O Pantanal, 30 anos depois da novela: perda de água e paisagens menos exuberantes

A atriz Cristiana Oliveira, como Juma Marruá, em cena da novela Pantanal, da extinta TV Manchete: 30 anos depois, bioma sofre com perda de vegetação nativa, desmatamento e queimadas (Foto: TV Manchete/Divulgação)

Nova versão de trama de sucesso vai encontrar bioma com redução das áreas úmidas e ameaçado por desmatamento e queimadas

Por Oscar Valporto | ODS 14ODS 15 • Publicada em 10 de setembro de 2020 - 08:00 • Atualizada em 5 de maio de 2022 - 10:42

A atriz Cristiana Oliveira, como Juma Marruá, em cena da novela Pantanal, da extinta TV Manchete: 30 anos depois, bioma sofre com perda de vegetação nativa, desmatamento e queimadas (Foto: TV Manchete/Divulgação)

Desde junho, as queimadas do Pantanal tomaram conta do noticiário, com imagens – do desmatamento, dos incêndios, das cidades cobertas por fumaça e dos animais calcinados – multiplicadas nos telejornais. No domingo (06/07), o cenário paradisíaco da região, que atrai milhares de turistas anualmente, voltou às telas. Mas era ficção: mais exatamente uma ficção de 30 anos atrás. Reportagem no Fantástico anunciou a nova versão para a novela “Pantanal”, maior sucesso de audiência da extinta TV Manchete, que derrotou até a Globo em audiência em 1990. “Em 30 anos, o bioma mudou muito. Embora aquelas belezas tenham resistido, houve muita degradação em áreas como a cabeceira dos rios. E estamos vivendo uma temporada terrível de seca, desmatamento e queimadas, afetando fauna e flora com um impacto que ainda não somos capazes de medir”, explica a professora Cátia Nunes da Cunha, pesquisadora da UFMT (Universidade Federal de Mato Grosso) e do Centro de Pesquisa do Pantanal.

O Pantanal, em 1990, era ainda um dos biomas mais preservados do país: havia perdido pouco menos de 4% de sua vegetação nativa, estimada em mais de 15 milhões de hectares. Este número dobrou até a virada do século. E, de acordo com recente levantamento do Instituto SOS Pantanal, o bioma perdeu, até 2019, 15,7% da sua área de vegetação nativa – 23.700 km², um pouco maior que o Estado do Sergipe. O estudo do SOS Pantanal, associação pelo desenvolvimento sustentável da região fundada em 2009, aponta ainda que o bioma tem uma taxa de degradação anual de 50 mil hectares, provocada pela conversão de campos naturais por pastos.

A degradação é ainda maior no planalto que cerca a planície pantaneira e onde estão as cabeceiras dos rios. “A Juma de 2020 vai sentir falta daquela abundância de água para mergulhar. A degradação nas cabeceiras provoca o assoreamento dos rios e reduz a vazão de água para as áreas mais úmidas do Pantanal, também afetada pela multiplicação de pequenas hidrelétricas. Proteger as terras altas é fundamental para garantir a integridade do Pantanal”, afirma a pesquisadora da UFMT. Atualmente, funcionam na Bacia do Paraguai, sete usinas hidrelétricas e 30 pequenas centrais hidrelétricas (PCH) – e há projetos para mais 50 PCHs na região. “A maioria dessas geradoras de energia sequer existia na época da novela. Elas usam a água de acordo com seus interesses, sem preocupação com os desdobramentos ambientais da redução da vazão dos rios”, aponta Cátia Nunes da Cunha, doutora em Ecologia.

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Juma Marruá, vivida pela atriz Cristiana de Oliveira, foi a personagem mais marcante da novela. Levava uma vida selvagem, morava numa cabana no meio do mato. Marruá é a designação local para o gado tucura, espécie de boi selvagem típico do Pantanal. Até meados do século passado, muitos pantaneiros buscavam capturar os marruás e levá-los para suas fazendas – o que provocou a mistura com outros bovinos. Hoje, o gado tucura vive em ambientes reservados para a preservação da espécie. “A Juma, por sua natureza rústica e integrada à natureza, tem que ser agora uma defensora feroz da preservação do Pantanal”, afirma a professora Cátia.

Com as patas queimadas, onça pintada é resgatada pelos bombeiros no Pantanal: queimadas afetam animais que ajudaram no sucesso da novela de 1990 (Foto: William Gomes/Secom UFMT)
Com as patas queimadas, onça pintada é resgatada pelos bombeiros no Pantanal: queimadas afetam animais que ajudaram no sucesso da novela de 1990 (Foto: William Gomes/Secom UFMT)

A rica fauna do Pantanal também brilhava na tela. A onça, típica da região, tinha papel importante na trama. Jacarés, cobras, antas, cervos e aves – como tuiuiús, garças, socós e biguás – faziam parte da paisagem da novela da Manchete, uma das chaves de seu sucesso. Essas espécies estão sofrendo com o avanço violento das queimadas sobre seu habitat. Cadáveres calcinados de jacarés, antas e cobras são encontrados diariamente pelas equipes de combate aos incêndios, que já resgataram dezenas de animais. O fogo já chegou ao Parque Estadual Encontro das Águas, em Poconé, onde está a maior concentração de onças-pintadas do mundo. O fogo está destruindo também os ninhos de araras-azuis na fazenda São Francisco do Perigara. “É terrível, devastador, ver os animais mortos pelo incêndio.Nem gosto de olhar as fotos”, conta Cátia.

