Operação policial mais letal do Rio: entidades denunciam “matança produzida pelo Estado”

Após anúncio oficial de 64 mortes, moradores encontram mais dezenas de cadáveres; organizações lembram que governo Claudio Castro é "responsável por quatro das cinco operações mais letais da história do Rio de Janeiro"*

Por Oscar Valporto | ODS 16
Publicada em 28 de outubro de 2025 - 21:07  -  Atualizada em 29 de outubro de 2025 - 12:36
Tempo de leitura: 8 min

Mulher chora ao lado de corpos enfileirados em praça da Zona Norte do Rio: número de mortos na chacina mais letal da história do estado passa de 100 (Foto: Tomaz Silva / Agência Brasil)

Nesta terça-feira (28/10), o governo do Rio de Janeiro mobilizou quase três mil agentes para produzir a operação policial mais letal da trágica e desastrada história do combate ao crime no estado: no fim do dia, a ação havia gerado pelo menos 64 cadáveres – entre eles, para marcar o tamanho de seu fracasso, quatro policiais. A capital do Rio, palco dos conflitos que começaram em dois complexos de favela da Zona Norte, viveu um dia de tiroteios e pânico: criminosos fecharam vias e o terror tumultuou a rotina da cidade.

Nota conjunta – ‘Segurança Pública não se faz com sangue’ – assinada por quase 30 entidades criticaram a matança. “A perda massiva de vidas reitera o padrão de letalidade que caracteriza a gestão de Cláudio Castro, governador que detém o título de responsável por quatro das cinco operações mais letais da história do Rio de Janeiro, superando seus próprios recordes anteriores registrados no Jacarezinho (2021) e na Vila Cruzeiro (2022)”, afirma o texto.

Dezenas de corpos na Praça São Lucas, na Penha: matança produzida por operação policial tem mais de 120 cadáveres (Foto: Tomaz Silva / Agência Brasil)
Dezenas de corpos na Praça São Lucas, na Penha: matança produzida por operação policial tem mais de 120 cadáveres (Foto: Tomaz Silva / Agência Brasil)

Na manhã de quarta-feira (29/10), moradores dos complexos do Alemão e da Penha levaram para uma praça mais de 60 cadáveres encontrados em morros e matas da região. De acordo com testemunhas, esses corpos, todos de homens, estavam, na grande maioria, na área de mata da Vacaria, na Serra da Misericórdia, onde teriam havido confrontos entre as forças de segurança e criminosos. Número de mortos da operação policial mais letal da história do Rio vai passar de 100.

Gostando do conteúdo? Nossas notícias também podem chegar no seu e-mail.

Veja o que já enviamos

Principal alvo das críticas, o governador do Rio fez um pronunciamento para exaltar o trabalho da sua polícia e reclamar de falta de apoio federal. “O que o governador Cláudio Castro classificou hoje como a maior operação da história do Rio de Janeiro é, na verdade, uma matança produzida pelo Estado brasileiro”, denunciam as entidades na nota, destacando que a operação “expõe o fracasso e a violência estrutural da política de segurança no estado”.

O texto lembra ainda que, ao longo dos quase 40 anos de vigência da Constituição Federal, o que se viu nas favelas do Rio de Janeiro foi a consolidação de uma política de segurança baseada no uso da força e da morte. “Trata-se de uma atuação seletiva, dirigida contra populações negras e empobrecidas, que tem no sangue seu instrumento de controle e dominação. Não há nela elementos que efetivamente reduzam o poderio das facções criminosas nos territórios. Pelo contrário: essas ações aprofundam a insegurança e o medo, instalam o pânico, interrompem o cotidiano de milhares de famílias, impedem crianças de ir à escola e impõem o terror como expressão de poder estatal. A morte não pode ser tratada como política pública”, afirma a nota.

