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A Democracia e seu caminho da Candelária à Cinelândia

ODS 16 • Publicada em 1 de novembro de 2022 - 08:40 • Atualizada em 2 de novembro de 2022 - 09:58

Chove forte na Candelária, na tarde de sexta-feira, dois dias antes da eleição de Lula para seu terceiro mandato de Presidente da República. Com o temporal, parte da multidão concentrada ali para a última caminhada de campanha no Rio, prevista para ir em direção à Cinelândia, protege-se com guarda-chuvas e capas – vendidos pelos infalíveis ambulantes cariocas – enquanto outros aglomeram-se debaixo das marquises dos prédios próximos à Igreja de Nossa Senhora da Candelária.

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O primeiro templo católico neste ponto do Rio de Janeiro foi erguido, por volta de 1630, por um casal de espanhóis que, surpreendido por uma tempestade na travessia do Atlântico, prometeu à Nossa Senhora da Candelária uma capela se chegasse à terra firme. A embarcação de Antônio Martins da Palma e Leonor Gonçalves chegou intacta ao porto do Rio e eles cumpriram a promessa, erguendo a pequena capela voltada para o mar. Mais de cem anos se passaram até a Candelária começar a ganhar a forma de hoje: em 1775, começou a construção da nova igreja – inaugurada parcialmente em 1811 mas só concluída em 1898, com três naves e suas torres com mais de 60 metros de altura, sempre de frente para a Baía de Guanabara.

Comício da campanha de Lula na Candelária: trajeto da democracia no Centro do Rio (Foto: Oscar Valporto)
Comício da campanha de Lula na Candelária: trajeto da democracia no Centro do Rio (Foto: Oscar Valporto)

Quatro séculos depois da primeira capela ser erguida, os manifestantes pró-Lula estão reunidos atrás da igreja, voltados para a Avenida Getúlio Vargas, aberta no começo dos anos 1940, com quatro pistas para veículos e quase quatro quilômetros de extensão. Somos poucas centenas neste ponto da cidade, que já foi palco dos mais memoráveis comícios da democracia brasileira. Em 1984, foi calculado em 1 milhão de pessoas a multidão reunida na campanha pelas Diretas-Já: quem esteve lá não esquece do mar de gente ocupando a avenida.

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A história política do Brasil estava reunida no palanque: o governador de Minas Gerais, Tancredo Neves, ministro de Getúlio Vargas, primeiro-ministro no breve parlamentarismo brasileiro após a posse de João Goulart; o governador do Rio de Janeiro, o gaúcho Leonel Brizola, ex-governador de seu estado; o governador de São Paulo, Franco Montoro; o jurista Sobral Pinto, defensor de presos políticos durante a ditadura do Estado Novo e a durante a ditadura militar que terminava; o deputado Ulysses Guimarães, o Sr. Diretas, presidente do PMDB e futuro presidente da Constituinte, o senador Fernando Henrique Cardoso e o sindicalista Luiz Inácio Lula da Silva, fundador do PT. Mais de 50 pessoas discursaram e chovia quando a cantora Fafá de Belém entoou o Hino Nacional para encerrar o comício.

Comício pelas Diretas-Já na Candelária: palanque histórico e público calculado em 1 milhões de pessoas (Foto: Reprodução - 10/04/1984)
Comício pelas Diretas-Já na Candelária: palanque histórico e público calculado em 1 milhão de pessoas (Foto: Reprodução – 10/04/1984)

Neste fim de tarde de 28 de outubro, é Lula o responsável por reunir tanta gente, no palanque e na praça, disposta a enfrentar a chuva que só faz engrossar. Não é a primeira vez: a emenda das Diretas-Já não passou pelo Congresso e a primeira eleição para presidente após o fim da ditadura ficou para 1989. Lula chegou ao segundo turno contra Fernando Collor – jovem governador de Alagoas, com discurso populista e liberal. Como em 2022, subiram ao palanque do candidato do PT democratas de todas as correntes: no comício do Rio, nesta mesma Candelária, estavam os tucanos Mário Covas, governador de São Paulo e candidato a presidente, Fernando Henrique e José Serra; o incansável Leonel Brizola, que, após ficar pouco atrás de Lula no primeiro turno, promoveu uma histórica transferência de votos do Rio para o petista, o governador de Pernambuco, Miguel Arraes, além de artistas como Chico Buarque e Caetano Veloso.

De volta à sexta-feira chuvosa no Rio de Janeiro, os políticos se revezam no alto da caminhão que serve de palanque. A emoção na Candelária lembra 1984 e 1989 porque novamente os democratas estão mobilizados e unidos. Fala Luiz Paulo Correa da Rocha, deputado estadual com cinco mandatos pelo PSDB e agora mais um pelo PSD; fala o ex-ministro Carlos Minc, também deputado estadual a caminho do 10º mandato, agora pelo PSB; falam as jovens estrelas do Psol, as deputadas Talíria Petrone (federal) e Renata Souza (estadual); fala a deputado federal Jandira Feghali, reeleita para seu oitavo mandato sempre pelo PCdoB; fala Carlos Lupi, herdeiro de Brizola na presidência do PDT; fala o prefeito do Rio, Eduardo Paes, novidade em campanhas presidenciais petistas; e falam as potentes mulheres tão representativas desta campanha: a deputada federal (e ex-governadora, ex-senadora, ex-ministra e fundadora do PT) Benedita Silva, enfrentando a chuva aos 80 anos; a senadora Simone Tebet, candidata derrotada à Presidência, vitoriosa no resgate da resgate da história democrática do PMDB de Ulysses Guimarães, e a ex-senadora e ex-ministra Marina Silva, eleita deputada federal, símbolo da defesa do Meio Ambiente e da Amazônia.

Militantes do PT na Cinelândia após ato da campanha de Lula na Candelária: palcos da democracia no Centro do Rio (Foto: Oscar Valporto)
Militantes do PT na Cinelândia após ato da campanha de Lula na Candelária: palcos da democracia no Centro do Rio (Foto: Oscar Valporto)

O temporal cancela a caminhada até a Cinelândia, outro palco histórico das manifestações democráticas no Rio de Janeiro. Da Praça Floriano Peixoto, das escadarias do Palácio Pedro Ernesto (hoje sede da Câmara Municipal, saiu a Passeata dos 100 Mil, contra a ditadura, em 1968, que também passou pela Candelária, até acabar no Palácio Tiradentes; ali se concentraram os manifestantes em defesa da campanha pela Anistia – ampla, geral e irrestrita – em 1979. O anistiado Leonel Brizola fez seu maior comício na campanha que o levou ao governo do Rio em 1982 exatamente na Cinelândia onde seus seguidores passaram a fazer ponto e levaram a criação do termo Brizolândia. Em todas as campanhas – para o governador e presidente – desde a redemocratização, o trajeto carioca passa por aqui.

Quando a noite desta sexta de 2022 chega, a chuva está parando. Manifestantes encharcados levam suas bandeiras para o Amarelinho, mais tradicional bar da Cinelândia, ponto de encontro de militantes, e para a Banca do André, novo point de juventude, música e política, do outro lado da praça. Muitos estarão de volta à Cinelândia no domingo à noite quando a vitória de Lula for confirmada: a comemoração, com ou sem chuva, do reencontro com a democracia e com a esperança, será pelas ruas do Rio – como também pelas de São Paulo, de Salvador, de Fortaleza e de quase todo o Brasil que deseja reconstruir seu caminho para o futuro.

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