Lula veta trecho sobre marco temporal de lei aprovada no Congresso

Presidente sanciona partes do projeto que governo diz considerar constitucionais: decisão recebeu críticas de indígenas, ambientalistas e ruralistas

Por #Colabora | ODS 16 • Publicada em 20 de outubro de 2023 - 19:42 • Atualizada em 21 de novembro de 2023 - 08:55

Lula ao lado dos ministros Jorge Messias da AGU, Sônia Guajajara (Povos Originários) Alexandre Padilha, Relações Institucionais: veto ao marco temporal com sanção de alguns pontos do projeto aprovado no Congresso (Foto: Ricardo Stuckert / PR)

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) vetou nesta sexta-feira (20) trecho de um projeto de lei que estabelecia a promulgação da Constituição, em outubro de 1988, como marco temporal para a demarcação de terras indígenas. Lula vetou todos todas as menções à restrição das demarcações até 1988, em especial no Artigo 4º da Seção 2, que trata “das terras indígenas tradicionalmente ocupadas”. Os vetos terão de ser analisados pelo Congresso Nacional.

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Foram vetados trechos que previam a possibilidade de cultivo de produtos transgênicos e de atividade garimpeira em terras indígenas. Também foi vetado, segundo o governo, um ponto que possibilitaria a construção de rodovias em áreas indígenas. O presidente anunciou que vetou trechos da proposta em uma rede social. “Vetei hoje vários artigos do Projeto de Lei 2903/2023, ao lado da ministra Sonia Guajajara e dos ministros Alexandre Padilha e Jorge Messias, de acordo com a decisão do Supremo sobre o tema. Vamos dialogar e seguir trabalhando para que tenhamos, como temos hoje, segurança jurídica e também para termos respeito aos direitos dos povos originários”, escreveu o presidente.

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Na prática, segundo o governo, foram vetadas todas as atividades econômicas que pudessem fazer com que os indígenas perdessem o manejo da terra. Com isso foram vetadas as possibilidades de turismo (Artigo 27) e o cultivo de agrotóxicos (Artigo 30). “Inicialmente, o Ministério dos Povos Indígenas apresentou a recomendação para o veto total. Posteriormente, fizemos uma análise minuciosa, em articulação com outros ministérios, com a AGU, e conseguimos olhar os artigos que já estão garantidos na Constituição Federal, portanto poderiam estar ali preservados. Podemos considerar uma grande vitória os vetos”, afirmou a ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara.

O governo vetou ainda o Artigo 20, que instituía que “o usufruto dos indígenas não se sobrepõe ao interesse da política de defesa e soberania nacional”. O ministro Jorge Messias (Advocacia-Geral da União)Na prática, as terras poderiam ser usadas pelas Forças Armadas caso estas julgassem necessárias, argumentou que “o presidente Lula atendeu aquilo que foi decidido pelo Supremo Tribunal Federal“, em respeito ao que foi decidido pelo Judiciário. “E aquilo que ele pode preservar de contribuição do Congresso Federal para a demarcação ele preservou”, acrescentou Messias. Lula manteve os pontos “que têm coerência com a Constituição”, segundo o ministro Alexandre Padilha (Relações Institucionais), mas barrou exatamente os artigos que datavam o limite das demarcações em 1988.

Entre os trechos que Lula sancionou, estão: a previsão de que o processo de demarcação será público e com atos “amplamente divulgados” e divulgados para consulta online; a previsão de que qualquer cidadão pode ter acesso às informações relativas a demarcações de terras indígenas, inclusive estudos, laudos, conclusões e argumentações; o que diz que informações orais citadas no processo de demarcação terão efeito de prova quando apresentadas em audiências públicas ou registradas em áudio e vídeo, com a devida transcrição; o que estabelece direito das partes interessadas no processo de receber tradução oral ou escrito da língua indígena para o português e vice e versa, por tradutor nomeado pela Funai.

