Fumaça das queimadas no sul do Amazonas atinge Manaus

Focos de incêndio disparam no estado no final de agosto, impactando o sistema de saúde e causando outros problemas à população

Por Amazônia Real | ODS 15 • Publicada em 5 de setembro de 2023 - 08:56 • Atualizada em 21 de novembro de 2023 - 19:30

Queimada em desmatamento recente na Gleba Abelhas, floresta pública no município de Canutama, no sul do Amazona, área que, ao lado da Região Metropolitana de Manaus, concentraram focos de incêndio em agosto no estado (Foto: Marizilda Cruppe / Greenpeace – 03/08/2023)

(Wérica Lima* – Manaus/AM) – Na madrugada de sexta-feira (01/09), um cheiro forte de fumaça invadiu as casas em Manaus (AM), como resultado de incêndios de grandes proporções que acontecem em Autazes e Careiro da Várzea, municípios localizados no interior do Amazonas, segundo os dados do Programa Queimadas do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). O mês começou e a temporada de queimadas, intensificada pelo fenômeno El Niño, já chega com força no estado.

Leu essa? Amazônia e Cerrado: em junho, maior número de queimadas desde 2007

Na última quinzena de agosto, o Amazonas liderou o ranking de queimadas na Amazônia. No mês Foram 5.474 focos do início de agosto até agora, sendo que 4.128 ocorreram nos últimos 16 dias. Esse número corresponde a 35,4% dos focos de calor de toda a Amazônia Legal, segundo o satélite de referência do Inpe. “São muitos focos em Autazes e no sul de Careiro da Várzea, com vento soprando de sul-sudeste para norte-noroeste em direção a Manaus. Direção da trajetória parecida com a da pluma saindo dos focos do município de Manaquiri e chegando em Manacapuru”, explica o coordenador do Programa de Monitoramento de Queimadas e Incêndios Florestais por Satélites do Inpe, Alberto Setzer.

Nas últimas 48 horas de agosto, os números pioraram. Sete dos 10 municípios com mais focos na Amazônia Legal estão concentrados no Amazonas, de acordo com números desta sexta: Autazes (8,7%), Apuí (7,2%) e Humaitá (7%) lideram o ranking, seguidos de Maués (6%), Tefé (5,2%), Lábrea (4%) e Boca do Acre (3,5%).

Gostando do conteúdo? Nossas notícias também podem chegar no seu e-mail.

Veja o que já enviamos

Desde o início do ano, o desmatamento tem caído na Amazônia brasileira. De janeiro até julho, a queda foi de 42,5%. Em contrapartida, os picos de focos de calor bateram recordes em junho, mês que registrou 3.075 focos, o que não acontecia há 16 anos. Em agosto, o estado do Amazonas teve redução de 32% nos focos de calor (5.474 focos de calor no Amazonas, contra 8.116 focos registrados no mesmo mês, em 2022).

Sem dúvida nenhuma o fato da gente estar entrando no período de El Niño forte preocupa bastante, principalmente em função da capacidade muito limitada que o estado tem de combate desses focos aqui na região de Manaus

Fabiano Silva
Coordenador executivo da Fundação Vitória Amazônica

De acordo com o Inpe, as regiões que mais concentram focos de calor são o Sul do Amazonas e a Região Metropolitana de Manaus, que tiveram 3.252 e 577 notificações, respectivamente. A quantia representa 69,9% do total de focos registrados ao longo do mês em todo o estado. Do total de focos na Região Metropolitana, 194 ocorreram somente entre os dias 26 e 31, resultando na alta densidade de material particulado sobre a capital. “Hoje mesmo, vindo para cidade, o máximo que conseguimos enxergar é um metro à nossa frente por conta da fumaça. Pessoas estão fazendo queimadas para fazer campo para seu rebanho”, disse, na sexta, à Amazônia Real o professor Felipe Gabriel, do povo Mura da aldeia Lago do Soares, em Autazes.

