundo a pesquisa, A maioria dos refugiados está na faixa dos 25 a 29 anos e 89,13% deles são venezuelanos, como Armando e David. Ainda que o levantamento tenha ouvido majoritariamente venezuelanos, isso não significa que a maioria dos migrantes e refugiados LGBTTQIA+ no Rio de Janeiro tenham vindo daquele país, explica Nathália. O Brasil costuma ser um refúgio muito procurado por pessoas que vêm da Nigéria, Gana e Camarões, aponta levantamento da Acnur.

Os deslocamentos dentro do Brasil constituem importante dado, pois além de revelar os fluxos mais comuns, mostram que a mobilidade não se encerra só no atravessar de fronteiras transnacionais. Foi o caso de Armando e David, que, antes do Rio de Janeiro, viveram em São Gabriel da Cachoeira. A pesquisa revelou que somente 45,6% das pessoas moraram apenas no Rio de Janeiro. Todas as outras 54,3% moraram em pelo menos mais um estado do país. Todas, no entanto, iniciaram sua trajetória migratória no Norte do Brasil, nos estados de Roraima (70%) e Amazonas (13,3%).

Ao contrário de outros estados, o Rio de Janeiro conta com poucas políticas públicas específicas para a população LGBTTQIA+ e também para a população migrante/refugiada. O primeiro Centro Provisório de Acolhimento LGBT no Rio foi inaugurado junho deste ano. “A grande maioria do público atendido mora em favelas e periferias, que, no contexto do Covid-19, são os locais mais atingidos pela pandemia”, observa Nathália. A distribuição geográfica é a seguinte: 82,6% moram na cidade do Rio, 8,7% na Baixada Fluminense, 4,3% na Região Serrana, 2,1% em Niterói e 2,1% no interior do Estado.

Só recentemente, o Armando e David conseguiram comprar um celular. Durante a pandemia do Covid-19, em que muitas das atividades e serviços migraram exclusivamente para o meio virtual, a desigualdade digital mostrou-se ainda mais discrepante. A falta de conectividade foi mais um sinônimo de inclusão social. Apenas 41,3% das pessoas entrevistadas possuíam acesso a internet wifi. Das pessoas que possuíam internet apenas no celular, 47,8%, a conexão era mediada por crédito e, muitas vezes, só funcionava de forma liberada para aplicativos como WhatsApp e de redes sociais. Das pessoas que respondem a pesquisa, 10,8% não possuíam nenhum acesso à internet.

Liana Melo

Formada em Jornalismo pela Escola de Comunicação da UFRJ. Especializada em Economia e Meio Ambiente, trabalhou nos jornais “Folha de S.Paulo”, “O Globo”, “Jornal do Brasil”, “O Dia” e na revista “IstoÉ”. Ganhou o 5º Prêmio Imprensa Embratel com a série de reportagens “Máfia dos fiscais”, publicada pela “IstoÉ”. Tem MBA em Responsabilidade Social e Terceiro Setor pela Faculdade de Economia da UFRJ. Foi editora do “Blog Verde”, sobre notícias ambientais no jornal “O Globo”, e da revista “Amanhã”, no mesmo jornal – uma publicação semanal sobre sustentabilidade. Atualmente é repórter e editora do Projeto #Colabora.

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2 comentários “Refugiados LGBT+, pandemia e exclusão social

  1. Sônia Souza Pizarro disse:

    Trabalho com a população LGBTS, no CRT Centro Regência em IST/AIDS, Programa do Estado de São Paulo de IST/AIDS. Responsável por Casas de Apoio para PVHIV.
    Interesse pelo Tema: Direitos Humanos e Pandemia

  2. Odara Oliveira disse:

    Sou amiga do casal Armando e David e sei que eles são super trabalhadores, educados e gentis. Trabalhamos juntos em um ambiente inóspito para a diversidade, mesmo tendo várias normas internas explícitas sobre acolhimento e respeito às diferenças. Apesar de conversarmos algumas vezes, não sabia sobre a falta de apoio familiar que eles enfrentaram, mas desconfiava dessa realidade. Fico triste, que a sexualidade do filho seja mais importante do que o seu caráter e contribuição positiva à sociedade. De qualquer forma, por ser preta, sei bem o que é preconceito e aprendi o que realmente vale a pena valorizar em um ser humano. Armando e David possuem um enorme potencial profissional e social para engrandecer qualquer país que os acolham oferecendo oportunidades reais de ascensão. Finalizando, agradeço à jornalista pela excelente reportagem, que nos ilustrou sobre esse assunto pouco divulgado e discutido.

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