Críticas dos dois lados

Apesar de o governo ter acenado para os dois lados, a decisão presidencial recebeu crítica dos dois lados. Para a co-fundadora da Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade (Anmiga), Braulina Baniwa, a decisão pelo veto parcial causa preocupação: “A nossa luta, nas últimas semanas, tem sido em direção ao veto total”, pontua. “Acabamos de receber a decisão parcial do presidente. O que isso representa para nós? O Estado brasileiro sempre foi racista, um Estado que discrimina e silencia os nossos territórios desde a Constituição”, disse a líder indígena à agência Amazônia Real

Para Braulina Baniwa, o veto parcial mais uma vez mostra que o Estado tem o seu lado. “Que é o lado do poder econômico e nossos próprios territórios continuam não tendo valor para o Estado. Essa é uma leitura minha imediata”, criticou. Segundo ela, a brecha deixada pelo veto parcial não será eficiente no combate à violência aos povos indígenas. “Para nós [o veto parcial] dá brecha de muitas mortes, muito sangue das mulheres, das crianças e dos jovens indígenas”, acrescentou.

A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) reforçou que a cobrança do movimento indígena era para Lula vetar totalmente o PL. “Alertamos sobre a necessidade dos vetos parciais serem mantidos pelos parlamentares. É necessário seguirmos mobilizados, pois a luta ainda não acabou. A ala ruralista do Congresso Nacional ainda pode derrubar todos esses vetos e aprovar essa lei que legitima crimes contra os povos indígenas”, disse a entidade em nota.

A Apib aponta para dois trechos que não foram integralmente vetados por Lula, e que, para a organização indígena, traz maiores preocupações sobre violações aos direitos indígenas: o Artigo 26, que trata sobre cooperação entre indígenas e não indígenas para exploração de atividades econômicas e pode ampliar o assédio nos territórios para flexibilizar o usufruto exclusivo; e o Artigo 20 que afirma que o usufruto exclusivo não se sobrepõe ao interesse da política de defesa e soberania nacional.

Dinamam Tuxá, coordenador executivo da Apib, demonstrou frustação com veto apenas parcial. “Há que se falar, sim, de forma positiva sobre os vetos. Isso temos que reconhecer”, afirmou à Agência Pública . “Pela perspectiva do governo, pode ter sido uma vitória ter alcançado o veto parcial. Mas, para o movimento indígena, acaba sendo frustrante, porque esperávamos o veto total e lutamos para isso. Então, não há que se falar em vitória [para o movimento indígena]”, declarou.

O Greenpeace também criticou Lula. “Ao vetar parcialmente o PL 2903, o presidente Lula perdeu uma excelente oportunidade de colocar em prática o que afirmou durante a COP do Egito. Na ocasião, ele assinalou de maneira clara que o Brasil se juntaria aos esforços globais para a construção de um planeta mais saudável e justo. Na prática, o veto parcial do PL 2903 vai na contramão do compromisso assumido com o mundo”, afirmou o o porta-voz do Greenpeace Brasil, Danicley de Aguiar. “Com o veto apenas parcial do PL 2903, Lula atende aos interesses de uma minoria privilegiada. É grave e preocupante que o presidente da república tenha cedido à pressão da bancada ruralista. O PL 2903 nada mais é do que uma tentativa do agronegócio de dificultar a demarcação de terras indígenas”, atacou.

Em nota divulgada na noite desta sexta-feira, a Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) afirmou que articulará a derrubada dos vetos. “A Frente Parlamentar da Agropecuária, bancada temática e suprapartidária, constituída por 303 deputados federais e 50 senadores em exercício, informa que os vetos realizados pela Presidência da República à Lei do Marco Temporal serão objeto de derrubada em Sessão do Congresso Nacional”, diz o comunicado. “A decisão dos dois plenários [Câmara e Senado] é soberana e deve ser respeitada pelos demais Poderes da República, em reconhecimento às atribuições definidas na Constituição Federal”, completa a FPA.

Presidente do Congresso, o senador Rodrigo Pacheco afirmou que os vetos não devem ser analisados ainda este mês e não fez previsão sobre uma data de votação. O senador disse, ainda, ter recebido sinalizações de lideranças do Senado de que poderão ser mantidos vetos de dispositivos que “nem diziam muito respeito a marco temporal”, na sua visão. “O cerne da questão, que é o marco temporal em si, é um tema um pouco mais polêmico, porque é uma tendência do Congresso Nacional em acreditar que ele deve ser incluído no ordenamento jurídico e, aí, o veto será apreciado em sessão oportuna do Congresso Nacional”, acrescentou Pacheco, apontando para uma tendência de derrubada do veto ao marco temporal.

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