Para ele, a situação pode ter ligação com o julgamento do Marco Temporal no Supremo Tribunal Federal (STF) e os debates sobre territórios indígenas . Autazes, um município de perfil ruralista, trava uma luta intensa contra o reconhecimento da Terra Indígena Soares-Urucurituba, que aguarda demarcação e pertence ao povo Mura. A região está sob pressão para exploração de potássio.

“É lamentável porque sabemos que alguns estão fazendo campos para tentar garantir seus direitos sobre as terras, com medo de serem ‘tomadas’ pelos indígenas. Nós, indígenas, não queremos expulsar ninguém”, diz Felipe. “Pelo fato de nossa cidade ser conhecida como terra do leite e, agora, como terra do potássio, as autoridades só visam a parte lucrativa. O próprio gestor do município só aparece na nossa comunidade e em algumas outras perto das eleições. O foco das autoridades é lucro. Esquecendo do essencial: saúde e educação”.

A cidade ficou coberta de fumaça, a gente teve muita dificuldade de respirar, muitas crianças adoeceram com problema de gripe, problema respiratório, foi muito complicado. A gente não conseguia nem abrir a janela de casa a partir da meia-noite porque estava cheio de fumaça

Marilurdes Cunha da Silva
Fundadora da Central das Associações Agroextrativistas do Rio Manicoré (Caarim)

Heitor Pinheiro, analista de processamento da Fundação Vitória Amazônica (FVA), afirma que o cenário tende a piorar na região. “Essa fumaça que cobriu Manaus veio da região de Autazes, mas está generalizado, todo canto pegando fogo”. Ele ressalta que, além do sul do Amazonas, outras partes do estado, como o município de Presidente Figueiredo, têm focos de calor e estão com as brigadas voluntárias da FVA em plena ação.

Entre os fatores que preocupam os cientistas esse ano em relação às queimadas na Amazônia está a chegada do fenômeno climático El Niño, que pode intensificar e prolongar o período de queima. “Este ano, especialmente em função do El Niño, as florestas ficam mais secas e mais propensas ao fogo. Isso aumenta consideravelmente a dificuldade de controle desses eventos de pequenos focos de calor que podem se alastrar e se tornar incêndios maiores”, explica o coordenador executivo da FVA, Fabiano Silva. “Sem dúvida nenhuma o fato da gente estar entrando no período de El Niño forte preocupa bastante, principalmente em função da capacidade muito limitada que o estado tem de combate desses focos aqui na região de Manaus”.

De janeiro até agosto, lideram no ranking das queimadas os seguintes estados: Pará (32,3%), Amazonas (24,7%) e Mato Grosso (22,3%), seguidos de Rondônia (7,8%), Acre (5,8), Roraima (4,2%), Maranhão (2,2%), Tocantins (0.4%) e Amapá (0,4%).

Incêndio florestal no Sul da Amazonas: impactos na saúde da população (Foto: Marizilda Cruppe / Greenpeace - 03/08/2023)
Incêndio florestal no Sul da Amazonas: impactos na saúde da população (Foto: Marizilda Cruppe / Greenpeace – 03/08/2023)

Fumaça tóxica

A fumaça domina o dia a dia das populações amazônidas. Marilurdes Cunha da Silva, fundadora e secretária da Central das Associações Agroextrativistas do Rio Manicoré (Caarim), lida diretamente com as ameaças de grileiros que são responsáveis pelo fogo. Na semana passada, a situação era extrema em Manicoré, município que também vive no ranking das queimadas. “A cidade ficou coberta de fumaça, a gente teve muita dificuldade de respirar, muitas crianças adoeceram com problema de gripe, problema respiratório, foi muito complicado na semana passada. A gente não conseguia nem abrir a janela de casa a partir da meia-noite porque estava cheio de fumaça”, conta a liderança, que afirma que a situação amenizou, mas ainda continua difícil.

