Programa de 400 anos das Missões Jesuíticas Guaranis perpetua marginalização dos povos indígenas no sul

Ministério Público Federal abriu inquérito civil contra o governo gaúcho. Programa de R$50 milhões destina 0,6% dos recursos aos guaranis

Por Micael Olegário | ODS 16
Publicada em 23 de setembro de 2025 - 09:51  -  Atualizada em 23 de setembro de 2025 - 10:11
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Coral Mbyá-Guarani durante cerimônia de reconhecimento do Sítio Arqueológico de São Miguel das Missões como patrimônio do Mercosul (Foto: Mauro Vieira/Ministério da Cidadania – 08/02/2019)

Apenas 0,6% ou R$330 mil dos mais de R$50 milhões destinados pelo governo do Rio Grande do Sul para o programa 400 anos das Missões Jesuíticas Guaranis serão destinados para as comunidades guaranis. A desigualdade na distribuição dos recursos e a exclusão dos povos indígenas da possibilidade de participar efetivamente da iniciativa levou o Ministério Público Federal (MPF) a abrir um inquérito civil contra o governo estadual.

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O programa foi criado com objetivo de celebrar o início da colonização do Rio Grande do Sul por padres jesuítas, em 1626. Para isso, o governo estadual adotou o tradicional modelo de progresso que caracteriza o processo colonial: investimentos em obras de infraestrutura, como estradas, parques e praças. Para quem, como este repórter, cresceu na região das Missões, o modus operandi que marginaliza os saberes de povos tradicionais e promove o avanço do des-envolvimento sobre a natureza não surpreende.

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O inquérito cita oitiva realizada junto ao Conselho Estadual dos Povos Indígenas (CEPI-RS), única entidade indígena entre as 45 que fazem parte da comissão oficial do programa. “Representantes do Conselho Estadual dos Povos Indígenas confirmaram que sua participação é simbólica e que não foram consultados sobre as prioridades e os investimentos do programa”, aponta o MPF.

A ação menciona a apropriação cultural do legado histórico das Missões Jesuíticas Guaranis, agrupamentos que eram habitados majoritariamente pelos indígenas. “O programa, ao adotar a visão do colonizador, celebra a arquitetura e a estrutura das reduções — o legado material deixado em ruínas —, mas silencia sobre a história, a cultura e o presente do povo que as construiu e habitou”. A iniciativa também viola a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), do qual o Brasil é signatário e que prevê a escuta dos povos indígenas em iniciativas que os impactem.

Professora e cineasta guarani, Patrícia Ferreira Ixapy descreveu, em entrevista publicada em agosto, o que a celebração das reduções jesuíticas representa para seu povo. “Para mim, são 400 anos de sofrimento e de resistência. Não tem nada o que comemorar. Para mim, são 400 anos que a gente vem perdendo parte da nossa cultura”, afirma a cineasta, que mora na mora na aldeia Ko’enju, sobreposta ao município de São Miguel das Missões (RS).

Em agosto, o MPF já havia solicitado a reestruturação do programa 400 Anos das Missões Jesuíticas Guaranis, o que não foi acatado. Em nota sobre o caso, o governo gaúcho  “reafirma que os povos indígenas guaranis estão no centro das comemorações dos 400 anos das Missões Jesuíticas Guaranis”. O texto menciona que o Estado tem feito consulta à representantes indígenas e que “o processo está em andamento e novas ações podem ser contempladas em benefícios à comunidade guarani”.

Ainda conforme a nota, os projetos contemplados pelo programa dos 400 anos das Missões Jesuíticas Guaranis “foram apresentados pelos próprios municípios e entidades da região, com o objetivo de gerar desenvolvimento econômico e social, beneficiando toda a população regional e fortalecendo a memória coletiva”. O governo argumenta que os investimentos coincidiram com a efeméride do quadricentenário, mas que se tratam de “obras de infraestrutura e projetos culturais e turísticos fundamentais para toda a população da região”.

Foto colorida de indígenas guaranis no Sítio Arqueológico de São Miguel das Missões. Na imagem, os guaranis aparecem reunidos e muitos sem camisa. Ao fundo, aparecem as ruínas das Missões
Guaranis da aldeia Koenju, de São Miguel das Missões; celebrações da colonização ignoram violências e urgências das comunidades indígenas (Foto: Daniele Pires/Reprodução)

Contexto e histórico

A região das Missões abrange uma série de municípios no noroeste do Rio Grande do Sul. Em sua maioria, são cidades pequenas, com menos de 30 mil habitantes, com forte ligação com a agricultura e a pecuária familiar, mas também com o agronegócio. No contexto estadual, principalmente em termos de investimentos públicos, a região pode ser descrita como uma periferia, em comparação com a região metropolitana de Porto Alegre e a Serra gaúcha, por exemplo.

