Organizações rechaçam megaempreendimentos na Amazônia

A ativista Neidinha Suruí com a filha Txai Suruí em vídeo no encerramento do encontro do GT Infraestrutura. Foto Rodrigo Vargas

Modelo de desenvolvimento atual não atende às demandas socioambientais em cenários de violência, crise climática e de perda de biodiversidade sem precedentes

Por Elizabeth Oliveira | ODS 15 • Publicada em 13 de julho de 2022 - 09:55 • Atualizada em 30 de novembro de 2023 - 15:15

A ativista Neidinha Suruí com a filha Txai Suruí em vídeo no encerramento do encontro do GT Infraestrutura. Foto Rodrigo Vargas

Alter do Chão (PA)* – Há décadas, os megaprojetos de infraestrutura instalados na Amazônia têm causado altos impactos socioambientais e trazido resultados socioeconômicos aquém das expectativas para as comunidades locais. Cansadas de assumirem o ônus por grandes obras que afetam seus modos de vida, desagregam seus grupos sociais e degradam a natureza, representações da sociedade civil reunidas em encontro do GT Infraestrutura e Justiça Socioambiental (rede formada por mais de 40 organizações e pesquisadores de referência) rechaçaram os megaempreendimentos e reafirmaram a necessidade de garantir a floresta de pé como a infraestrutura vital ao futuro da região e de seus povos. Na Carta de Alter, documento construído entre 4 e 6 de julho, durante o evento realizado em Alter do Chão (PA), foram pactuadas as recomendações que serão enviadas aos presidenciáveis.

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Após a leitura das recomendações inseridas na Carta de Alter, pela sua mãe, a ativista de direitos humanos, Neidinha Suruí, a jovem ativista indígena, Txai Suruí, enviou uma mensagem, por vídeo, destacando a importância de se pensar na necessidade de reconstrução do Brasil e nesse contexto de não se perder a esperança de “salvar a floresta”. Para ela, nesse processo, “os sonhos também são resistência” e não por acaso defendeu que “não podemos deixar de sonhar e de construir o futuro que a gente quer”.

A Amazônia é a maior fábrica de vida do planeta

Caetano Scannavino
Coordenador do Projeto Saúde & Alegria

Maura Arapiun, secretária do Conselho Indígena Tapajós Arapiuns, deu o tom de questionamento crítico sobre como falar de infraestrutura na Amazônia se o modelo que se consolidou na região, historicamente, tem desrespeitado os povos e todas as formas de vida da floresta. “Infraestrutura para nós indígenas é a floresta viva”, afirma. “Queremos um desenvolvimento que respeite os povos que aqui habitam e a minha ancestralidade. Consultem-nos”, acrescenta a líder indígena que também reafirmou o posicionamento das comunidades contrárias ao garimpo que assola a região.

Maura Arapiun defende a floresta como infraestrutura vital. Foto Rodrigo Vargas
Maura Arapiun defende a floresta como infraestrutura vital. Foto Rodrigo Vargas

Sobre a desafiadora missão de construção de um futuro digno para a Amazônia e seus povos, Sérgio Guimarães, secretário-executivo do GT Infraestrutura, destaca que a expectativa das organizações é ver a Carta de Alter contribuir para um grande debate nacional no período eleitoral. O ambientalista considera que o momento é oportuno para se pensar em alternativas de reconstrução do país, em bases sustentáveis, após um ciclo político-institucional histórico de desmonte de políticas públicas socioambientais e de graves violações de direitos humanos na região.

Nesse contexto, Guimarães ressalta que a Amazônia tem estado em um processo, sem precedentes, de avanço da degradação ambiental e da violência contra seus povos e comunidades tradicionais, assim como contra os seus defensores. Os assassinatos do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips, em 5 de junho, Dia Mundial do Meio Ambiente, no Vale do Javari (AM), ilustram o cenário preocupante, segundo enfatizou. “A população brasileira precisa reconhecer a importância vital da Amazônia”, defende. Ele advoga, ainda, que a sociedade pressione, cada vez mais, os financiadores de obras de infraestrutura na região.