No pronunciamento, anunciado como entrevista coletiva mas onde o governador e seus secretários não responderam perguntas, Castro chamou Castro chamou os suspeitos presos de “filhotes da ADPF” – a operação, além de produzir 64 cadáveres, resultou em duas dezenas de baleados (15 policiais), 81 prisões e na apreensão de mais de 90 fuzis. “Durante seu pronunciamento, o governador ainda tentou responsabilizar a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n.º 635 — a ADPF das Favelas — e as organizações da sociedade civil que atuaram por sua implementação, pela letalidade da operação. Ao fazer isso, ataca o controle das polícias, papel constitucionalmente atribuído ao Ministério Público, e busca deslegitimar o trabalho das entidades que lutam pelo direito à vida nas favelas”, criticam as entidades.

A nota lembra também que Castro ainda atuou politicamente para esvaziar a ADPF 976 no Supremo Tribunal Federal, com o objetivo de liberar as forças de segurança de obrigações legais como planejamento prévio e preservação de vidas. “O que se testemunha hoje é o colapso de qualquer compromisso com a legalidade e os direitos humanos: o Estado substitui a segurança pública baseada em direitos por ações militares de grande escala. Sob o pretexto da ‘guerra às drogas’, instala-se um estado de insegurança permanente, voltado contra a população negra e pobre das favelas”, conclui a nota assinada por entidades como Anistia Internacional Brasil, Justiça Global, Conectas Direitos Humanos, CESeC (Centro de Estudos de Segurança e Cidadania), CEJIL, Instituto Papo Reto, Redes da Maré, ISER, Observatório de Favelas, Instituto Sou da Paz, Rede Justiça Criminal e Casa Fluminense.

PMs na rua após operação policial mais letal da história do Rio: entidades denunciam matança e "o fracasso e a violência estrutural da política de segurança no estado" (Foto: Fernando Frazão / Agência Brasil)
PMs na rua após operação policial mais letal da história do Rio: entidades denunciam matança e “o fracasso e a violência estrutural da política de segurança no estado” (Foto: Fernando Frazão / Agência Brasil)

MPF e Defensoria cobram explicações

A Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão do Ministério Público Federal (MPF) e a Defensoria Pública da União encaminharam ainda nesta terça ofício ao governador Cláudio Castro solicitando que “informe detalhadamente de que forma o direito à segurança pública foi promovido” na operação policial que produziu 64 cadáveres, inclusive de quatro policiais.

O órgão do Ministério Público Federal pede que o governador explique as finalidades da operação policial, os custos envolvidos e a comprovação da inexistência de outro meio menos violento e letal de atingir a mesma finalidade. O MPF também quer saber se foram cumpridas as exigências do Supremo Tribunal Federal descritas na “ADPF das Favelas”, que estabeleceu parâmetros para a elaboração do plano de redução da letalidade policial apresentado pelo Estado do Rio de Janeiro à corte. O ofício, endereçado a Cláudio Castro, é assinado pelo procurador Julio José de Araújo Júnior e do defensor público Thales Arcoverde Treiger.

A Defensoria Pública da União (DPU) também manifestou repúdio a mais letal operação policial da história do Rio. Para a DPU, “ações estatais de segurança pública não podem resultar em execuções sumárias, desaparecimentos ou violações de direitos humanos, sobretudo em comunidades historicamente marcadas por desigualdade, ausência de políticas sociais e exclusão institucional”.

*Atualizado às 11h30 de quarta-feira (29/10) para informar o encontro de mais de dezenas de cadáveres e adicionar o número de vítimas da operação

Oscar Valporto

Oscar Valporto é carioca e jornalista – carioca de mar e bar, de samba e futebol; jornalista, desde 1981, no Jornal do Brasil, O Globo, O Dia, no Governo do Rio, no Viva Rio, no Comitê Olímpico Brasileiro. Voltou ao Rio, em 2016, após oito anos no Correio* (Salvador, Bahia), onde foi editor executivo e editor-chefe. Contribui com o #Colabora desde sua fundação e, desde 2019, é um dos editores do site onde também pública as crônicas #RioéRua, sobre suas andanças pela cidade

Newsletter do #Colabora

A ansiedade climática e a busca por informação te fizeram chegar até aqui? Receba nossa newsletter e siga por dentro de tudo sobre sustentabilidade e direitos humanos. É de graça.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *