COP16 chega ao fim com criação de órgão subsidiário indígena e inclusão de afrodescendentes

Povos originários e comunidades locais conquistaram direito a 50% de fundo de benefícios atrelado a informações de sequência digital (DSI)

Por Bibiana Maia | ODS 15 • Publicada em 2 de novembro de 2024 - 17:11 • Atualizada em 7 de novembro de 2024 - 13:24

Membros de comunidades indígenas de diferentes países festejam a criação do órgão subsidiário que os representa na Convenção sobre Diversidade Biológica da Cúpula COP16, em Cali, na Colômbia. Foto Joaquin Sarmiento/AFP

Pode-se dizer que a COP16 é a COP que nunca acabou. A conferência deveria ter sido encerrada nesta sexta-feira (01/11), mas as negociações entraram pela madrugada até serem suspensas por falta de quórum. Delegações foram deixando a cidade de Cali, na Colômbia, o que impossibilitou prosseguir com as decisões pendentes sobre mecanismos financeiros. Antes, foram garantidos acordos que, enfim, reconhecem a luta das populações indígenas por autonomia e formas de implementação para proteger seus territórios. O órgão subsidiário permanente, debatido amplamente desde o primeiro dia, foi instituído, assim como o acordo sobre o Fundo de Cali, atrelado aos benefícios derivados de informações de sequência digital (DSI). O mecanismo financeiro garantiu 50% do montante aos povos indígenas e comunidades locais. E os afrodescendentes foram incluídos no Artigo 8(J) da Convenção de Diversidade Biológica.

O novo órgão garante maior participação nas negociações de forma a aconselhar, mas sem direito a voto como uma parte. Esta decisão é inédita pois não existe outro processo nas Organizações das Nações Unidas com um órgão dedicado a povos indígenas e comunidades locais. “Isto traz reconhecimento ao papel do saber tradicional para a conservação da biodiversidade. Povos indígenas e comunidades locais estão comemorando hoje porque nós vamos ter um espaço para desenvolver uma nova lei internacional para proteger, promover e conservar os saberes tradicionais, não apenas para a gente, mas para as gerações futuras” declarou Viviana Figueroa, indígena do povo Omaguaca, da Argentina, e coordenadora técnica global do International Indigenous on Biodiversity Forum (IIFB).

A questão da demarcação de terras indígenas, no entanto, ficou pelo caminho. Isto é considerado como uma oportunidade perdida para garantir a meta 3 do Marco Global da Biodiversidade, que demanda a proteção de 30% dos países. Para Laura Rico, diretora de campanha da Avaaz, ainda assim os resultados não são negativos. “Este novo órgão é a única razão para que delegados da COP16 e a organização civil não devem ir embora com um gosto amargo na boca. Isto é um grande passo para todos nós porque povos indígenas são os que estão na linha de frente com as soluções para salvar a natureza”.

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O órgão terá dois co-presidentes eleitos, sendo um indicado pelas partes e outro por representantes dos povos indígenas e comunidades locais. Pelo menos um deles deve ser de um país em desenvolvimento, considerando o equilíbrio de gênero. Já o Fundo de Cali, vai garantir que ao menos a metade vá para povos indígenas e comunidades locais. O dinheiro vai vir daqueles que se beneficiarem da DSI, direta ou indiretamente, como empresas de cosméticos e farmacêuticas. Elas deverão contribuir para o fundo global com um por cento dos seus lucros ou 0,1 por cento das suas receitas, dependendo do seu tamanho, o que deixa certa ambiguidade no ar.

Mulher indígena descansa enquanto participa da última sessão plenária da COP16, em Cali. As negociações entraram pela madrugada. Foto Joaquin Sarmiento/AFP
Mulher indígena descansa enquanto participa da última sessão plenária da COP16, em Cali. As negociações entraram pela madrugada. Foto Joaquin Sarmiento/AFP

Negociações até decisões tiveram ‘plot twists’

O caminho até essas decisões foi repleto de percalços e “plot twists”, como se diz quando há uma mudança brusca em uma história. Desde o começo da COP, havia uma boa perspectiva sobre as negociações referentes ao Artigo 8(J), que trata especificamente de povos indígenas e comunidades locais, os chamados IPLCs (indigenous people and local communities, em inglês). As principais demandas dos povos indígenas eram sobre demarcação de terras, a criação de um órgão subsidiário permanente na Convenção sobre Diversidade Biológica (CBD) e o acesso direto a financiamento. Brasil e Colômbia ainda buscavam incluir os afrodescendentes neste artigo.

Aumentando a pressão nas negociações, no último sábado (26/10), foi lançada a aliança G9 Indígena, das organizações de povos originários dos países da Bacia Amazônica. A expectativa era de que um documento final sobre os temas do Artigo 8(J) fosse divulgado ainda na quarta-feira (30/11). Mas tudo mudou com a plenária de chefes de estado e ministros, chamada de “high-level”, quando Rússia e Indonésia apresentaram posições contrárias à proposta.

No mesmo dia, o International Indigenous on Biodiversity Forum (IIFB) convocou um protesto silencioso. A organização atua na CDB com 500 povos indígenas e populações locais. Segundo Viviana Figueroa, da IIFB, a negociação vinha se arrastando há oito anos. “Estamos discutindo e negociando desde 2016, na COP13, no México, em Cancun, depois no Egito e depois em Montreal”, declarou ao #Colabora.