A infraestrutura precisa se converter na inteligência do desenvolvimento

Ricardo Abramovay
Professor do Programa de Ciência Ambiental do IEE/USP

Ao convidar o público presente para homenagear as lideranças indígenas e comunitárias assassinadas na Amazônia, Caetano Scannavino, coordenador do Projeto Saúde & Alegria, enfatizou a importância de fortalecimento das lutas socioambientais e do poder de pressão da sociedade na região. Para ele, as articulações serão fundamentais para evitar que megaprojetos de infraestrutura previstos comprometam a natureza e os grupos sociais em bacias hidrográficas amazônicas de grande importância como as dos Rios Tapajós, Xingu e Madeira, fortemente pressionados pelo garimpo e outras ilegalidades. “A Amazônia é a maior fábrica de vida do planeta”, afirma.

A ativista Neidinha Suruí também enfatizou a importância das lutas socioambientais na região para fazer frente ao cenário de violência e pressão. “Mais do que um minuto de silêncio, a gente tem que lutar”, conclama. E propôs um grito de saudação por todos os que perderam a vida em defesa da floresta e de seus povos. “Presente é o nosso grito de resistência.”

Confiante na retomada dos debates sobre o presente e o futuro da Amazônia e, principalmente, diante da possibilidade de reencontros presenciais como o realizado em Alter do Chão, Adriana Ramos, assessora política e de Direito Socioambiental do Instituto Socioambiental (ISA) afirmou que “não será a Amazônia da violência e do garimpo que vai fazer a gente chegar aonde a gente quer.”

Inteligência do desenvolvimento

Antes de lançar o livro Infraestrutura para o desenvolvimento sustentável da Amazônia (editora Elefante), em Alter do Chão, no dia 6 de julho, o economista Ricardo Abramovay, professor sênior do Programa de Ciência Ambiental do IEE/USP, afirmou estar emocionado após três dias de amplos debates promovidos pelo GT Infraestrutura e pelos reencontros com especialistas e lideranças comunitárias da Amazônia.

Em uma rodada de encerramento do encontro juntamente com a líder indígena Maura Arapiun e a professora Ana Rosa, ativista da organização Engajamundo, o pesquisador que tem se dedicado, há décadas, aos estudos sobre desenvolvimento, afirmou que a noção de infraestrutura está sendo revista, globalmente, por ser parte de um modelo em crise que tem suscitado inúmeros questionamentos mundo afora. “A infraestrutura precisa se converter na inteligência do desenvolvimento”, advoga.

Tendo desenvolvido uma ampla pesquisa sobre o tema e realizado uma série de entrevistas com especialistas e lideranças conhecedores da realidade amazônica, para produzir a mais nova publicação (uma demanda do GT Infraestrutura), Abramovay afirmou que essa revisão, assim como a mudança de rumos do processo de desenvolvimento socioeconômico são vitais para a humanidade e para a biodiversidade, sobretudo, em contexto de agravamento da crise climática. O tema tem relevância ainda mais fundamental para regiões de grande importância nacional, regional e global como a Amazônica que abriga a maior floresta tropical do mundo e uma diversidade cultural ímpar.

O economista Ricardo Abramovay, um dos participantes dos debates sobre infraestrutura em Alter do Chão. Foto Rodrigo Vargas
O economista Ricardo Abramovay, um dos participantes dos debates sobre infraestrutura em Alter do Chão. Foto Rodrigo Vargas

Outro modelo de desenvolvimento

Na mesma perspectiva das lideranças indígenas, como Maura Arapiun, Abramovay reconhece “que a floresta é a mais importante infraestrutura da Terra” por prover a sociedade de bens essenciais ao desenvolvimento humano e ao equilíbrio ecológico global como regulação climática, água e biodiversidade, além de resguardar valores culturais inestimáveis.

Outra das três conclusões às quais chegou na publicação em termos de infraestrutura envolve a “economia do cuidado” que se relaciona com a garantia de acesso a serviços essenciais como saúde e educação, assim como com a superação do racismo e das desigualdades sociais, medidas que considera centrais ao enfrentamento da crise climática.