Os investimentos em torno de R$50 milhões representam, portanto, motivo de celebração para as comunidades e prefeituras locais, afetadas por receitas escassas e quebras de safras no contexto de mudanças climáticas. O turismo, um dos pontos centrais do programa dos 400 anos das Missões Jesuíticas Guaranis, é uma das apostas da região para movimentar e diversificar a economia. Por isso, a denúncia do MPF pode ressoar como descabida, principalmente, para uma região acostumada a fechar os olhos para a história anterior a 1626 e para as violências da colonização no Brasil.

Existem poucas informações sobre os povos pré-coloniais que habitavam o território do Rio Grande do Sul. O que se sabe aponta para a existência de comunidades de Guaranis, Carijós, Minuanos, Charruas e Jês. Atualmente, apenas quatro etnias resistem no estado, os próprios Guaranis, os Kaingangs, os Charruas, em uma única área no extremo-sul de Porto Alegre, e os Xoklengs, apenas na Floresta Nacional de São Francisco de Paula.

Iniciadas em 1626, as missões jesuíticas tiveram dois ciclos principais, sendo que o primeiro terminou em meados de 1637 após ataques de bandeirantes. O segundo ciclo começou em 1682, com a fundação dos chamados Sete Povos das Missões, e terminou com a Guerra Guaranítica (1754-1756), quando exércitos portugueses e espanhóis, juntos, destruíram as cidades missioneiras e massacraram os guaranis. Logo após esse período, teve início um longo e violento processo de expropriação territorial, agravado durante a ditadura militar, como reconhecido pela Comissão Nacional da Verdade.

Foto colorida das ruinas de igreja missioneira em São Miguel das Missões (RS). A imagem mostra as ruínas da frente da Igreja, com estilo barroco. Ao fundo, céu azul
Programa celebra legado histórico e arquitetura missioneira, mas ignora protagonismo dos guaranis na sua construção (Foto: Divulgação/Prefeitura de São Miguel das Missões)

Realidade atual dos guaranis

Levantamento da Emater RS/Ascar, feito a partir de consulta livre às 62 comunidades guaranis do RS, mostra o contexto contemporâneo de vulnerabilidade e falta de acesso aos direitos básicos vividos por esse povo. Cabe pontuar que os dados, citados no inquérito do MPF, foram produzidos por uma entidade vinculada ao próprio governo do RS. O diagnóstico menciona problemas enfrentados em diferentes áreas, como:

  • Moradia: 92% das comunidades relatam problemas habitacionais, com 57% das moradias em condição “péssima”;
  • Acesso à Água: 37,10% das comunidades dependem de fontes externas, como caminhões-pipa, para obter água potável;
  • Saneamento: Há uma grave carência de banheiros e de sistemas de coleta de resíduos sólidos na maioria das aldeias;
  • Educação: 75% das escolas indígenas estaduais funcionam em espaços improvisados e precários, algumas ao ar livre, sem estruturas básicas como cozinhas e banheiros;
  • Questão Fundiária: Apenas 21% das comunidades Guarani no estado vivem em terras devidamente demarcadas pela União, encontrando-se a maioria em situação fundiária precária (terras públicas estaduais, áreas municipais, acampamentos em margens de rodovias).

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A partir dos dados da Emater RS/Ascar, o MPF argumenta que o programa ignora as necessidades mais urgentes do povo Guarani. A ação solicita a suspensão das obras e repasses de recursos até que o programa seja reestruturado, com garantia de participação efetiva dos guaranis. O MPF também estabelece que o Estado realize um ato público de pedido formal de desculpas aos indígenas e pague R$ 49 milhões em danos morais coletivos, a ser destinado para a melhoria das condições de vida nas aldeias.

Recentemente nomeado como doutor honoris causa pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e reconhecido como um dos quatro troncos missioneiros (grupo de artistas responsáveis por divulgar a cultura das Missões), Pedro Ortaça denuncia a invisibilidade das comunidades guaranis em suas músicas. Na sua mais recente canção, lançada no início de agosto, o artista descreve a marginalização dos indígenas e o que a colonização representou para essas comunidades. “Antes de vir a cruz / com as promessas cristãs / havia esperança e luz”, canta Ortaça, ecoando algo que os guaranis e outros povos tradicionais apontam há muito tempo.

Micael Olegário

Jornalista formado pela Universidade Federal do Pampa (Unipampa). Gaúcho de Caibaté, no interior do Rio Grande do Sul. Mestrando em Comunicação na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Escreve sobre temas ligados a questões socioambientais, educação e acessibilidade.

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