Professora do Instituto de Biociências da UFMT, ela explica que pesquisadores de várias áreas estão em campo para investigar o impacto das queimadas sobre a fauna e a flora do Pantanal, tanto em Mato Grosso como no Mato Grosso do Sul, onde foram gravadas as cenas, em sua maioria, da novela de 1990. “O caso das araras-azuis é muito grave porque é uma espécie considerada vulnerável e só existe aqui. Mas há dezenas de animais e aves se deslocando para fugir do fogo e nós ainda não sabemos como eles vão se adaptar. É isso que os pesquisadores estão começando a investigar agora”, aponta Cátia.

De acordo com o Instituto de Pesquisas Espaciais (Inpe), de janeiro até o fim de agosto, foram registrados mais de 25,4 mil focos de calor – número  29% maior do que no mesmo período de 2019. Dados do Centro Nacional de Prevenção e Combate aos Incêndios Florestais do Ibama indicam que, em 2020, a área queimada no Pantanal já passa de 2,3 milhões de hectares: 1,2 milhão em Mato Grosso e mais de 1 milhão em Mato Grosso do Sul. As queimadas aumentaram no Pantanal a partir de junho, quando a estiagem ficou ainda mais intensa. “O Pantanal está enfrentando uma seca histórica, com dias e dias em que a unidade fica abaixo de 10%. Isso faz com que o fogo se espalhe com muita rapidez. Há queimadas ilegais e criminosas. Mas também há pantaneiros acostumados a fazer o manejo do fogo que perderam o controle; até mesmo indígenas que manejam o fogo perderam o controle”, explica a pesquisadora do UFMT.

Pantanal em chamas com seca histórica: perda da vegetação nativa no bioma mais do triplicou desde 1990 quando novela foi gravada (Foto: Mayke Toscano/Secom-MT)
Pantanal em chamas com seca histórica: perda da vegetação nativa no bioma mais do triplicou desde 1990 quando novela foi gravada (Foto: Mayke Toscano/Secom-MT)

A seca no Pantanal pode ser a maior em mais de 40 anos: de acordo com dados do Instituto Nacional de Meteorologia, o volume de chuvas ficou 50% abaixo do normal no bioma durante os primeiros meses do ano – uma estiagem agravada porque 2019 já havia sido um ano seco.  No Rio Paraguai, os níveis registrados do curso de água encontram-se abaixo dos níveis normais para este período do ano; em alguns locais, o rio está na mínima histórica. “As mudanças climáticas estão, certamente, tendo impacto aqui no bioma. Nos últimos 10 anos, os períodos de estiagem têm sido mais longos e mais intensos. As áreas úmidas estão menos úmidas”, afirma a professora Cátia.

A novela ajudou a desenvolver o turismo no Pantanal: brasileiros de todas as partes do país passaram a visitar a região. Sedes de fazenda viraram pousadas, peões tornaram-se guias turísticas. No ano 2000, o Pantanal foi considerado Patrimônio Natural Mundial pela Unesco, ajudando a atrair também estrangeiros para a região. “A atividade turística tem ajudado na preservação do bioma porque o empresário do setor sabe que o Pantanal preservado é fundamental para o seu negócio”, explica a pesquisadora.

A selvagem Juma Marruá, interpretada por Cristiana Oliveira, em 1990: personagens, fauna e flora do Pantanal fizeram sucesso e bateram Globo em audiência (Foto: TV Manchete/Divulgação)
A selvagem Juma Marruá, interpretada por Cristiana Oliveira, em 1990: personagens, fauna e flora do Pantanal fizeram sucesso e bateram Globo em audiência (Foto: TV Manchete/Divulgação)

Na trama da novela Pantanal, o fazendeiro José Leôncio – interpretado pelo ator Cláudio Marzo, morto em 2015 – criava gado mas era um defensor da natureza. “Ainda existem muitos Leôncios por aqui, pantaneiros preocupados com a preservação do bioma e com o desenvolvimento sustentável do Pantanal”, garante a professora da UFMT. “O problema é que há também muitos neopantaneiros, sem qualquer compromisso com a sustentabilidade, com foco apenas na exploração dos recursos da terra, seja com a pecuária, seja com a agricultura. São pessoas de fora do Pantanal ou herdeiros de antigos proprietários que não têm essa ligação com o bioma. Creio que é um tipo de conflito a ser explorado pela nova versão da novela”, acrescenta.

Os responsáveis pela nova “Pantanal” garantiram, em reportagem da própria TV Globo, que problemas como o desmatamento e as queimadas serão abordados na trama que, de acordo com o diretor Rogério Gomes, vai ser gravada na temporada de seca – que, nos dois últimos anos, foi também uma temporada de queimadas. Três décadas atrás, a TV Globo recusou a novela de Benedito Ruy Barbosa, então contratado da emissora, por considerar a produção muito cara. Hoje, com mais recursos tecnológicos à disposição, a emissora carioca decidiu fazer a nova versão – o custo pode até ser comparativamente menor. Mas a paisagem exuberante do Pantanal, quase um personagem da trama da Manchete, precisará de cuidados especiais para voltar a brilhar na tela da TV.

Oscar Valporto

Oscar Valporto é carioca e jornalista – carioca de mar e bar, de samba e futebol; jornalista, desde 1981, no Jornal do Brasil, O Globo, O Dia, no Governo do Rio, no Viva Rio, no Comitê Olímpico Brasileiro. Voltou ao Rio, em 2016, após oito anos no Correio* (Salvador, Bahia), onde foi editor executivo e editor-chefe. Contribui com o #Colabora desde sua fundação e, desde 2019, é um dos editores do site onde também pública as crônicas #RioéRua, sobre suas andanças pela cidade

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