A terceira infraestrutura essencial se refere ao uso sustentável da sociobiodiversidade florestal, envolvendo de forma desafiadora a garantia de meios materiais para favorecer as condições de vida e trabalho das pessoas, tendo como exemplo, o beneficiamento dos produtos da floresta, processo que garantiria as melhores condições de armazenamento e evitaria a exploração de povos indígenas e outros grupos sociais.  Acesso à internet e a outras ferramentas para facilitar a comercialização também é fundamental. Tudo isso sem perder de vista que a ampliação da escala deve respeitar as condições de oferta dos ecossistemas e os valores culturais locais.

Por fim, ele discute a importância da organização coletiva e das infraestruturas imateriais, como as formadas por sindicatos, associações, cooperativas e outras redes que se articulam em defesa de territórios pressionados por um modelo de desenvolvimento insustentável e, também, lutam por viabilizar atividades econômicas. O papel de selos que garantam a origem e qualifiquem perante os consumidores as comunidades que extraíram e beneficiaram os produtos da floresta que chegam ao mercado é considerado fundamental. Um exemplo mencionado é o do selo Origens do Brasil. “A cultura material e imaterial dos povos da floresta deve ser considerada uma infraestrutura decisiva para que continuem a viver e valorizar os territórios que lhes pertencem”, afirma o autor no capítulo do livro que discute esse enfoque.

“As cidades também precisam de infraestrutura urbana que se inspire nas soluções baseadas na natureza”, observa Abramovay no encerramento do evento. O pesquisador também afirma que na perspectiva de se rever a noção de infraestrutura é fundamental que a agropecuária deixe de ser altamente impactante para a natureza e ressalta, ainda, que desenvolvimento sustentável não é sinônimo de crescimento econômico e que não se pode perder de vista “os limites que a natureza nos impõe”. “A natureza tem que estar no coração das decisões econômicas”, defende. Para ele, não há outro caminho possível para compatibilizar a luta contra a crise climática, a fome e as desigualdades sociais.

No novo livro, Abramovay buscou responder à seguinte pergunta apresentada pelo GT Infraestrutura: “Quais as infraestruturas necessárias à melhoria da qualidade de vida das pessoas, na Amazônia, e a suas atividades produtivas vinculadas ao uso sustentável da biodiversidade?”. A questão tem importância central para se pensar sobre o presente e o futuro de uma região que tem mais de 29,6 milhões de habitantes, onde a natureza e as populações tradicionais estão cada vez mais pressionadas por um modelo de desenvolvimento esgotado, segundo as principais discussões e conclusões do encontro de Alter do Chão.

Dentre outros aspectos contemplados na publicação, ele também defende a criação do Observatório das Infraestruturas com foco no uso sustentável da biodiversidade amazônica. Esse ambiente deve promover o diálogo “com as políticas públicas de infraestrutura da Amazônia e de influência sobre as decisões governamentais”. Da mesma forma, deve estabelecer e acompanhar metas quantificáveis que permitam melhorar os indicadores de saúde, educação, saneamento e tratamento de resíduos sólidos, dentre alguns dos mais baixos do país. Sugere, ainda, a criação do “Sebrae da floresta” com enfoque “em formar capacidades para os desafios da economia da sociobiodiversidade florestal”.

Paisagem de Alter do Chão localidade do Pará muito procurada para turismo ecológico. Foto Elizabeth Oliveira
Paisagem de Alter do Chão localidade do Pará muito procurada para turismo ecológico. Foto Elizabeth Oliveira