Estamos falando de repercussões negativas sobre a saúde humana plenamente evitáveis e que ocorrem no coração da Amazônia em tempos de crise climática e ambiental no planeta. É inaceitável vermos estados como o Amazonas queimarem livre e impunemente a floresta, sem se importarem com a aceleração da degradação ambiental e com a saúde dos mais vulneráveis

Jessem Orellana
Epidemiologista da Fundação Osvaldo Cruz

Jesem Orellana, epidemiologista da Fundação Oswaldo Cruz, ressalta como, no final, as consequências dos crimes ambientais recaem sobre as minorias e as pessoas vulneráveis. “Como em quase todas as mazelas socioambientais, as queimadas, quase sempre criminosas e com amplo lastro de impunidade, impactam de forma mais negativa justamente quem não comete esses crimes, incluindo vulneráveis como crianças, idosos e pessoas com doença respiratória pré-existente”, explica. “Essas consequências são ainda maiores em populações como aquelas de municípios com precária rede de atenção à saúde, quase todos do interior do Amazonas. Indígenas e ribeirinhos, por exemplo, muitas vezes sequer têm acesso oportuno e de qualidade aos serviços de saúde”.

Jesem afirma que pode haver uma sobrecarga no Sistema Único de Saúde (SUS), com os atendimentos médicos ambulatoriais e internações hospitalares, seja por doença respiratória ou até mesmo cardiovascular. “Embora não exista um padrão específico, pode ocorrer diminuição do rendimento no trabalho, prejuízo nas atividades de lazer e até mesmo repercussões psicológicas. Pode também resultar na piora de doenças pré-existentes como asma, bronquite e conjuntivite, resultando em tosse seca, sensação de falta de ar, irritação dos olhos e garganta, congestão nasal ou alergias na pele”.

Fumaça de queimadas no município de Canutama, perto da TI Juma no Sul da Amazonas: pesquisadores criticam falta de ação do estado (Foto: Marizilda Cruppe / Greenpeace - 03/08/2023)
Fumaça de queimadas no município de Canutama, perto da TI Juma no Sul da Amazonas: pesquisadores criticam falta de ação do estado (Foto: Marizilda Cruppe / Greenpeace – 03/08/2023)

Impacto evitável

Anualmente as cidades amazônicas são impactadas pelo desmatamento, queimadas e fumaça. É entre os meses de agosto e setembro que os registros mostram a fumaça abraçando as capitais. Por ser um fato evitável, os especialistas questionam a falta de comprometimento dos governos para mitigar o fogo. “Estamos falando de repercussões negativas sobre a saúde humana plenamente evitáveis e que ocorrem no coração da Amazônia em tempos de crise climática e ambiental no planeta. É inaceitável vermos estados como o Amazonas queimarem livre e impunemente a floresta, sem se importarem com a aceleração da degradação ambiental e com a saúde dos mais vulneráveis”, afirma o pesquisador.

Para o epidemiologista, faltam ações no estado. “No caso do Amazonas, não há nada específico e, ao mesmo tempo, efetivo. Algo lamentável, pois poderíamos ser um exemplo para a humanidade. Mas, infelizmente, somos o oposto, tal como na trágica gestão da epidemia de Covid-19 pelo governador Wilson Lima”, destaca Orellana.

Fabiano Silva afirma que o estado precisa fortalecer a infraestrutura e as competências de combate a focos de calor. “Até onde eu tenho a informação, o estado tem um helicóptero com capacidade baixa de combate a focos de calor e a incêndios florestais e a gente precisaria na realidade quase de um equipamento desse por calha de rio”.

Com as secas e cheias extremas, Fabiano conclui que o estado é carente de infraestrutura e equipamentos para contornar esses eventos, principalmente de seca. “Temos feito uma pressão junto aos órgãos competentes para que o estado se estruture de maneira mais robusta para evitar que a gente tenha grandes prejuízos sociais e ambientais em relação a incêndios florestais, principalmente”.

A respeito da qualidade do ar, Jesem explica que existem poucas estações de monitoramento da qualidade do ar no Amazonas, em geral localizadas em universidades públicas, com finalidade mais acadêmica.