Indígenas são fundamentais para atingir meta 3

No Kunming-Montreal Global Biodiversity Framework, ou Marco Global da Biodiversidade Kunming-Montreal, em português, assinado na COP15, existem 23 metas e quatro objetivos a serem cumpridos. Para Laura Rico, da Avaaz, as metas 3, 10 e 22 estão relacionadas com a demarcação de terras indígenas. Especificamente a meta 3 prevê o reconhecimento de territórios indígenas, e que cada país deve conservar ao menos 30% de suas áreas da terra, mar e águas interiores até 2030, o que levou ao apelido de meta 30×30.

“A forma mais fácil de cumprir esta meta é legalizando novas áreas de territórios indígenas porque eles demonstraram que têm as soluções e estão fazendo o trabalho para a conservação da biodiversidade e dos ecossistemas. Isso ajudaria os países que têm povos indígenas. É um incentivo para todos os países amazônicos, onde há muita reclamação para a demarcação”, avalia.

O que os povos indígenas lutam é por um reconhecimento do papel dos seus territórios na conservação. Angela Kaxuyana, representante da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) e do G9 Indígena, contou ao #Colabora que criar metas sem avançar na demarcação é “criar planos inexequíveis”: “Sobretudo para aquelas (terras) que têm a presença de povos indígenas isolados, aquelas que não tem nenhuma providência”.

A criação do órgão subsidiário permanente está diretamente ligada à discussão do Artigo 8(J) da CDB, que trata de respeitar conhecimentos, inovações e práticas dos povos indígenas e comunidades locais. A intenção da decisão tomada na CP16 é aumentar a participação desses grupos nas discussões para desenvolver critérios e mecanismos para questões urgentes.

Viviana Figueroa, da IIFB, explicou que oito metas do Marco Global da Biodiversidade Kunming-Montreal estão relacionadas com as contribuições e direitos dos povos indígenas e populações locais. “Um exemplo são as questões dos territórios indígenas e tradicionais que foram incluídos na meta 3 como o caminho para a conservação da biodiversidade, o que é diferente de área protegida, e é diferente de outras medidas de conservação”.

Para  Angela Kaxuyana, os povos indígenas precisam estar nas mesas de negociação de forma igualitária com as partes. Isto porque muitas vezes as metas propostas não são atingidas por serem muito distantes da realidade. “Queremos que os povos indígenas sejam reconhecidos como autoridades da biodiversidade e que demarcação e reconhecimento dos territórios indígenas sejam incluídos como uma política da biodiversidade”, explica.

A forma como os mecanismos financeiros estão estabelecidos atualmente, por exemplo, impede o acesso aos recursos, segundo Laura Rico, da Avaaz. A decisão da criação do Fundo de Cali, com 50% para os povos indígenas, pode facilitar o processo. “Tudo funciona através de intermediários e nessa intermediação se perde muito dinheiro”, explicou. Além disso, ela frisa que atualmente apenas 6% dos fundos de biodiversidade vão para povos indígenas. A saída, segundo Angela Kaxuyana, é que verbas como estas do Fundo de Cali possam apoiar iniciativas como o Podáali, o Fundo Indígena da Amazônia Brasileira, para que os recursos cheguem aos territórios. “É necessário reconhecer e confiar nos mecanismos próprios indígenas, que já existem ou que estão em processo de construção”.

O mecanismo financeiro aprovado na COP16 garante 50% do montante aos povos indígenas e comunidades locais. Foto Fernando Morales/350.org

Colômbia e Brasil lutaram por inclusão dos afrodescendentes no Artigo 8(J)

A essas pautas levantadas pelos povos indígenas, se somaram as demandas dos afrodescendentes. O termo IPLCs da CDB não citava diretamente esse grupo.  Por isso, Brasil e Colômbia fizeram um esforço para que fossem incluídos, proposta que teve inicialmente uma resposta negativa da República do Congo. Alguns negociadores europeus e asiáticos também acreditavam que a mudança de linguagem não se fazia necessária, pois eles estariam incluídos em “comunidades locais”. No fim da primeira semana de COP, o Congo aceitou a inclusão, assim como os outros países africanos.

Durante a coletiva de imprensa do Fórum Internacional dos Afrodescendentes, ainda na primeira semana (24/10) – que contou com a presença de indígenas e campesinos – a vice-presidente da Colômbia e ministra da igualdade e equidade, Francia Márquez, frisou que a população afrodescendente tem muito a ensinar ao mundo sobre o cuidado com território. “Tiveram que passar 30 anos para reconhecer a necessidade de contar com a presença dos afrodescendentes na estratégia da conservação da biodiversidade”.

Márquez também falou da necessidade de reconhecer os direitos étnicos e territoriais dos afrodescendentes, a participação nas tomadas de decisão e o financiamento direto para essas populações, assim como demandam as populações indígenas. “Os afrodescendentes são fundamentais para que a estratégia de conservação global esteja completa”, comentou a vice-presidente, a primeira mulher negra no cargo.

Com a inclusão dos afrodescendentes no Artigo 8(J), a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ) e o Processo de Comunidades Negras (PCN) divulgaram uma nota onde comemoram a decisão final. As organizações declararam que é um reconhecimento das contribuições para a biodiversidade e que reflete o trabalho intenso de Brasil e Colômbia. “É uma resposta ao chamado urgente de reparação histórica, pois reconhece a importância dos saberes e práticas dos afrodescendentes para o manejo e a conservação da biodiversidade”.

(*) Esta reportagem foi produzida como parte da 2024 CBD COP16 Fellowship organizada pela Internews’ Earth Journalism Network.

Bibiana Maia

Jornalista formada pela PUC-Rio com MBA em Gestão de Negócios Sustentáveis pela UFF. Trabalhou no Fundo Brasileiro para a Biodiversidade (Funbio) e nos jornais O Globo, Extra e Expresso. Atualmente é freelancer e colabora com reportagens para jornais e sites.

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