Recomendações da Carta de Alter

  • Retomar as ações de comando e controle na Amazônia e em outros biomas, como o Cerrado, acabando com essa cultura onde o “ilegal” é “legal”. Reestruturar urgentemente as instituições públicas responsáveis pelo combate à economia da destruição, que consome rios e florestas, viola direitos humanos e aprofunda a desigualdade social. 
  • Garantir a aplicação de políticas de proteção dos defensores da floresta e dos Direitos Humanos, mitigando riscos, para que essas pessoas possam seguir suas lutas junto com os povos indígenas, quilombolas, extrativistas e ribeirinhos. Fortalecer a campanha Vida Por Um Fio: Autoproteção das Comunidades e Lideranças Ameaçadas e a rede de proteção, nacional e em cada estado.
  • Discutir um modelo novo de logística para a Amazônia, repensando prioridades e institucionalizando o processo decisório, resultando em boas práticas de planejamento, incluindo a avaliação de alternativas, ampla participação da sociedade em todas as etapas e o atendimento às demandas de promoção dos produtos da sociobiodiversidade.
  • Revisar de forma transparente, os projetos de infraestrutura de logística de transportes de cargas atualmente previstos no Programa de Parceria de Investimentos (PPI).
  • Fortalecer políticas públicas de planejamento e licenciamento ambiental de obras de infraestrutura, com o objetivo de permitir melhores escolhas que maximizem benefícios para a sociedade e que evitem a repetição de desastres e as violações de direitos.  
  • Envolver os beneficiários das comunidades no desenvolvimento de modelos energéticos distribuídos para a transição energética justa e inclusiva, garantindo energia limpa e de qualidade para todos e antecipando as metas de universalização do governo federal e dando condições energéticas para o desenvolvimento sustentável local.
  • Adotar políticas efetivas de incentivo para o aumento da mini e micro geração distribuída na região amazônica, como contribuição à matriz elétrica nacional e a uma transição energética verdadeiramente justa e popular.
  • Reivindicar um processo de moratória para novos grandes empreendimentos energéticos na Amazônia enquanto não houver a revisão do Plano Nacional de Energia à luz dos compromissos climáticos do país. 
  • Considerar o desenvolvimento urbano como processo fundamental para a sustentabilidade e bem-estar humano na Amazônia, com infraestruturas adequadas ao contexto local. Cidades e assentamentos humanos devem ser protagonistas na implementação de medidas de conservação socioambiental, de promoção da diversidade sociocultural e de mitigação e adaptação às mudanças climáticas.
  • Adotar medidas para proteger os rios, elementos vitais para a manutenção da vida e da diversidade no ambiente amazônico. Apoiar o monitoramento de ações relacionadas ao estresse antropogênico imposto aos rios, bem como aquelas de suporte à manutenção dos recursos hídricos e da integridade dos sistemas fluviais.
  • Respeitar o direito de consulta e consentimento livre, prévio e informado dos povos indígenas e outras populações tradicionais e fortalecer políticas de governança. 
  • Estruturar um plano integrado de combate ao garimpo em terras indígenas, a fim de fazer cumprir a vedação constitucional desta atividade nestes territórios. Reconhecer que o garimpo não é um vetor de desenvolvimento da Amazônia e que precisa ser substituído em benefício de outras cadeias produtivas, capazes de conviver com a floresta e os rios, assegurar direitos e reduzir a desigualdade social.
  • Promover e aprimorar o controle social, em todo o ciclo da infraestrutura, incluindo uma maior aproximação das organizações da sociedade civil e representantes de povos com os tribunais de contas. 
  • Garantir a transparência dos processos decisórios e o acesso à informação de forma integral, acessível e em tempo real sobre políticas, planos e projetos específicos, promovendo a integridade e o combate à corrupção nas entidades, órgãos públicos e empresas do setor de infraestrutura.
  • Responsabilizar instituições financeiras e empresas para que tenham a obrigação de assumir compromissos e mecanismos robustos a respeito dos direitos humanos, da proteção ambiental e da construção de uma economia sustentável.
  • Incentivar atividades econômicas que priorizem as pessoas e a manutenção da floresta e dos rios. Usar o BNDES e outros recursos para apoiar pequenos produtores numa economia da sociobiodiversidade.

(*) A repórter Elizabeth Oliveira viajou a convite do GT Infraestrutura

Elizabeth Oliveira

Jornalista apaixonada por temas socioambientais. Fez doutorado pelo Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas, Estratégias e Desenvolvimento (PPED), vinculado ao Instituto de Economia da UFRJ, e mestrado em Ecologia Social pelo Programa EICOS, do Instituto de Psicologia da UFRJ. Foi repórter do Jornal do Commercio do Rio de Janeiro e colabora com veículos especializados, além de atuar como consultora e pesquisadora.

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