Como opções de mitigação dos impactos das queimadas, ele sugere um monitoramento permanente da qualidade do ar, fiscalização efetiva dos crimes ambientais que resultam em queimadas e a própria orientação da população e de pessoas ligadas a atividades agrícolas em relação aos riscos de atear fogo em áreas com potencial para incêndios.

Incêndio na a Gleba Abelhas, floresta pública não destinada federal, no Sul do Amazonas: queda de queimadas no estado em agosto, mas aceleração na região (Foto: Marizilda Cruppe / Greenpeace - 03/08/2023)
Incêndio na a Gleba Abelhas, floresta pública não destinada federal, no Sul do Amazonas: queda de queimadas no estado em agosto, mas aceleração na região (Foto: Marizilda Cruppe / Greenpeace – 03/08/2023)

O que dizem as autoridades

A Amazônia Real entrou em contato com a Secretaria de Meio Ambiente do Amazonas e com a Secretaria de Comunicação do Governo do Amazonas para saber quais medidas são tomadas em relação às queimadas e às fumaças. “A respeito da fumaça sobre Manaus, a Secretaria de Estado do Meio Ambiente informa que é em decorrência de focos de calor registrados na região metropolitana. De 577 focos registrados em agosto na região, 194 ocorreram somente entre os dias 26 e 31, resultando na alta densidade de material particulado sobre a capital”, informou a secretaria, em nota.

A Secretaria do Meio Ambiente acrescentou que as altas temperaturas agravadas pelo El Niño também estão relacionadas com a dificuldade de dispersão da fumaça no ar, e que há uma diminuição dos focos com relação ao mesmo período do ano passado em 32,5% e de 21,20% de janeiro a agosto no Amazonas.

O superintendente do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Renováveis (Ibama) do Amazonas, Joel Araújo, informou que a competência de fiscalizar as áreas de onde vem a fumaça é do governo do Amazonas e do município. “O Ibama trabalha no sul do estado, principalmente em áreas federais. Nos arredores de Manaus, essa competência é do município e do estado”, afirma Joel. “A não ser que se trate de terra indígena, aí é com Ibama”.

A Fundação de Vigilância em Saúde do Amazonas (FVS) informou que entre os dias 13 e 26 de agosto foram notificados 150 casos de Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG) no Amazonas, com um aumento de 4,2% nos casos durante o período, em comparação com dias anteriores. Do total de casos, 15,3% SRAG são por outros vírus respiratórios; 14% por Covid-19; 14% não especificado; 4% por Influenza e 2% por outros agentes etiológicos. A FVS afirma que 50,7% dos casos estão em investigação.

A Prefeitura de Manaus lançou a campanha “Manaus Sem Fumaça”, para alertar a população sobre os impactos das queimadas. A administração municipal afirma que a fumaça tem origem principalmente nas atividades de agricultura familiar que existem em Manaus e nos municípios vizinhos. “Não há números expressivos de desmatamentos na área do município de Manaus. Existem pequenas intervenções na área de floresta”, diz nota da prefeitura.

*Wérica Lima é formada em comunicação social com ênfase em jornalismo pela Universidade Nilton Lins e estudante de Ciências Biológicas no Instituto Federal do Amazonas (IFAM). Trabalhou na assessoria do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA) e publicou artigos pela Climate Tracker, organização internacional que apoia o jornalismo climático

Amazônia Real

A agência de jornalismo independente Amazônia Real é organização sem fins lucrativos, sediada em Manaus, no Amazonas, que tem a missão de fazer jornalismo ético e investigativo, pautada nas questões da Amazônia e de sua população, em especial daquela que tem pouca visibilidade na grande imprensa, e uma linha editorial em defesa da democratização da informação, da liberdade de expressão e dos direitos humanos.

Newsletter do #Colabora

A ansiedade climática e a busca por informação te fizeram chegar até aqui? Receba nossa newsletter e siga por dentro de tudo sobre sustentabilidade e direitos humanos. É de graça.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *